Os bastidores dos jornais de televisãoT

Sugerido por MiriamL

OS BASTIDORES DOS JORNAIS TEVEVISIVOS
 
Tintim na periferia
Imagens de lixeiras pegando fogo, calçadas estreitas com pedestres coléricos: os enfrentamentos que opuseram a polícia e os habitantes de Trappes no verão francês geraram uma nova discussão sobre o “mal das cidades”. Um olhar sobre os jornais televisivos permite compreender como se perpetuam tais clichês
 
por Jérôme Berthaut
 
 
“Nos demos conta de que as periferias tinham se tornado para nós territórios estrangeiros, que havia uma parte do território francês da qual não compreendíamos mais a língua, a geografia, a sociologia…”, explicava em 2008 um dos redatores chefes dos jornais televisivos do canal France 2. “[Os habitantes] não entendem o que dizemos e nós não entendemos o que eles dizem. Isso nos levou a uma conclusão imediata e dissemos: ‘Já que estamos no estrangeiro quando vamos para a periferia, vamos fazer o que fazemos quando estamos no estrangeiro: vamos pagar pelos serviços de um ‘fixeur’.” A escolha desse termo, que designa originalmente o acompanhante pago para servir como motorista, guia e intérprete aos repórteres nos países em guerra, não é, evidentemente, insignificante. Pudemos observar essa transformação, que testemunha uma mudança estrutural da informação nos bairros populares, durante uma pesquisa dentro da redação do canal France 2.1
 
O recurso aos fixeurs coloca em evidência, em primeiro lugar, a leitura cultural, mais importante do que a social, que os jornalistas fazem de suas dificuldades de acesso a certas zonas habitacionais. Já que cresceu em um conjunto habitacional, o fixeur tem uma compreensão natural da periferia e domina seus códigos – linguísticos, comportamentais, étnicos – que se pretende serem específicos. Mas o recrutamento desse tipo de intermediário revela principalmente o espaço crescente que se dá à mediatização dos “desvios” dos bairros populares.2 Espera-se dos fixeurs que mobilizem suas relações (família, amigos…) para fornecer de mão beijada os protagonistas das reportagens sobre a economia subterrânea (traficantes, ladrões, vendedores ilegais de armas ou carros), a “violência na periferia” (extorsão, antissemitismo, maltrato das mulheres), o “fundamentalismo muçulmano”, a abstenção escolar etc.
 
A progressão desses temas, que se explica principalmente pela multiplicação das tomadas de posição dos partidos políticos, traz à tona o alinhamento progressivo do canal France 2 com seus concorrentes privados. Em 2012, o jornal televisivo (JT) do canal M6 cobriu 517 histórias de cotidiano, contra 472 do canal TF1 e pouco menos (454) do France 2, segundo o Institut national de l’audiovisuel (INA). Números pouco espantosos quando sabemos que a maioria dos executivos do canal público, contratados no início dos anos 2000, vem do privado e trouxer seus métodos de trabalho (ver box abaixo).
 
Quando trabalhavam no canal TF1, em paralelo a suas reportagens para o jornal televisivo, os jornalistas Guilaine Chenu (que se tornou apresentadora do programa “Envoyé spécial” [Enviada especial] na France 2), Benoît Duquesne (“Complément d’enquête” [Complemento de investigação]) e David Pujadas (JT das 20 horas) multiplicaram, por exemplo, os assuntos sobre o tema do islã nas periferias para o programa “Le Droit de savoir” [O direito de saber]. Em 1995, Pujadas chegou a coescrever um livro, La Tentation du jihad [A Tentação da jihad](com Jean-Claude Lattès), que pretendia “evidenciar os mecanismos desta ‘jihad de periferia’”. Ele compilou nesse livro diversas reportagens realizadas pelo canal TF1, dentre as quais uma, difundida em outubro de 1993, intitulada “Imigração, a integração em perdição”. Nela vemos o futuro apresentador da France 2 ir ao encontro dos “moradores dos conjuntos habitacionais” para mostrar a constatação da incompatibilidade dos modos de vida das “comunidades negras”, “asiáticas” e “magrebinas” com sua integração na sociedade francesa. Segundo o jovem repórter, as características da “onda do reagrupamento familiar” (as “famílias numerosas”, a “poligamia”, a “ausência do sentido de valores”…) conduziram à “decadência” e à “formação de guetos”.
 
Antecipar a hierarquia
 
Foi então armados com esse tipo de preconceito que os novos chefes hierárquicos da redação da France 2 tentaram convencer a antiga equipe a romper com uma cobertura da periferia considerada “angelical demais”. Em particular durante as reuniões de pauta, instância de avaliação onde não apenas se distribuem os assuntos a tratar, mas também se fala sobre os bons e os maus pontos do dia anterior. Os dois principais jornais do canal, o “13 horas” e o “20 horas”, têm, cada um, reuniões de pauta de trinta a quarenta minutos que, na maior parte das vezes, reúnem apenas membros da hierarquia. Um de cada vez, os chefes de editoria (política, sociedade, geral, cultura) expõem as propostas de suas equipes, o avanço das reportagens em andamento, e se esforçam para conseguir o consentimento dos chefes, únicos que decidem o conteúdo do JT.
 
Estes, que frequentemente dão a entender seu nível de interesse com relação às propostas apenas por uma simples expressão do rosto ou uma reação rápida (uma careta cética, uma exclamação entusiasmada, algumas breves questões…), formulam também encomendas de reportagens bem específicas. Os chefes de editoria têm, então, inclinação a se alinhar com as expectativas dos redatores chefes e dos apresentadores – até mesmo antecipá-las – ainda mais porque estão concorrendo para obter a programação das produções de suas respectivas equipes.
 
Essa organização induz a uma progressão que beneficia a hierarquia. Em março de 2003, por exemplo, após o pedido de um redator chefe por pautas a respeito das “consequências da guerra do Iraque na França”, o responsável pela editoria política propôs uma matéria sobre “o papel dos governantes” para acalmar as tensões comunitárias; o da editoria de sociedade pensou em realizar entrevistas nas mesquitas e escolas de periferia; o de geral quis coletar a opinião dos jovens nos pátios dos prédios dos conjuntos habitacionais etc.
 
A rivalidade entre as editorias permite aos responsáveis dos JTs garantir a confecção de reportagens sob medida, até mesmo quando os redatores estão reticentes. Em dezembro de 2006, por exemplo, depois da publicação de um comunicado de imprensa anunciando que “Nicolas Sarkozy acolhia em Beauvau [sede do ministério do interior] jovens dos bairros populares”, diversos jornalistas da editoria de geral reclamaram por ter que cobrir o evento, considerado como uma operação de “recuperação”, até mesmo de “manipulação” do ministro. Pouco importa: um responsável da editoria de política se candidatou a realizar a reportagem.
 
Esses modos de funcionamento levam ao alinhamento das propostas de pauta aos esquemas de interpretação dos chefes de redação que são os que estão mais distantes do campo, ao ponto de, frequentemente, definir uma periferia fora da realidade. Na prática cotidiana, o diretor de redação, os apresentadores e os redatores chefes do JT estão, com efeito, duplamente distanciados dos bairros populares: não apenas eles não vão até lá para realizar as reportagens, mas também não tratam mais diretamente com os jornalistas que cobrem as pautas em questão, pois essa tarefa foi repassada aos chefes de editoria. Assim, seu ponto de vista sobre “as periferias” alimenta-se antes de mais nada dos únicos discursos que conseguem chegar até eles: o das fontes dominantes e das mídias que são consideradas referência a seus olhos.
 
A incitação a acumular contatos junto às forças da ordem (fonte inesgotável de notícias) constitui assim uma das principais ordens dirigidas aos jovens repórteres. Uma preocupação particularmente perceptível vista a assiduidade dos jornalistas do canal nas atividades de formação realizadas pelo Instituto de Altos Estudos da Segurança Interior (Iaesi):3 com todos os tipos de mídias juntas, a equipe da France 2 foi a que inscreveu o maior número de jornalistas. Entre 1994 e 2011, apenas na editoria de geral, sete jornalistas participaram dos cursos desse instituto. Investindo nessas “formações”, o canal espera criar relações de familiaridade com os futuros responsáveis de segurança: “Custa 8 mil euros por ano para a France 2, então, quando colocamos um cara lá dentro, esperamos que dê resultado”, reconhece um antigo editor de geral, que se tornou redator chefe do JT.
 
Quatro dias por mês, durante um ano, tendo aulas consagradas às diferentes dimensões da segurança, os jornalistas inscritos se relacionam com uma centena de profissionais da segurança pública que estão prometidos a uma ascensão nos seus respectivos escalões: comissários, coronéis da polícia militar, magistrados, delegados, diretores da alfândega etc. Cabe a eles, depois, entreter e reforçar as relações com seus antigos camaradas de formação. “São pessoas com quem eu ainda me encontro”, confia um repórter diplomado. “E nos tratamos com intimidade, sabia? É uma espécie de rito, uma submaçonaria, eu não vejo de outro modo. Ritualizamos a rede.”
 
“E aí, Mohammed, tá bravo?”
 
A estratégia se revela lucrativa para o canal, que dispõe assim de repórteres imediatamente operacionais para honrar os comandos hierárquicos, e para os jornalistas. “A cada vez que mudei de emprego, foi graças ao meu caderno de contatos ‘polícia e justiça’”, conta uma especialista no assunto, contratada quatro vezes entre 2000 e 2012, pela TF1 e pela France 2. “Tem muito pouca gente especializada em polícia: é complicado, é preciso conquistar a confiança das fontes… Então, ter um caderno de contatos com certeza me permitiu crescer.” Mas de tanto conviver com os policiais, os jornalistas acabam por adotar inconscientemente sua percepção do mundo social, suas categorias de análise, e por vezes, a sua linguagem. Assim, nos corredores da France 2, espiar um acontecimento ou uma personalidade se torna “montar uma tocaia”, cobrir um roubo. GAV (garde à vue – manter sob custódia), VMA (volà main armé – roubo à mão armada), VV (vol avec violence – roubo com violência): os termos técnicos policiais são correntes nas salas de redação.
 
O ministério do interior e seus serviços (delegacias locais e regionais) funcionam como verdadeiros coprodutores da informação que sabem perfeitamente se antecipar e se adaptar às convenções jornalísticas em prática. A seleção de uma reportagem sobre uma “apreensão de entorpecentes em Nanterre” está, por exemplo, ligada ao fato de que um câmera do canal foi autorizado a acompanhar as forças de polícia em suas operações de busca em carros ou apartamentos. O chefe da editoria de informações gerais da France 2 se felicita publicamente por essa produção, uma “bela operação do departamento de investigação de narcóticos em Nanterre, com uma boa tomada, dinheiro”, que “vale pelo estilo rock’n roll, com um lado espetacular dos caras que derrubam as portas”.
 
As discussões nas reuniões de pauta da redação parecem frequentemente com apostas sobre os assuntos que vão ser abordados pelos outros canais. Uma das maneiras possíveis para um chefe de editoria impor “seu” assunto consiste, então, em valorizar que os concorrentes, eles, vão falar sobre isso. Assim, como nos explicam os redatores, algumas reportagens – rebatizadas ironicamente de “pauta em caso de” – só terão a chance de ir para o ar “no caso da” TF1 também estar presente.
 
Para se sair bem nesse trabalho de previsão, o conjunto dos jornalistas fica atento a respeito dos temas abordados pelas outras mídias. As rádios, é claro, mas também a imprensa escrita, e em particular o jornal popular Le Parisien. Frequentemente citado como uma referência na reunião de pauta, esse jornal diário serve de parâmetro para avaliar a programação do polo das mídias ditas “populares”. Além de fornecer quase que de bandeja as ideias das pautas realizáveis no dia por uma equipe de televisão baseada em Paris, ele é considerado como capaz de atrair um público variado. Além disso, as reportagens colocadas no início do JT retomam frequentemente a hierarquia da “capa” do Parisien. Tendo por consequência a imposição recorrente dos “assuntos de periferia”, muito tratados pelo jornal que, levando em conta a sua zona de difusão, produz um efeito de ampliação sobre a região parisiense.
 
Assim que a seleção é decidida na reunião de pauta, os responsáveis do JT passam a bola para os chefes de editoria, que vão transmitir aos repórteres as orientações ligadas a cada assunto escolhido. “Isso repercute e desce um degrau”, precisa um jornalista encarregado das crônicas judiciárias. Ainda no andar de baixo, os jornalistas raramente expressam a menor crítica teórica ou política sobre a definição do assunto que lhes foi confiado pelos chefes de editoria: qualquer pauta aprovada pela hierarquia parece ser considerada como legítima e realizável, a menos que haja impossibilidade material. Assim, quando solicitado a realizar uma denúncia sobre “a agressão dos policiais CRS”, mesmo se ressalta a dificuldade em “fazer a ronda no Tarterêts” (uma periferia da região de Essone – no sul de Paris – onde “a coisa é difícil”) e nos confessa suas dúvidas sobre o interesse da reportagem (“Tenho medo que resulte num assunto sofrível”), Denis se contenta com o que tem.
 
Diante das críticas que lhes são dirigidas sobre o “tratamento das periferias”, os jornalistas ressaltam as suas dificuldades em criar relações de confiança com os moradores dos bairros populares. É assim que eles justificam a mobilização sistemática de intermediários encarregados principalmente de garantir sua proteção. “Sarcelles [uma periferia], tome cuidado, é muito perigoso”, aconselha, por exemplo, uma jornalista a sua jovem colega. “Não vá sozinha. Vá acompanhada por alguém da prefeitura ou da comunidade, principalmente se você vai colher opiniões em baixo dos prédios [faz uma mímica de jornalista entrevistando]: ‘E aí, Mohammed, tá bravo?’” O dispositivo funciona então como uma profecia autorrealizável: o fato de que tudo se passa como previsto valida a posteriori os pressupostos sobre essa transmissão.
 
Mas o recurso aos intermediários se justifica também pela dificuldade material em realizar em um período de tempo muito curto (às vezes de manhã para ser exibido à noite) matérias “encarnadas” e “com vida”. Uma parte pouco conhecida do trabalho dos jornalistas consiste em encontrar, nos bairros populares, esses negociadores – que se diferenciam dos fixeurs pelo fato de que não são oficialmente remunerados pela redação – capazes de pré-selecionar moradores cujas trajetórias pessoais correspondem às ordens da hierarquia. Se eles conseguem isso, sua reputação será consagrada e seu nome irá circular nas salas de redação.
 
Um único intermediário pode determinar toda uma série de filmagens. No início de 2001, Denis conheceu, por exemplo, Tariq, educador em uma cidade do departamento de Essone. Ele foi encarregado de realizar uma reportagem sobre os “tournantes” (estupros coletivos) e as relações entre meninos e meninas nas “cohabs”, e o educador aceitou organizar para ele um encontro com jovens. Depois dos atentados do 11 de setembro, Tariq apresentou a Denis um jovem de sua comuna “convertido ao islã”: “Eu fiquei muito feliz por ter encontrado isso. Como o menino era delinquente, Tariq o conhecia, foi ele quem me deu o seu número de telefone”, lembra Denis, ainda agradecido. Dois dias depois, ainda na mesma cidade, o educador forneceu a Denis adolescentes que criaram o hábito de se reunir no hall do prédio. Depois foi por ocasião de uma reportagem sobre o “sentimento de insegurança” que Tariq apresentou a Denis três estudantes que reclamavam por serem regularmente revistados pela polícia.
 
Essa lógica de preparação de reportagens favorece uma superexposição de algumas periferias. Em 69 reportagens sobre “a periferia” realizadas por Denis para os jornais da France 2 entre 2000 e 2007, uma grande parte tem por cenário as cidades onde o jornalista dispõe de contatos. Elas se situam principalmente na região de Essone, onde Tariq está (as cidades de Grigny e Evry acumulam quinze reportagens), e na região de Val-de-Marne, de onde afixeuse da France 2 vem.
 
As solicitações que as mídias dirigem a alguns interlocutores são tão numerosas que criam uma rotina de trabalho para os acompanhantes. Em 2003, duas equipes da France 2 foram para Sarcelles num intervalo de nove dias. A cada vez, o prefeito da cidade, num verdadeiro tour operacional do conjunto habitacional, conduziu a visita segundo um percurso quase idêntico: a sinagoga, o salão de chá da “comunidade judaica”, o mercado “mestiço”, local de encontro das “setenta comunidades da cidade”, o bar PMU onde se encontram os “velhos magrebinos” que vem apostar nas corridas de cavalo, a mesquita…4
 
Os percursos propostos pelos intermediadores são evidentemente inspirados por suas experiências repetidas na acolhida de jornalistas. Quer se trate de visitas padronizadas, sugestões feitas ao câmera (filmar uma passante “de burca”, o bar “dos velhos magrebinos”…) ou ainda da pré-seleção dos protagonistas das reportagens, muitas situações demonstram a interiorização por parte dos intermediadores dos códigos iconográficos do jornalismo na periferia. Já que vai além das eventuais necessidades do repórter, o acompanhante aparece também como o promotor e o transmissor das práticas jornalísticas-típicas.
 
É preciso dizer que a atenção dos jornalistas em passagem pelos bairros populares é principalmente consagrada a uma detecção das situações, paisagens e protagonistas que evoquem da melhor forma “a periferia”. Assim, as imagens de grades e prédios, que são no entanto minoritárias nas construções de periferia, parecem constitutivas do tipo de visual destas reportagens. Em particular sua declinação sob a forma de travelling: este procedimento oferece uma solução estética (animar imagens de prédios que são, por definição, imóveis), ao mesmo tempo em que respondem aos imperativos de segurança – permitem aos repórteres permanecer protegidos nos seus veículos, sem nem sequer precisar parar. “Aaaah, o que seria de uma matéria sobre a periferia sem o travelling dos prédios?”, ri uma editora de vídeos ao descobrir as imagens brutas vindas da filmagem de um jornalista enviado à Clichy-sous-Bois. Essas tomadas parecem fazer parte da rotina de fabricação de reportagens nos bairros populares a tal ponto que os editores de montagem recorrem a elas frequentemente nos arquivos quando as equipes não tiveram a possibilidade de filmar.
 
Outros componentes da representação das periferias vêm se acrescentar à coleta jornalística. Ao analisar o conjunto das imagens filmadas pelas equipes de Olivier ou de Denis em duas periferias diferentes, constatamos que o câmera privilegia de fato as mesmas imagens, para as quais ele se esforça em diversificar os modos de captação: enquadramentos amplos, próximos ou em movimento dos prédios, dos terraços, dos corredores escuros, das antenas parabólicas, das pichações, dos traços de degradação…
 
Ao longo de uma passagem por Clichy-sous-Bois, Pierre, o redator, percebeu duas placas escurecidas por um incêndio, ainda pregadas em uma barreira, ao lado de uma escola primária. Se virou para o repórter de imagens (JRI): “Filma para mim!” O outro se prepara e filma primeiro imagens das duas placas, antes de manipular sua câmera de baixo para cima para capturar num mesmo movimento as placas, depois o prédio e as parabólicas ao fundo.
 
Mas também é preciso falar de uma galeria de personagens recorrentes: o imã, o educador, os “jovens” bons ou maus, as vítimas dos transtornos etc. Esse formato antecipa a apreciação dos chefes, assim como a de um público que imaginamos impregnado pelos mesmos pressupostos sobre a periferia; ele contém ao mesmo tempo a ideia de “onde estarão as personagens”, de “quem elas serão”, mas também do “que elas dirão”. Os jornalistas devem assim desenvolver talentos de criadores de diálogos e de diretores de teatro, pois, no jornal televisivo, a palavra e as situações parecem ser menos recolhidas do que coproduzidas.
 
BOX:
 
Uma privatização escondida
 
 
 
Março de 2003. A editoria geral da France 2 – dedicada principalmente às notícias de cotidiano – está cheia de caixas de papelão. A mudança em andamento dá testemunho da reorganização da redação: a editoria acaba de se fundir com a prestigiosa editoria de internacional para formar um vasto departamento de “investigações e reportagens”. Dotando-se de uma grande quantidade de repórteres ultra polivalentes, capazes de tratar indiferentemente de assuntos sobre o território francês e o estrangeiro, a France 2 alinha-se com o modelo de organização das grandes redações de audiovisual comercial.
 
Essa arquitetura, ainda hoje em funcionamento, completa com efeito uma série de transformações impulsionadas pela equipe dirigente da redação nomeada em 2001. Nesse ano, o apresentador do jornal das 20 horas, Claude Sérillon, e o diretor de redação, Pierre-Henri Arnstam – duas figuras emblemáticas da televisão pública –, foram substituídos respectivamente por David Pujadas, vindo da LCI/TF1, e Olivier Mazerolle, vindo da RTL.
 
 
 
Nessa grande renovação do organograma da redação, a maioria dos novos promovidos tinha em comum já ter trabalhado, ou até mesmo começado, no audiovisual privado. Muitos vinham da TF1, como Jean-Michel Carpentier, que se tornou em 2001 o redator assistente do jornal 20 horas da France 2, ou Thierry Thuillier, o novo responsável pela editoria internacional. Outros se formaram no canal La Cinq (canal comercial criado por Silvio Berlusconi em 1987 e que desapareceu em 1992), como Michèle Fines, que se tornou a responsável pelas informações gerais. Quanto aos raros funcionários que mantiveram seu cargo a despeito de todas as transformações, eles também conheceram frequentemente uma experiência nos canais privados. Foi o caso de Arlette Chabot, chefe da editoria de política da TF1 de 1985 a 1990, que apresenta o programa “Mots croisés” [Palavras cruzadas], ou de Béatrice Schönberg, a apresentadora dos jornais do fim de semana, que também era uma antiga jornalista do La Cinq (1987-19992) e da TF1 (1992-1997).
 
 
 
Impregnados com as lógicas da concorrência e da rentabilidade, contratados para recuperar a parte de audiência dos jornais televisivos da France 2, esses desertores impuseram novas prioridades editoriais – principalmente as midiatizações das notícias sensacionalistas – que entravam em contradição com as práticas de uma parte da equipe precedente. No seu trabalho cotidiano, a hierarquia e as editorias dominantes podiam ver suas escolhas contestadas, até mesmo de forma violenta, pelos jornalistas da antiga linha, que se tornaram minoritários. “Era a guerra, nos diziam: ‘Vocês são uns antiquados de esquerda. Não entendem nada, não é assim que funciona o jornalismo moderno’”, lembra Marcel Trillat, figura histórica do serviço público do audiovisual, diversas vezes chefe da editoria de sociedade ao longo dos anos 1990 e militante da Confederação Geral do Trabalho (CGT).
 
 
 
Os enfrentamentos tratavam frequentemente da atenção dada às notícias de cotidiano e à produção dos canais concorrentes. “Na redação, temos realmente uma esquerda pós-marxista que tem referências revolucionárias teóricas marxistas [e] que não suporta as palavras ‘administração’, ‘produto’, ‘audiência’, ‘cotas de mercado’, ‘penetração’… para eles, uma notícia de cotidiano é suja por definição”, estima um dos redatores chefes atuais do JT, recrutado como jornalista de geral em 1994 e promovido a editor assistente em 2001.
 
 
 
Em alguns anos, um campo tornou-se claramente mais forte que o outro, como atestam as novas contratações: Laurent Delahousse (ex-M6) apresenta os jornais do fim de semana desde 2007, Florian Bugier (ex-Bloomberg TV, BFM TV e i>télé) responde pela apresentação dos JTs durante os períodos de férias desde 2011, François Lenglet (ex-BFM Business) dirige a editoria França desde junho de 2012 etc. “Foi realmente a outra televisão que ganhou”, deplora Trillat. (J. B.)
 
 
 
Jérôme Berthaut
 
Sociólogo, mestre de conferências na Universidade de Borgonha, membro do Cimeos e pesquisador associado à Unidade de Pesquisa Migrações e Sociedade (Urmis/Paris Diderot). Autor de La Banlieue du “20 heures”. Ethnographie de la production d’un lieu commun journalistique [A Periferia do “20 horas”. Etnografia da produção de um lugar comum jornalístico], Agone, coleção “L’ordre des choses”, Marselha, 2013.
 
 
 
 
1 Salvo menções contrárias, as citações e dados mencionados aqui são extraídos de uma pesquisa de campo que aconteceu durante a elaboração de um doutorado de sociologia defendido na Universidade Paris Diderot. As observações no canal France 2 aconteceram entre 2003 e 2007, e as entrevistas foram realizadas entre 2003 e 2009.
 
2 Cf. Laurent Bonelli, La France a peur. Une histoire sociale de l’“insécurité” [A França está com medo. Uma história social da “insegurança”],La Découverte, Paris, 2010, capítulo IV.
 
3 Ler Pierre Rimbert, “Envahissants experts de la tolérance zero” [Invasores especialistas na tolerância zero], Le Monde Diplomatique,fev. 2001.
 
4 Cf. Julie Sedel, Les Médias et la Banlieue [As mídias e a periferia],INA/Le Bord de l’eau, Lormont, 2009.
 
http://www.diplomatique.org.br/acervo.php?id=3048
 
Luis Nassif

1 Comentário

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  1. Isso apenas mostra uma

    Isso apenas mostra uma coisa… a TV (e a mídia em geral) interessa-se cada vez menos em entender o que mostra em detrimento de tentar vender – para os públicos classe A e B – notícias que agreguem valor de mercado. No dia em que o IBOPE, este lixo, mostra o crescimento da aprovação de Dilma, conclui-se que a tendência para este tipo de comportamento abrange toda a grande e inútil Imprensa ocidental. 

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