Brasil dá vexame nos 500
Jornais, rádios e tevês do mundo inteiro foram testemunhas de um vexame brasileiro que dificilmente será esquecido.
O que deveria ter sido a festa dos 500 anos de Brasil terminou em violência da Policia Militar contra indios e estudantes; isolamento inconstitucional da cidade de Porto Seguro; irritação dos turistas e uma festa para poucos privilegiados.
O jornalista Daniel Thame estava lá e relata, com todos os detalhes, o que realmente aconteceu naquele 22 de abril de 2000 em Porto Seguro.
Muitos dos detalhes foram ignorados pela midia nacional, que ainda tentou salvar o clima de festa promovido pelos governos estadual e federal. Mas nosso vexame foi inevitável.
Caravela de R$4 mi não serve para nada
A réplica da caravela de Cabral, construída em Salvador para participar da festa dos 500 anos de Brasil não navega, não empolga, não veleja.
Somando um desperdício de dinheiro público de R$4 milhões, a réplica tentou navegar por quatro vezes sem conseguir, sendo obrigada a voltar ao estaleiro.
Há 500 anos atrás engenheiros portugueses contruiram a caravela original sem a tecnologia de hoje e ela navegou da Europa até a Bahia sem problemas.
Hoje, com tecnologia de ponta e motores possantes disponíveis, nossos engenheiros parecem ter perdido 500 anos de estudos e conhecimento.
Indios escrevem carta dos 500 anos
lembrando, entre outras coisas, que nossa sociedade foi “fundada na invasão e no exterminio dos povos que aqui viviam, foi construida na escravidão e na exploração dos negros e dos setores populares.
É uma história infame, é uma história indigna.”
O documento, escrito ao final da Conferência dos Povos e Organizações Indigenas, em Coroa Vermelha, no sul da Bahia, exige o cumprimento dos direitos garantidos na Constituição, entre eles a demarcação e devolução das terras indigenas, retirada dos invasores e proteção contra eles, apuração dos crimes cometidos contra os indios e a punição dos culpados. Leia a íntegra das exigências neste link.
Polícia barra povo e FHC faz festa vip dos 500 anos
Dois episódios ocorridos na tarde-noite de sexta-feira, dia 21, ajudam a entender o festival de selvageria em que se transformou a festa dos 500 anos do Brasil, exaustivamente preparada para coroar o Governo da Bahia e, principalmente, catapultar o senador Antonio Carlos Magalhães para a sucessão de Fernando Henrique Cardoso.
Por volta das 16 horas, policiais militares fortemente armados bloquearam a rodovia que liga Bahia a Porto Seguro. Policiais militares alegavam cumprir ordens da Defesa Civil, já que a cidade não comportava mais ninguém. Tudo perfeito, à exceção de um mero detalhe: Porto Seguro não tem Defesa Civil. O objetivo era evitar que os sem-terra, acampados em Bahia, entrassem em Porto. O bloqueio foi extendido a turistas e até aos moradores das duas cidades. Um turista que veio de João Pessoa, na Paraíba, exibiu as reservas de hotel e afirmou que seu direito de ir e vir, garantido pela Constituição, estava sendo desrespeitado.
A resposta do policial merece entrar para os anais da história do Brasil:
-Aqui na Bahia quem manda é o Antonio Carlos Magalhães.
Ou seja, pega a Constituição e…
Por volta das 20 horas, é realizada em Coroa Vermelha a plenária de encerramento da Conferência dos Povos Indígenas, que reuniu cerca de 3 mil índios de 150 tribos de todo o País. Exaltadas, lideranças indígenas se referiam a FHC usando termos como “canalha”, “vagabundo”, “sem palavra”. O ultimo a falar foi o pataxó Luiz Tiliá. Coube a ele dar o tom da conferência:
-Amanhã nos vamos fazer uma caminhada até Porto Seguro e a polícia não vai deixar. Quero que cada tribo junte os dez guerreiros mais fortes. Eles vão na frente, porque nós vai passar de qualquer jeito.
Um vidente previu chuvas e trovoadas em Porto Seguro durante o 22 de abril. Acertou na previsão do tempo e na metáfora.
Chovia torrencialmente em Coroa Vermelha quando cerca de mil integrantes do movimento Outros 500, formado principalmente por estudantes mal saídos da adolescência, marchavam para a área onde foi realizada a conferência indígena. O objetivo era de juntar aos índios na caminhada até Porto Seguro.
Aí, surge polícia militar. Um manifestante negro é agarrado pelos cabelos. Sua companheira tenta defendê-lo e é jogada ao chão. O tumulto estava formado. Policiais atiram para o alto, jogam bombas de gás lacrimogêno e espancam quem aparece pela frente.
Assustados, os manifestantes correm para as casas dos pataxós e respondem às agressões com pedradas. Uma das pedras atinge o índio Crispim na cabeça.
Pronto. Estava dado o pretexto para que o comandante da operação, Wellington Muller, prendesse cerca de 140 integrantes do Outros 500. Alegou que estava agindo em defesa dos índios, embora os próprios indígenas alegassem que a pedrada em Crispim fora acidental e provocada pela truculência com que a polícia investiu contra os manifestantes.
Procuradores da República, a senadora Marina Silva, os deputados Haroldo Lima e José Dirceu e a deputada estadual Alice Portugal tentaram, em vão, argumentar que as prisões eram ilegais e que a violência dos PMs era injustificada. A todos, Muller respondia com um monocórdico “não reconheço sua autoridade.”
Estava armado o palco para um conflito de proporções maiores e ele evidentemente ocorreu. Por volta das 11 horas, índios marchavam para Porto Seguro quando encontraram uma barreira de PMs, incluindo o batalhão de choque. Antes mesmo que os índios se aproximassem os PMs, com o ensandecido Muller à frente, começaram atirar com balas de borracha e a jogar bombas de gás lacrimogêneo. Saldo: mais de 30 feridos, entre eles nenhum policial militar, prova maior de que não houve confronto e que apenas uma das partes bateu.
E como bateu! Jornalistas de todo o Brasil e da várias partes do mundo comentavam que a repressão aos índios, negros e sem-terras já era previsível. O que assustou a todos foi a violência com que a polícia militar agiu. Era como se não bastasse apenas impedir que os manifestantes chegassem a Porto Seguro mas, como disse a senadora Marina Silva, deixar bem claro a todos que nesse país lugar de pobre é na senzala, enquanto a classe dominante goza os prazeres da casa grande.
Corta, então, para a casa grande. No estreladíssimo hotel Vela Branca, cercado por um forte aparato de segurança, Fernando Henrique e o presidente de Portugal Jorge Sampaio almoçam com convidados. A elite empresarial e política do País. Num pronunciamento insosso, FHC falou dos avanços sociais do país, alfinetou os sem-terra e, por fim, fez um brinde com a legítima cachaça brasileira.
Do lado de fora do banquete, uma cena insólita. Impedidos de trabalhar (desta vez a truculência ficou por conta dos seguranças e dos burocratas do Itamarati), jornalistas sentaram no chão e cantaram o Hino Nacional. Minutos depois, numa entrevista coletiva montada às pressas, FHC tentou ironizar e cantou também o Hino Nacional. Errou a letra duas vezes.
O que esperar de um presidente que, já no segundo mandato, não sabe o hino do País que governa?
Para que a visita, prevista para durar quatro dias e encurtada sucessivamente até se limitar a meras três horas, não se limitasse ao almoço, o presidente visitou a Cidade Histórica, reformada pelo Governo do Estado. Cumprimentou a simpática família Schürmann que voltava de uma viagem de dois anos pelo mundo, plantou uma muda de Pau Brasil, acendeu a Chama do Conhecimento, viu atores fantasiados de índios e posou para fotos abraçado a baianas do acarajé.
Os moradores da Cidade Histórica viram a festa da janela, impedidos que estavam de sair de casa.
Era visível o desconforto do senador ACM e do governador César Borges. O primeiro, perguntado sobre a repressão aos índios e sem-terras, respondeu que preferia não ver, porque hoje é um dia de festa, um dia para os brasileiros comemorarem. O segundo afirmou que nós apenas mantivemos a ordem, garantindo a segurança do presidente.
Sensato, o senador Paulo Souto condenou a maneira como o processo foi conduzido:
-O Governo do Estado fez grandes obras em Porto Seguro, urbanizou Coroa Vermelha, construiu um Centro de Convenções fantástico, mas o que vai repercutir no mundo mundo todo são os tumultos.
Acertou na mosca. A imprensa brasileira (incluindo a Rede Globo, que em determinado momento tentou se apoderar da celebração dos 500 anos) deu amplo destaque à pancadaria e pouco falou da visita ao Centro Histórico. Jornais como o New York Times, dos EUA, o Libération, da França, e o Independent, da Inglaterra, falaram da violência contra os indígenas.
A foto do índio Gildo Terena, ajoelhado no asfalto e de braços abertos pedindo clemência aos policiais, saiu na capa dos principais jornais do planeta. A mesma imagem, com a sequência onde Terena é atingido por uma bomba de gás lacrimogêneo e sem seguida pisoteado pelos PMs foi veiculada em centenas de emissoras de televisão.
Fernando Henrique foi embora antes de assistir ao espetáculo. O dia em que o Brasil nasceu, misto de teatro e cinema com luzes e fogos de artíficio. Escapou de um derradeiro constrangimento.
Revoltados porque o show era apenas para convidados do governo e pela colocação de um tapume que impedia qualquer vista do espetáculo, turistas e moradores primeiro protestaram com xingamentos. Depois, jogaram pedras aleatoriamente. Antes que a revolta ganhasse proporções incontroláveis, a polícia chegou e, conhecedores do que havia ocorrido com os índios, estudantes e sem-terras, as pessoas preferiram optar por programas menos arriscados, como passear pela Passarela do Álcool.
Os relógios marcavam duas horas e trinta minutos do dia 23 de abril quando voltou a chover torrencialmente em Porto Seguro. Entre irônico e revoltado, um bêbado comentou:
-Depois de uma confusão dessas, na festa dos 1000 anos do Descobrimento eu não venho de jeito nenhum.
Provavelmente nem FHC, ainda que na remota hipótese de sucessivas reeleições e da imortalidade que só os que se julgam deuses costumam almejar. Nem FHC…
Daniel Thame, de Porto Seguro

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