A desumanidade atual, por Leonardo Boff

Como é possível tanta desumanidade? O que somos finalmente? Por que Deus se cala diante de tanta maldade? Não são poucos os que desesperam da humanidade. Merecemos ainda viver sobre este planeta?

ONU – Flickr

da Terra é Redonda

A desumanidade atual

por Leonardo Boff*

Nietzsche repetiu muitas vezes que o desumano (allzumenschlich) pertence também ao humano. Isso se deriva do fato de nossa condição humana ser simultaneamente racional e irracional, caótica e harmoniosa. Não como defeito de criação, mas como dado de nossa realidade histórica. Também o processo cosmogênico mostra a mesma característica, pois caos e cosmos andam juntos. Temos a ver, portanto, com uma constante cosmológica, social e individual. Que isso é verdade vemos na pérfida guerra Israel-Hamas. Este último praticou atos medonhos de terrorismo, de matanças indiscriminadas de habitantes de Israel e sequestro de duas centenas de pessoas. Este último revidou com dobrada violência, matando também indiscriminadamente pessoas, especialmente crianças e mães, arrasando hospitais e lugares sagrados. Mostrou-se um estado terrorista. Em ambos os lados verdadeiros crimes de guerra beirando o genocídio embrionário.

Todos ficamos estarrecidos: como é possível tanta desumanidade? O que somos finalmente? Por que Deus se cala diante de tanta maldade? Não são poucos os que desesperam da humanidade. Merecemos ainda viver sobre este planeta? Uma sombra de tristeza e de abatimento marca o rosto de chefes de estado, de jornalistas e de praticamente todos que aparecem nas telas de televisão e entre nós. De modo comovedor de nos fazer chorar comparecem as figuras ensanguentadas de palestinos, carregando em seus braços filhinhos e filhinhas assassinadas.

Ficamos abatidos e indignados porque dentro de nós se faz ouvir o outro lado de nossa realidade: somos principalmente seres de amor, de empatia, de solidariedade, de compaixão e de renúncia à toda vingança. Contra toda a maldade, (sombra) reafirmamos essa dimensão de bondade (luz). De forma impactante deixou por escrito pouco antes de ser morta sob os escombros em Gaza, a romancista e poeta palestina Heba Abu Nada: “somos pessoas Justas e do lado da Verdade”. Sim, ela nos confirma que somos principalmente justos e do lado da verdade, do amor e da compaixão.

Cabe reconhecer, no entanto, que o lado irracional e perverso (embora nunca se perde totalmente o momento racional pertencente à natureza humana) é predominante naqueles que conduzem a guerra, especialmente Israel, os EUA e seus aliados europeus, a comunidade internacional (quem são?) que se mantém calada e inerte face à morte de milhares de civis, crianças inocentes nos bombardeios israelenses. Parece que se decretou a morte lenta com o fechamento de todas as fronteiras, de comida, de água, de medicamentos e de energia.

Este é o cenário dos poderes dominantes, dos donos da guerra, mais interessados na disputa geopolítica e no bilionário negócio das armas do que em salvar vidas humanas. Afinal, dizem, “são palestinos, sub-humanos” e tidos por grupos extremados de Israel, até pelo ministro da defesa como “animais” e assim devem ser tratados, eventualmente, exterminados.

Tal cenário é contrastado pelas multidões que no mundo inteiro, no mundo árabe, nos EUA, na França, na Alemanha, em outros países e um pouco no Brasil que se manifestam aos milhares nas ruas é se colocam ao lado dos castigados coletivamente, dos mais fracos, dos palestinos da Faixa de Gaza, mostrando que querem humanidade e não ataques de desumanidade. Mesmo em situação de guerra existem leis (ius in bello) que, se violadas, configuram crimes de guerra como matar inocentes crianças, atacar hospitais, escolas e lugares sagrados. É o que vem sistematicamente ocorrendo nos bombardeios.

O que nos diz a melhor ciência contemporânea, a ciência da vida, da Terra e do cosmos? Ela nos convence de que o nosso lado humano e luminoso pertence ao DNA (manual de instruções da criação humana) de nossa natureza. James Watson e Francis Crick em 1953 descreveram a estrutura em hélice da molécula DNA. James Watson em seu livro DNA, o segredo da vida (Companhia das Letras) confirmando o que São Paulo escreveu sobre o amor na primeira epístola aos Coríntios, assevera: “Tão fundamental é o amor à natureza humana que estou certo de que a capacidade de amar está inscrita em nosso DNA – um São Paulo secular diria que o amor é a maior dádiva de nossos genes à humanidade… esse impulso, creio, salvaguardará nosso futuro” (p. 434).

Não outra coisa sustentam os neurocientistas e biólogos (confira as opiniões reunidas por Michael Tomasello no livro Por que nós cooperamos (Warum wir kooperieren): “No altruísmo um se sacrifica pelo outro. Na cooperação muitos se unem em vista do bem comum” (p. 14). O conhecido neurobiólogo Joachim Bauer do famoso Instituto Max Plank, no livro Princípio humanidade:por que nós, por natureza, cooperamos e no outro O gene cooperativo (Das cooperative Gen) comprova: “Os gens não são autômatos e de modo algum ‘egoístas’(como quer falsamente Richard Dawkins), mas se agregam uns aos outros nas células da totalidade do organismo…todos os sistema vivos se caracterizam pela permanente cooperação e comunicação molecular para dentro e para fora”(p.183-184).

Tais afirmações que poderíamos multiplicar com outros grandes cientistas, mostram que toda violência e guerra são contra a nossa natureza mais essencial, feita de cooperação, amor, solidariedade e compaixão, embora, como afirmamos anteriormente, exista também o impulso de morte e de agressão. Mas este pela civilização, pelas religiões, pela ética e pela participação política de todos (democracia ecológico-social), pelo esporte e pala arte, possa ser mantido sob controle, como, aliás, afirmava Sigmund Freud respondendo a Albert Einstein.

O que estamos assistindo é a falta total de controle sobre esta dimensão obscura e desumana (também demasiadamente humana) que está produzindo mortes e destruição. Aqueles que poderiam se empenhar na contenção da desumanidade e na manutenção de nossa humanidade mínima, estão, vergonhosamente inertes face à limpeza étnica perpetrada pelo Estado de Israel. Enquanto isso milhares estão sendo mortos sob escombros produzidos pelos implacáveis ataques aéreos do exército israelense. Curiosamente, os EUA estão gastando 100 bilhões de dólares para produzir armas de morte e sustentar a guerra na Ucrânia e a guerra Israel-Hamas, apoiando incondicionalmente o estado de Israel dando luz verde para um desproporcional contra-ataque. Enquanto isso, a China está empenhando 100 bilhões de dólares para implantar pacificamente o Cinturão e a Rota da Seda. São duas modalidades contrárias de política, uma propiciando melhoria dos países, especialmente dos mais pobres pelo caminho da paz e a outra da guerra, sempre usada pelos EUS no Iraque, Afeganistão, Síria, Líbia e em outros tantos lugares para assegurar sua excepcionalidade e seu poder unipolar.

Basta. O que as maiorias da humanidade desejam desesperadamente é um mundo onde todos possam caber em paz, com o suficiente e o decente para todos, na mesma Casa Comum, agora em guerra e sob o fogo.

Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escritor. Autor, entre outros livros, de Fundamentalismo, terrorismo, religião e paz (Vozes).

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Redação

2 Comentários

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  1. Se se conseguisse levar Biden, Netanyahu e Macron, entre outros Warmongers e soltá-los no meio da população de Gaza e deixá-los à espera e à mercê das bombas, o massacre teria um fim rapidamente. Mas como as vidas desses Warmongers estão seguras, eles não estão se importando com a carnificina. War Pigs covardes

  2. A imprensa livre de isenção repete à exaustão, que o coflito é entre Israel e Hamas. Para constatarmos a mentira, basta lembrar que o Hamas foi criado na décade de 1980, quando o conflito entre palestinos islamitas e judeus europeus já acontecia desde o início do século 20 há pelo menos 70 anos. è preciso sermos claros: O conflito nasceu quando os sionistas europeus que não tinham nenhuma ligação com a palestina, começaram seu projeto de criação de um estado judeu.Para tal, era imprescindível expulsar os palestinos islamitas que viviam em paz com remanescentes judeus palestinos e cristãos, há mais de mil anos na palestina. Um dos slogans expalhados pelos sionistas era: Um povo sem terra para uma terra sem povo. Tal afirmação se caracteriza como meia verdade, pois os seguidores do judaismo na Europa não tinham terra, mas a Palestina tinha um povo sim, que seguiam 3 religiões:Islamismo, Judaísmo e Cristianismo. Observem que os sionistas ignoraram até os judeus palestinos. Portanto temos que gritar bem alto. A guerra é entre o estado de Israel contra o povo palestino Islamita e que a intenção de Israel é eliminá-lo ou reduzí-lo a um pequeno número. Israel pode até destruir o Hamas, mas outras organizações semelhantes surgirão e Israel corre o risco de no futuro perderem o seu estado, pois o povo judeu continuará existindo. È oportuno registrar que por pelo menos duas ocasiões ele foi suprimido. Na primeira vez pelos caldeus, na segunda pelos romanos.

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