A difícil demarcação do técnico e do político, por Luis Felipe Miguel

A difícil demarcação do técnico e do político

por Luis Felipe Miguel

A justa revolta com a decisão da comissão da Câmara, ampliando a autorização para o uso indiscriminado de venenos na agricultura, ilustra alguns problemas da gestão de sociedades complexas, como as contemporâneas, que não permitem respostas fáceis.

Numa democracia, a vontade popular deve ser soberana, certo? Então por que estamos reclamando quando os representantes do povo avocam a si a decisão e afirmamos que ela devia ser deixada nas mãos de agências técnicas de vigilância sanitária e proteção ao consumidor?

Porque a questão é “técnica”? Mas quem define a fronteira do “técnico” e do “político”? Por exemplo: liberais austríacos julgam (ou fingem) que a gestão da moeda é uma questão técnica e por isso bradam por um Banco Central independente, imune a qualquer interferência da vontade política. Pedro Parente afirmava que sua política de preços na Petrobrás era “técnica” e a mídia saudava o “fim da ingerência política” na empresa. E assim por diante.

No caso do Brasil, esta questão se coloca com urgência. O Executivo, surfando no discurso neoliberal, exime-se da responsabilidade política por sua gestão macroeconômica, apresentada como “técnica”. E o Legislativo, instrumentalizado por lobbies diversos, tem atropelado as atribuições de competências que ele mesmo fixara na lei e avançado sistematicamente sobre decisões que antes eram deixadas na mão de especialistas, da liberação de medicamentos à escolha de livros didáticos para as escolas. No caso dos agrotóxicos, fizeram às escondidas, mas em outros fazem às claras, batendo no peito para invocar a “vontade do povo”.

A situação é complicada não apenas porque a fixação da fronteira entre “técnico” e “político” é, ela própria, uma decisão política, mas também porque a resposta técnica, além de muitas vezes envolta em controvérsias científicas, nunca é isenta de política. Os órgãos que liberam agrotóxicos fazem um balanço entre os riscos à saúde dos consumidores e o impacto econômico na produção de alimentos que nenhuma fórmula da química resolve. No processo, sofrem, eles próprios, pressões de diferentes tipos. São, portanto, também órgãos políticos. Não deve ser à toa que, mesmo sem intervenção da Câmara dos Deputados, a política brasileira de agrotóxicos é muito mais permissiva do que a da União Europeia.

Remeter todas as decisões para plebiscitos populares, como querem algumas propostas ingênuas à esquerda, depende de uma fé pouco sustentável na iluminação coletiva do povo. Desprezar a expertise estabelecida em questões sensíveis é desperdiçar o investimento social na produção de conhecimento, mas negar o componente político de todo processo decisório é render-se à tecnocracia. Nenhuma resposta simplista nos ajuda a equacionar esta questão.

 

Luis Felipe Miguel

1 Comentário

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  1. Existe

    Existe o técnico e o tecnocrata , existe o político e o demagogo.

    Mas o Brasil é um país em que “ser teórico” é una ofensa…

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