A extrema direita nos EUA quer reescrever a história da escravidão e do Holocausto, por Nadejda Marques

Desde 2020, ativistas conservadores e da ultra-direita com espaço nas redes de tv e em campanhas na mídia social argumentam que a Teoria Racial Crítica teria uma força nefasta

MAUS, por Nadejda Marques

Em 12 de fevereiro de 1946, Isaac Woodard, 26, sargento do exército americano durante a Segunda Guerra Mundial recém retornado aos Estados Unidos após três anos em campo de batalha, tomou um ônibus que o levaria a sua casa na Carolina do Sul. Isaac Woodard era negro. Em um momento, ele pediu ao motorista do ônibus que fizesse uma parada rápida para ir ao banheiro. O motorista não quis parar e os dois discutiram. Na próxima parada, Isaac Woodward foi expulso do ônibus e levado sob custódia pelo chefe da polícia local. O chefe de polícia e outro policial o espancaram com um cacetete. Um dos policiais o golpeou com o cabo de um revólver na nuca e ele caiu inconsciente. Quando começava a voltar a si, foi golpeado pelo chefe de polícia que acertou seus olhos com o cacetete tornando-o permanentemente cego.

O incidente foi manchete nos jornais e rádios nacionais, inclusive na voz de Orson Welles que na época era um radialista de sucesso. Quando o policial foi inocentado por um júri composto exclusivamente por pessoas brancas, após apenas 30 minutos, a injustiça gritante do caso ficou escancarada e mudou o curso da história americana. Dois anos depois, o então Presidente Harry Truman proibiu a segregação nos escritórios federais e das forças armadas. O caso também influenciou a determinação de 1954 da Corte Suprema no caso Brown v. Board of Education finalmente proibindo a segregação nas escolas públicas americanas.

Leis anti-segregação não foram suficientes para reverter o racismo sistêmico e generalizado nos EUA. Partindo da ideia de que o conceito de raça é uma construção social e que o racismo é mais do que vieses individuais ou preconceito abrangendo o sistema legislativo, jurídico, as políticas públicas e também da educação, acadêmicos e juristas, dentre eles, Derrick Bell, Kimberlé Crenshaw e Richard Delgado, nos anos 70, desenvolveram os pilares básicos do que seria a Teoria Racial Crítica (Critical Race Theory). Suas ideias informaram outras áreas das ciências sociais sobretudo a sociologia e a pedagogia que desenvolveram a forma atual da Teoria Racial Crítica.

Adotar a Teoria Racial Crítica (TRC) nas escolas primárias e secundárias ajudaria às crianças americanas a entender as injustiças históricas do país. Como as crianças seriam capazes de entender injustiças desde muito cedo — e algumas delas sofrem injustiças desde muito jovens — a Teoria Racial Crítica ofereceria através da análise honesta de fatos históricos e não através de contos da carochinha um maior entendimento e engajamento delas em questões sociais importantes.   

Desde 2020, ativistas conservadores e da ultra-direita com espaço nas redes de tv e em campanhas na mídia social argumentam que a Teoria Racial Crítica teria uma força nefasta pois ensina as crianças brancas a sentirem culpa e impõe questionamentos raciais existencialistas. Ou seja, para eles, expandir os direitos dos estudantes negros é restringir os direitos dos estudantes brancos e, assim, a Teoria Racial Crítica seria “uma ameaça aos Estados Unidos.”

Desde então trava-se uma batalha cultural com a aprovação de leis anti-TRC em vários estados como Idaho, Iowa, Oklahoma e Tennessee e a censura e proibição de livros. A extrema direita nos Estados Unidos quer reescrever a história da escravidão e do Holocausto. A lista dos livros proibidos é extensa e absurda. Ontem, por exemplo, um distrito escolar do Tennessee proibiu o romance gráfico, MAUS, do cartunista premiado Art Spiegelman. MAUS conta a estória dos pais do autor que por serem judeus foram presos em campos de concentração nazista. O livro também fala do suicídio de sua mãe quando ele tinha 20 anos e da relação do autor com seu pai. Maus!

Provavelmente essas novas leis e proibições por serem inconstitucionais ou representarem uma restrição à liberdade de expressão não durarão muito. Mas, sem dúvida, já causam grandes danos. Não é fácil controlar o que acontece em milhares e milhares de salas de aulas por todo um país, mas o terror que geram na população geral constrange educadores que talvez mudem seus planos de aula e currículos para evitar reclamações de pais, administradores e políticos. Além disso, criam precedentes que servem a extrema direita em outros países. Não é coincidência. Como perguntou o presidente brasileiro em uma certa ocasião, “estão sentindo semelhança com o Brasil?”.   

Nadejda Marques é PhD em Direitos Humanos e Desenvolvimento pela Universidade Pablo de Olavide (Sevilha, Espanha) e trabalha com direitos humanos há mais de duas décadas. Ela é autora de Nevertheless, They Persist: how women survive, resist and engage to succeed in Silicon Valley (2018) sobre a história do sexismo e a dinâmica de gênero atual no Vale do Silício. Escreveu ainda o livro auto-bibliográfico chamado “Nasci Subversiva” sobre a ditadura no Brasil da perspectiva de uma criança.

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Redação

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