Fernando Horta
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A memória, a História e o esquecimento, por Fernando Horta

Foto Memória Institucional/Pimenta com Limão

A memória, a História e o esquecimento

por Fernando Horta

O título é cópia de uma das grandes obras de Paul Ricoeur. O que o filósofo francês demonstra no livro é a base da política do século XXI até aqui.

Paul Ricoeur afirma que “lembrar” é um ato político. As forças políticas, e dentre elas o Estado, decidem o que deve ser lembrado, o que deve ser mantido e de que forma. Antigamente isto era feito por meio de monumentos, museus, datas comemorativas, feriados, além dos discursos e crônicas. Os objetivos eram manter vivas as memórias escolhidas não por sua alegada “importância histórica”, mas por avaliações morais que serviam a projetos de poder. Como Eric Hobsbawm, Benedict Anderson e outros tinham mostrado, o “nacionalismo” é fruto de um projeto que designa o que deveria ou não ser lembrado.

A batalha pelo ato de “lembrar” foi a tônica do século XX. Durante as guerras, uma intensa luta para mostrar que a Europa era oriunda de lutas por “liberdade” ou por “unidade racial” foi travada. Nos EUA, a luta era pelos sentidos da Guerra Civil de 1861-1865. Teria sido uma luta fratricida por “liberdade” (em um sentido amplo) ou uma luta de um país de homens contra a escravidão negra? Após a segunda guerra, a luta de sentidos continua. Era necessário reconstruir imageticamente a Europa e, neste contexto, apagar as ideologias de supremacia racial, que tinham sido a marca do continente desde o século XIX. A Alemanha sente diretamente este processo, e as reflexões Jürgen Habermas são essenciais para mostrar o poder político por trás do ato de “lembrar” durante a “desnazificação”.

Contudo, se a luta pelas memórias não são a novidade das reflexões de Ricoeur, o seu grande argumento é afirmar que o “esquecimento” é também – e talvez de forma mais flagrante – um processo que responde a projetos políticos. Se “lembrar” é numa atividade positiva política, fazer esquecer era também motivo de luta. Não se trata, como mostra Ricoeur, do processo natural e individual de perder os registros do tempo em uma ou duas gerações. O “esquecimento” de que fala Ricoeur é a ação política voltada a renomear, ressignificar ou mesmo calar sobre determinados fatos ou narrativas do passado que não interessam aos projetos políticos do presente.

A comunidade judaica mundo afora luta incessantemente tanto pelo ato de lembrar quanto pelo de esquecer. Por um lado, a manutenção viva das memórias do holocausto são um projeto político de toda a comunidade, por outro, o Estado de Israel lutando pelo esquecimento da brutalidade com que age e sempre agiu sobre a Palestina. Normalmente, todos os que disputam os sentidos ligados a esta temática fazem, de forma deliberada ou não, confusão entre as narrativas. Não raro acusações idênticas são proferidas pelos dois lados, o que revela uma discussão sobre objetos diferentes, em tempos diferentes que é descuidadamente “presentificada”.

Os movimentos negros fazem também as lutas de sentido. Pelo mundo afora a ideia de trazer à luz a história da África é muitas vezes classificada como “vitimismo” por grupos reacionários e conservadores. E, se é verdade que tais grupos reconhecem um projeto político articulado, eles nunca respondem por que a África foi apagada dos currículos e das memórias? Foi apagada porque o projeto político da superioridade do homem branco, cultivado fortemente na Europa do século XIX, assim ordenava (e ainda ordena). A luta pelos sentidos de “lembrar” é denunciada pelos conservadores. A luta pelo quê esquecer, entretanto, não é vista como um objetivo político. Às populações brancas e conservadoras, seus próprios projetos políticos são erroneamente apresentados como “normais” ou “legais”.

A Lava a Jato, juntamente com toda a perseguição às esquerdas na América Latina, um projeto conservador para “fazer esquecer” as duas primeiras décadas do século XXI. A prisão e inabilitação de Lula, a retirada de Dilma, as reformas e mudanças são objetivos secundários. A luta “contra a corrupção”, nem secundária é como objetivo. É apenas a desculpa para forçar o “esquecimento”. Nesta esteira, o vice-governo Temer anuncia, nesta semana, que vai mudar o nome do “Bolsa Família”. Atitude que cumpre o mesmo papel que a tentativa de classificar os governos do PT como “a maior corrupção da história do país”. Hoje, um artigo publicado na CNN traz semelhante argumentação sobre o governo Trump. Segundo, Julian Zelizer, o governo Trump é a resposta conservadora que tenta apagar Obama. Trump governa especificamente com pauta invertida do que fora a pauta do presidente anterior.

Na Europa, o processo mais dramático de organização do “esquecimento” histórico se dá sobre as memórias da URSS. As narrativas que visam retirar toda e qualquer legitimidade sobre as conquistas soviéticas se cristalizam no errôneo chavão do “não deu certo”. E correram o mundo assim. O problema é que este “apagar de memórias” permitiu, e ainda permite, que Vladimir Putin se beneficie deste novo arranjo. Putin assume o lugar histórico das memórias surrupiadas do período soviético. O ocidente não foi capaz de oferecer nada em troca das memórias soviéticas retiradas. O retorno ao czarismo dos Romanov não era uma opção válida, e os russos recriaram a mítica “mãe-Rússia”, e sobre ela reorganizam suas identidades. O efeito colateral é o ressurgimento de um anti-americanismo e anti-ocidentalismo na Rússia atual. Claro que joga papel importante a presença militar ameaçadora da OTAN, mas os russos se compreendem no século XXI, como afirmou Putin em seu discurso do dia primeiro de março, como “a força que contrabalança o poder americano”.

O projeto conservador de esquecimento dos avanços progressistas, no início do século XXI, atinge todos os países do mundo. Na África do Sul, há a tentativa clara de apagamento da política de “concertação racial” colocada em prática por Mandela. No Japão, há o retorno das capacidades militares, juntamente com a ação deliberada de contestação das narrativas da segunda guerra, que colocavam os japoneses como um dos principais fomentadores daquela barbárie. O “Brexit” da Inglaterra deve ser entendida também no mesmo sentido. O mundo do século XX, orquestrado com uma série de amarras contra as barbáries das guerras e do fascismo, sucumbe frente aos projetos de esquecimento conservador.

Como respostas, a China de Xi-Jiping vota que este pode se manter no poder indefinidamente. O Partido Comunista japonês se torna a segunda maior força naquele país. Os movimentos negros nos EUA retomam instância vigilante e ativa e contestam as memórias da Guerra Civil. Na América Latina, volta-se a lembrar as conquistas de Che Guevara, Fidel Castro e Hugo Chavez. Desta forma, Lula se torna ainda mais importante por ser a grande liderança ainda viva. A própria Revolução Russa de 1917 é saudada e reexaminada e, em virtude da violência das tentativas de esquecimento, as memórias são usadas sem as possíveis críticas. A polarização é, assim, um mecanismo de defesa política. Se não há crítica e “mea culpa” por parte dos conservadores, fascistas e neoliberais, também não haverá pelas forças progressistas.

O problema é que nesta deliberada ação de reescrever acriticamente o passado, o início do século XXI é perigosamente semelhante ao início do século XX. E se a direita conservadora se mantiver neste caminho, para perseguir, prender a inabilitar fisicamente opositores políticos, então o tom das disputas do novo século será dado. Espero que o Brasil aprenda com a história. Se não fizermos nada contra os golpistas de 2016, em vinte anos surgirão movimentos que vão fazer pronunciamentos pela memória “do grande Michel Temer”, do guerreiro “Romero Jucá” e exaltando a “justa Carmem Lúcia” que colocaram milhões na pobreza e mataram outros milhões de fome mas “nos livraram do comunismo”. Talvez algum obscuro personagem agressivo, violento e sem qualquer legitimidade será o “novo Ustra”. Não me assusta a recolocação do projeto político de “concertação de classes” lulista. Me assusta a reedição do pacto da constituição de 1988. Aquela que perdoou ditadores, corruptos, torturadores e toda sorte de indecências políticas. Os silêncios e condescendências que colocaram o novo Brasil como tendo sua existência dependendo de permissão dada pela aliança entre militares e corruptos de centro-direita. Os coturnos que não foram punidos após 1988 voltaram a pisar na democracia e no povo em 2018. As togas de 2016 perdoadas também voltarão. Um país que não lida com seu passado nunca terá futuro.  

Fernando Horta

Somos pela educação. Somos pela democracia e mais importante Somos e sempre seremos Lula.

5 Comentários

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  1. pequena memória para um tempo sem memória
    “histórias que a história qualquer dia contará dos explorados e oprimidos que tentaram encontrar a soluçao” “glória a todas as lutas inglórias que através da nossa história nao esquecemos jamais. Salve o (almirante) negro que tem por monumento as pedras pisaxas do cais” (letra que menciona Antonio Candido, herói de nosso povo, enquanto a primeira letra fala de quem arriscou a vida por justiça durante a ditadura) E desta forma o poder, que torna precárias a vida de bilhóes de pessoas, oculta as lutas mais heróicas e abnegadas e talvez no futuro os livros de história escritos por essa direita profundamente anti-humana ou pelo fascismo que fortalece-se talvez ensinem aos nossos jovens que Ustra foi um herói. Mas sempre haverá lutadores da justiça e da liberdade carregando diariamete a verdade e a memória de antonios candidos, mauricios e do líder maior lula , pessoas que doaram-se totalmente a luta por um mundo justo e fraterno

  2. Os vampiros de passado ou a desumanização da memória!

    Ontem pela manhã, eu e minha esposa conversávamos sobre algum filme (Vixi maria, viu? Esqueci também o nome do filme) e tentávamos lembrar o nome de um dos protagonistas.

    Eis que para encurtar a conversa e nossa angústia pelo “branco” (já que o nome era relativamente conhecido e fácil de lembrar), minha enteada sacou seu gadget (telefone), deu um “google” e zás:

    Em segundos, tivemos não só o nome do filme e seus atores, mas resenhas, idades quando encenaram, filmografia da cada um, ufa!

    Somos uma família de problematizadores (o nome chique para gente chata e militante), e passamos a conversar sobre aquele evento.

    Conversa curta é verdade.

    Nossa memória foi terceirizada e digitalizada.

    A enorme facilidade conferida pelos mecanismos de busca nos tolhe, dia a dia, de um exercício fundamental para a Humanidade: O ato de lembrar.

    O que a mídia e outros instrumentos de controle ideológico têm feito até hoje vai parecer fichinha perto dos oceanos de algoritmos e suas enormes vagas (ondas) de manipulação.

    Por certo esse evento familiar não pode ser considerado como uma tendência, mas não deixa de ter certa conexão com o “todo”.

     

    Ora, ora, ora eis que Fernando Horta nos brinda com esse excelente texto sobre as tentativas (algumas bem sucedidas) de controle sobre a narrativa do passado, crucial para controle do presente e elaboração de perspectivas de futuro.

    O passado não pode ser mudado?

    Claro que pode, porque passado é antes de tudo, a narrativa sobre ele. E sendo assim, determinar e controlar essa narrativa é fundamental nos jogos de poder. 

    Não vou chover no molhado sobre o texto de Horta, está quase tudo ali.

    No entanto, chamo a atenção para esse ato quase instantâneo que praticamos todos os dias, e que ao menos no meu caso, tem dificultado cada vez mais a acumulação de memória.

    Para que perder tempo lembrando, basta dar um “google”?

    É isso.

    Com a enorme base de dados capturadas (cedida de forma gratuita e “voluntária” por nós, os idiotas), as empresas que controlam os mecanismos de busca já são capazes de alterar, dirigir e construir memórias para nosso consumo.

    Nem é preciso mencionar as enormes implicações que tal prerrogativa pode desencadear no caminhar da nossa História e da eterna luta de classes.

    É um universo onde nenhum Estado Nacional, nenhuma lei ou regulamentação chegou sequer perto de controlar. Acho que pouquíssimas pessoas ousaram debater o tema.

    Hoje há um pânico (justificável) de que a perda dessa “capacidade” de recorrer a mecanismos de busca promova o colapso da civilização ocidental.

    O material para chantagem e extorsão digitais, como vemos, é infindável.

    A perda do controle da memória é a perda de nossa condição precípua, a de sermos humanos, pois é a memória que nos fornece os ingredientes para empatia, para driblarmos as imposições do evolucionismo predatório em todos os aspectos de nossa sociabilidade.

    Há algum tempo, imaginávamos, e as pesquisas de Inteligência Artificial iam nessa direção, que a máquina para se parecer conosco tinha que processar rápido as informações.

    Nada disso.

    A rapidez não bastou para fazer as máquinas “pensarem”, pois antes de rapidez é preciso diversidade de conteúdo.

    Por isso os mecanismos de busca foram “a sacada” de todos os tempos,  e sugam nossa seiva (informação) como vampiros.

    Agora estamos rumo ao passo final, que também contraria uma noção ingênua, de que as máquinas ficariam parecidas com Homens.

    Nada, sem memória, ou com a memória controlada, seremos nós a parecer com elas.

     

  3.  
    Os policiais sádicos
    matam

     

    Os policiais sádicos

    matam os corpos

    Os jornalistas vendidos

    torturam a sanidade

    Os juízes bandidos

    executam a legalidade

    No Brazilzilzilzilzil

    Viver bem é muito pior

    Na puta-que-o-pariu,

    A mata é tão grande

    Que uma boa morte

    É sempre melhor

     

  4. Contra el olvido, la memoria

    Comandante Marcos, Entre la Luz e la Sombra

     

    http://enlacezapatista.ezln.org.mx/2014/05/25/entre-la-luz-y-la-sombra/

     

    Tentei ensinar (e aprender também) a fórmula de Baskhara, forma resolutiva da equação do segundo grau) para os proles. Eles questionam:

    “Porque eu devo aprender isso, se com dois cliques eu acesso não só essa mas muitas outras fórmulas?”

     

    E se, amanhã, não tivermos mais computadores?

  5. Parabéns, Nassif e Fernando Horta!
    Nassif, chegamos ao cerne da questão. Quando me perguntam sobre a origem da manjedoura dos coxinhas ou sobre o porquê de termos um nazifascista concorrendo à presidência, relembro sempre que não tivemos uma redemocratização digna desse nome, mas, sim, um rearranjo temporário de forças, uma trégua marcada por dois fatos: enquanto o ex-operário se esforçava por construir e inaugurar o maior número possível de escolas, seus inimigos continuavam no controle das mesmas, formando essa legião de egressos ou dos cursos de Moral e Cívica de 64 ou da Educação pós-FHC. Ou seja, assim como o programa MEC-USAID marcou o ensino na ditadura militar, a Nova Lei de Diretrizes e Bases e os Parâmetros Curriculares Nacionais sancionados por FHC em 1996/97 foram financiados pelo Banco Mundial e Banco Interamericano de Desenvolvimento, que impôs um modelo econômico orientado para a submissão dos países à lógica do mercado neoliberal – privatização, redução das tarifas de importação, contratação de empréstimos e pagamento de juros junto ao Fundo Monetário Internacional, privilegiando o superávit primário em detrimento do investimento em políticas públicas, sociais e na educação etc. Tanto o USAID quanto o BM/BID demonizaram, é claro, a esquerda, motivo pelo qual o símbolo oficial dos “anos de chumbo” – “Brasil, Ame-o ou Deixe-o” – continuou fazendo a cabeça da juventude, acrescido do “Vá pra Cuba” ou do mantra “VTNC”. Ou seja, desde a criação do Colégio D. Pedro II e do Instituto Histórico Geográfico do Brasil (IHGB) em 1837, na corte carioca, até os anos 1940, nossa História induzia seus alunos a seguirem os princípios que deram até nome à ongue de extrema-direita que mais angariava prosélitos à época, a TFP, tradição, família, propriedade e sobretudo pátria. A partir dessa época, a educação deixou de ser apenas para filhos da elite, já que a industrialização requeria mão de obra qualificada, entrando em cena nas escolas pensadores como Celso Furtado, Caio Prado Júnior e Karl Marx, até que o golpe militar chegou e, ciente de que “controlar o passado ajuda a dominar o presente e a legitimar tanto as dominações como suprimir as rebeldias” (Marc Ferro, prevendo o surgimento da revolta entre aqueles cuja história é proibida) pasteurizou nossa História como o
    USAID (United States Agency for International Development) recomendava às colônias estadunidenses. Com a decantada “redemocratização”, nada mudou e só os mais velhos sabem a razão das lutas sociais e o papel delas para o fim do Programa Nuclear, Mar de 13 e não de 200 milhas territoriais, retorno às eleições presidenciais, etc. A vitória de Lula sobre um candidato que pedia que se esquecesse o que havia escrito e marginalizou a universidade, neutralizando a SBPC e todas as instituições que lutavam contra a amnésia política ou Alzheimer ideológico, em nada alterou essa conjuntura, até desembocarmos na atual ditadura togada, aplaudida por seguidores dos patos verde-amarelos de uma federação de industriais adeptos da desindustrialização financiada a fundo perdido pelo poder público, além de batedores de panelas manipulados por uma mídia escrita e televisiva especializada em fake news destinados a perpetuar a extrema direita no comando do grande leilão dos bens coletivos ora em curso; além dos algoritmos de uma Internet que em nada ficam a dever ao Grande Irmão totalitário antevisto por George Orwel. Com uma educação cada vez mais dispensável graças ao Google e outras facilidades destinadas a enaltecer o analfabetismo político, como os cursos profissionalizantes que não façam sombra ao protecionismo estadunidense, estamos prestes a nos submeter à prisão do operário que ousou promover o país à condição de potência do Bric, bem como ao extermínio das vozes discordantes, motivo pelo qual o presente artigo e discussão podem ser vistos como subversivo passo inicial em direção à reeducação de um povo que, para não repetir os mesmos erros que ora nos subjugam, precisa e deve conhecer sua verdadeira História. Parabéns Nassif e Fernando Horta!.

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