As Fridas do século XXI nos convocam para a revolução. Quem vem?, por Cristiane Hillal

A revolução é contra o tempo do Deus Mercado. Esse Deus que vende normalidade e padrões estéticos como único caminho para a felicidade

do Coletivo Transforma MP

As Fridas do século XXI nos convocam para a revolução. Quem vem?

por Cristiane Corrêa de Souza Hillal

A educadora e jornalista Mariana Rosa conta que sua filha “criou uma inflexão no tempo: reviu as medidas e as porções no cálculo minucioso do possível”.

Ao contar os cuidados diários que tem com sua filha para esperar que seu corpo sinalize o momento certo de respirar e de comer, Mariana nos fala de ética: a ética do cuidado, e subverte, com a filha, o tempo. “É preciso aleijar o tempo. Criar brechas, fissuras, para que o ar circule, para que a vida tome fôlego”, disse ela. Aumentando o intervalo das colheradas de comida dada à filha, dos abraços, das ousadias e insubordinações, Mariana e Alice lutam pelas pausas de mil compassos, pelos sambas sobre o infinito e pela revolução.

A revolução é contra o tempo. Mas não contra o tempo do Deus Cronos, esse senhor tão bonito da música de Caetano Veloso, nem contra o Deus Kairós, esse menino fulgás que faz música, letra e dança, na voz – qualquer voz -, da eterna musa Marina.

A revolução é contra o tempo do Deus Mercado.

Esse Deus que vende normalidade e padrões estéticos como único caminho para a felicidade, essa mercadoria exibida nas vitrines das redes sociais que apenas os outros puderam alcançar. Esses outros que são os brancos, hetero, cis, magros, jovens, sem deficiência, e, claro, ricos. É contra esse Deus que confunde deficiências com incapacidades e que tem, no mesmo checklist, as metas insaciáveis de sucesso e os remédios antidepressivos para dopar os “felizes do instagram”, que elas fazem a revolução.

E não estão sozinhas.

Venho aqui para denunciar essas perigosas mulheres revolucionárias como quem denuncia, anuncia e enuncia a disponibilidade para uma outra lógica de mundo que precisa ser imaginada, sonhada e desejada por nós.

 Falo de Mariana, Laureane, Thais Becker e todas as mulheres com deficiência do coletivo feminista Helen Keller que desafiam padrões e o curso do tempo afirmando suas existências nesse mundo.

Mais do que anticapacitistas, essas mulheres são radicalmente feministas e cientes que a mesma narrativa política que justifica o patriarcado, a opressão racista e a heteronormativa, também massacra as pessoas com deficiência. No espectro de grupos que se identificam pela dor da exclusão, as mulheres com deficiência são as mais ousadas nas propostas de um novo mundo: Atenção senhores todos… empoeirados e engravatados, das cortes superiores de Justiça aos prédios espelhados da Faria Lima…: as mulheres com deficiência desejam!!!  

Desejam audiodescrição antes de reuniões e palestras. Tradução em libras. Rampas em prédios modernos e históricos. Acessibilidade digital. Desejam dançar, escrever, falar. Que se espere, em escuta atenta, por suas falas, mesmo que arrastadas. Desejam não serem mais reduzidas a diagnósticos médicos e a corpos desviantes ou defeituosos que precisam ser curados e reparados. Desejam dizer que podem ser mães, se assim quiserem. E que também fazem amor e sexo, se assim também quiserem, e para além da limitada perspectiva genital. Algumas, com eliminação de barreiras, podem trabalhar e produzir riquezas, outras não. E essas, pasmem senhores, seguem sendo mulheres desejantes, vivas, singulares e inventoras de tempos, linguagens e relações. 

A dissertação de mestrado da educadora Laureane Marília de Lima Costa traz importantes contribuições para a Educação Sexual Emancipatória como ferramenta de luta contra o capacitismo e a misoginia. Muitas mulheres com deficiência foram escutadas.

Laureane lhes escuta e eu escuto Laureane. Ela nos conta que as mulheres com deficiência estão fartas de relacionamentos afetivos marcados pela violência, naturalizada, por vezes, como uma consequência inevitável do estresse que o homem sente por viver com uma mulher com deficiência. Laureane explica que essas mulheres, reféns dos padrões de beleza, aprendem a odiar seus corpos e a sentirem vergonha de serem como são ao ponto de aceitarem todo e qualquer abuso sofrido como única possibilidade de vivência do amor. Muitas justificam o abuso como acidental e que, se não fosse seu problema físico, teriam se defendido sem se machucar tanto. Outras, que já experienciaram dolorosos processos de reabilitação, ponderam que o abuso até que não é tão ruim perto da ideia de não ter, por perto, o homem que ao mesmo tempo que bate, lhes tira da cama todos os dias.

Laureane me apresenta a mulher abusada por um médico ginecologista e, depois, desacreditada pela família.  Afinal, pensa a família, por qual razão um soberbo senhor, desses tão sabidos e poderosos, iria desejar um corpo de mulher com deficiência?

Para além dos dolorosos relatos, Laureane traz de forma clara a perspectiva do modelo social de deficiência, tal qual previsto no artigo 2º do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13146/2015).   

“Até por volta dos séculos XVIII e XIX, o discurso místico e religioso dominava as explicações sobre a deficiência, concebendo-a ora como fruto do pecado, ora como bênção divina, quando então essa narrativa foi questionada pelo modelo médico da deficiência. Assim, a culpa e o azar cederam espaço para a genética, as doenças e os acidentes. O modelo médico ou individual da deficiência entende que o impedimento corporal (lesão) é a causa da desigualdade social e das desvantagens experienciadas pelas pessoas com deficiência, elaborando uma explicação individualista e essencialista sobre a deficiência. A perspectiva biomédica categoriza os corpos como normais ou anormais. Assim, o corpo com deficiência é definido a partir da comparação e contraste com o corpo sem deficiência, logo, a deficiência é definida como um desvio do padrão normal de ser humano, acarretando medicalização e tentativas de correção do corpo com impedimento, enquanto a estrutura social permanece indiscutível.

Do mesmo modo que o discurso místico e religioso foi questionado pelo modelo médico da deficiência, este foi contestado pelo Modelo Social da Deficiência. De acordo com o último, a explicação sobre a deficiência desloca-se do indivíduo para a organização social. Assim, a explicação de que o impedimento corporal causa a deficiência dá espaço à explicação de que a deficiência é fruto da relação entre um corpo com impedimento e uma sociedade com barreiras ambientais e culturais, incapaz de atender à diversidade física, sensorial e intelectual das pessoas.”

Nesta linha, a revolução proposta por nossa Frida brasileira berra nos ouvidos do patriarcado capacitista que a deficiência não está em seus corpos, mas é também uma opressão social, uma narrativa política para justificar um mundo em que uns são melhores que outros. A posição de inferioridade estética, social, política de alguém jamais será natural, biológica ou inevitável.

E ela segue, com o dedo na grande ferida:

Assim como acontece com outros grupos oprimidos, às pessoas com deficiência são impostos estereótipos e distorções, restringindo a integridade de sua humanidade e reduzindo-as apenas a seus aspectos corporais que não se enquadram no padrão de normalidade. Um dos efeitos disso é a naturalização da situação de desigualdade, mantendo a organização social e do trabalho como está, a qual persegue a maximização dos lucros e, deste modo, define o valor das pessoas por sua capacidade produtiva, uma vez que as pessoas com deficiência são consideradas improdutivas, sua falta de produtividade deve ser administrada de modo a atrapalhar o mínimo possível a acumulação de lucro

Em escritas, discursos, palestras, me sinto convocada nos desejos das Fridas do nosso tempo a sonhar radicalmente com o mundo sob outra lógica, em que a busca pelo lucro de poucos não ceife as múltiplas possibilidades de existência de tantos, e a ética do cuidado seja, definitivamente, uma política pública.

Por falar em sonhos, no corpo que movimenta o mundo, da bailarina Marina Abib, também me vejo, todos os dias, convocada a dançar. Ao ver os vídeos de Marina Abib dançando, antes da encefalite que limitou os seus movimentos, e agora, vejo que o essencial, de singular beleza, permanece, e até com mais intensidade. Hoje, é possível ver o movimento interno que se apagava, antes, pelas habilidades extraordinárias da bailarina consagrada mundialmente.  É possível ver mais que um corpo talentoso dançando, mas é a própria vida, plena de desejo que seguiu, flutuante, desafiando o espaço e o tempo em encantamento próprio.

Não é mais possível não dançar com elas. Não escrever com elas. Não sonhar com elas. Não seguir… seguir… em movimento e busca … com elas.  

Ana, de Clarice Lispector, no conto “Amor”, teve uma epifania quando viu o cego mascando chiclete. Não era piedade. Era uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. “Era a pior vontade de viver”.  

É preciso atravessar as convenções internacionais, a constituição federal e os estatutos para enxergar, também, os corpos de mulheres com deficiência. Vejam só, soberbos senhores que ditam as normas deste mundo, eis a denúncia: as Fridas seguem vivas. Belíssimas, interessantes, desejantes, dançantes, falantes, amantes, movimentando o mundo e fazendo a revolução.

Quem vem?    

Cristiane Corrêa de Souza Hillal – Promotora de Justiça do MPSP e integrante do Coletivo Transforma Ministério Público.

Referências:

1) Costa, Laureane Marília de Lima. A perspectiva de mulheres com deficiência sobre gênero e sexualidade: contribuições para a educação sexual emancipatória

http://bdtd.ufj.edu.br:8080/handle/tede/40

2) Lispector, Clarice. Laços de Família. Conto: Amor. Rocco, 1998.

3) Músicas:

Para ver as meninas. Paulinho da Viola

Fulgás. Marina Lima.

Oração ao Tempo. Caetano Veloso

4) @

https://www.instagram.com/marina.abib/#

https://www.instagram.com/coletivohelenkeller/#

https://www.instagram.com/_marianarosa_01/#

https://www.instagram.com/thaisbeckersilveira/#

https://www.instagram.com/laureanelimacosta/#

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Coletivo Transforma MP

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