Quem são os responsáveis pela polarização política?, por Régis R. Primo da Silva         

Um dos antídotos sugeridos por Sunstein é assegurar que os cidadãos sejam expostos a ideias, argumentos e narrativas as mais diversas.

Portal Vermelho

do Coletivo Transforma MP

Quem são os responsáveis pela polarização política?

por Régis Richael Primo da Silva         

Nos últimos anos, a ciência política tem se dedicado bastante a estudar as causas da polarização política. O fenômeno da polarização é mundial e parece crescer a cada dia, sendo hoje um dos maiores obstáculos ao fortalecimento da democracia e à paz.

O cidadão comum, que participa do debate público nos encontros do dia a dia e nas redes sociais, também está preocupado com a polarização política. Mas ele não precisa da ciência política para concluir que o grande responsável pela polarização é o “outro”, isto é, seu adversário político. A verdade é que o debate sobre as causas da polarização está, também ele, polarizado. De um modo geral, a esquerda culpa a direita, a direita culpa a esquerda, e os centristas culpam ambas – esquerda e direita.

Cass Sunstein, professor de Direito em Harvard, apresenta, porém, uma perspectiva diversa. Para ele, quando pessoas com ideias políticas semelhantes reúnem-se em grupos e conversam entre si, elas se tornam mais extremistas em suas posições políticas e mais intolerantes com quem pensa diferente.

A afirmação parece contraintuitiva, mas é o que algumas evidências mostram. Há algum tempo, Sunstein conduziu, com alguns colegas, um pequeno experimento na área da democracia. Eles reuniram 60 cidadãos americanos, os dividiram em grupos de 6 pessoas, e os membros de cada grupo foram convidados a deliberar sobre questões como uniões civis entre casais do mesmo sexo, ações afirmativas e aquecimento global. Como o experimento foi planejado, foi possível separar os grupos em “liberais” e “conservadores”. Sunstein e seus colegas primeiro pediram às pessoas que declarassem suas opiniões individual e anonimamente. Depois, as mesmas pessoas deveriam discutir essas questões com seu grupo e, em seguida, adotar um veredito público. Por fim, os participantes do experimento fariam suas declarações anônimas finais como indivíduos.

Concluído o experimento, os resultados foram perturbadores: segundo Sunstein, “em quase todos os grupos, seus membros acabaram adotando posições mais radicais depois de falarem uns com os outros”. Sunstein também notou que o experimento tornou os grupos liberal e conservador mais ideologicamente homogêneos, sufocando, assim, a diversidade interna. A conclusão de Sunstein é que a discussão interna nos grupos ajudou a ampliar a divisão entre liberais e conservadores.

A gravidade disso reside no fato de que, a cada minuto, esse pequeno experimento está sendo reproduzido nas mídias sociais e em muitos países. No Twitter, por exemplo, ao seguir pessoas que pensam como você, e ler o que elas têm a dizer, caro leitor, provavelmente você se tornará mais inflexível em sua posição. E isso sem sequer notar a mudança.

Um dos antídotos sugeridos por Sunstein contra a polarização é assegurar que os cidadãos sejam expostos a ideias, argumentos e narrativas as mais diversas. O problema está em como fazer isso, já que as plataformas de mídia social criam para seus usuários experiências personalizadas. Diariamente, somos submetidos a notícias, artigos, vídeos e postagens que adotam pontos de vista semelhantes aos nossos. Com isso, em vez de termos nossa visão de mundo desafiada, ela é cada vez mais reforçada. Logo, no mesmo passo em que nos sentimos mais confiantes em defender nossos pontos de vista, mais nos tornamos desconfiados e intolerantes com quem pensa diferente de nós. O pluralismo de ideias, um dos pilares da democracia, cede lugar ao fanatismo, e nossos interlocutores já não são vistos apenas como rivais no campo das ideias, mas como inimigos malvados a serem eliminados.

Um outro desafio à polarização é que não basta sermos expostos a opiniões diversas, dentro e fora dos nossos grupos ideológicos. Sem a disposição para ouvir, e a empatia para encarar o interlocutor rival como alguém de boa-fé, isso de nada adianta. Como esperar que haja diálogo genuíno, se estamos cada vez mais raivosos e certos das soluções que propomos para os problemas do mundo?

Uma terceira dificuldade é o narcisismo moral que tem se tornado hegemônico no século XXI. As pessoas já não são consideradas boas por aquilo que elas fazem: por serem gentis, pacificadores, ajudarem os necessitados, cultivarem o perdão, servirem ao próximo etc. Hoje, alguém é reconhecido como “bom” se professa determinada crença e manifesta essa crença em suas redes sociais. Alguém pode ser um péssimo pai, um profissional preguiçoso e um cidadão presunçoso e arrogante e, ainda assim, poderá ser reconhecido como “bom” se tiver as ideias “certas” (aprovadas por seu grupo) sobre as questões polêmicas do mundo moderno e as expressar publicamente: já não somos julgados por nossas virtudes e vícios, mas pelas opiniões que professamos. A polarização é também um efeito do narcisismo moral do mundo contemporâneo.

Não é fácil sair da situação em que nos encontramos. As redes sociais nos tornaram mais agressivos e hostis. São cada vez mais comuns, em debates pela internet, os ataques pessoais e os insultos. Julgamos tudo e todos, reagindo quase sempre instantaneamente a qualquer notícia ou postagem, sem pausa para checagem e reflexão. Substituímos a dúvida metódica pela certeza dogmática, e o silêncio prudente pelo ruído interminável da lacração e do cancelamento.

O filósofo italiano Norberto Bobbio tinha sua receita para o debate público: “avaliar todos os argumentos antes de se pronunciar, controlar todos os testemunhos antes de decidir, e não se pronunciar e nunca decidir à maneira de oráculo do qual dependa, de modo irrevogável, uma escolha peremptória e definitiva”. Mas Bobbio faleceu há quase 20 anos, e o diálogo verdadeiramente genuíno está fora de moda.

Amós Oz, escritor israelense, propôs como remédio para o fanatismo o senso de humor e a curiosidade. Humor é a habilidade de rirmos de nós mesmos, dizia Oz, e, dificilmente, alguém que ri de si mesmo se torna fanático. A curiosidade, para Oz, é a virtude que faz com que nos coloquemos no lugar do outro e nos abramos a novas perspectivas. Um curioso fanático simplesmente nunca existiu.

Infelizmente, a polarização está longe de acabar, pois sequer percebemos que somos nós mesmos que a alimentamos diariamente. Continuamos a acreditar que o inferno é sempre o outro. Tudo poderia, porém, ser muito diferente se começássemos reconhecendo que não precisamos ir além do nosso próprio coração para encontrar a fonte de toda a violência no mundo. Quem sabe essa pequena verdade nos fizesse despertar do sono da razão e pudesse ser o remédio eficaz de que a democracia e a paz tanto necessitam.


Régis Richael Primo da Silva é membro do Ministério Público Federal no Ceará e integrante do Coletivo Transforma MP.

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