Ion de Andrade
Médico epidemiologista e professor universitário
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Lula, por que os mais pobres deveriam pagar a conta das renúncias fiscais?, por Ion de Andrade

Esses brasileiros serão alvo do pente fino do Ministério da Fazenda para economizar parte dos 25,9 bilhões de reais previstos.

Crédito: cadunicobrasil.com.br / Jeane de Oliveira

Lula, por que os mais pobres deveriam pagar a conta das renúncias fiscais?

por Ion de Andrade

Próximo a uma tomada de decisão induzida pelo Ministério da Fazenda e que mira para retirar o Benefício de Prestação Continuada, (BPC), de muitos e para diminuir o alcance do Seguro Desemprego, numa lógica fiscal que, segundo diversos economistas, torna insustentáveis os pisos constitucionais do SUS e da Educação, Lula se confronta a um país que em 2025 deixará de receber, segundo O Globo[1], nada menos do que R$ 543 bilhões em renúncias fiscais.

A IA do Google diz que os montantes serão ainda maiores.

Pesquisada com as palavras chave “Renúncia fiscal do governo federal em bilhões” ela retornou o que segue:

Em 2024, as renúncias fiscais do governo federal devem chegar a R$ 789 bilhões, o que representa um aumento de 46,9% em relação a 2023. A renúncia fiscal é quando o governo deixa de arrecadar parte dos tributos para apoiar programas sociais ou estimular a economia. Esse tipo de medida é um mecanismo de fomento a determinados setores da economia. 

A Emenda Constitucional 109, promulgada em 2021, estabelece um limite de 2% do Produto Interno Bruto (PIB) para benefícios fiscais.”

Isso significa que, se o governo Lula fizesse, por hipótese, um corte linear de 5% no caso de ser o Globo quem informa corretamente os montantes envolvidos (R$ 543 bilhões), ou de 3,5% se for a IA do Google (R$ 789 bilhões), alcançaria o equivalente ou mais do que a Fazenda pretende poupar em cima dos direitos sociais: 25 bilhões de reais.

Entretanto, em lugar de propor uma abordagem dessa ordem, que poderia resultar, pois nada é fácil e há certamente renúncias fiscais que podem ser justas, num pente fino sobre essa Renúncia Fiscal, o governo insiste em penalizar, não os mais pobres, mas os mais pobres dentre os pobres, (os que recebem o BPC) executando um pente fino, o termo é da Fazenda, nesse BPC.

Mas o que é o BPC?

O site do próprio Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome explica:

O Benefício de Prestação Continuada – BPC, previsto na Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS, é a garantia de um salário mínimo por mês ao idoso com idade igual ou superior a 65 anos ou à pessoa com deficiência de qualquer idade. No caso da pessoa com deficiência, esta condição tem de ser capaz de lhe causar impedimentos de natureza física, mental, intelectual ou sensorial de longo prazo (com efeitos por pelo menos 2 anos), que a impossibilite de participar de forma plena e efetiva na sociedade, em igualdade de condições com as demais pessoas. O BPC não é aposentadoria. Para ter direito a ele, não é preciso ter contribuído para o INSS. Diferente dos benefícios previdenciários, o BPC não paga 13º salário e não deixa pensão por morte. Para ter direito ao BPC, é necessário que a renda por pessoa do grupo familiar seja igual ou menor que 1/4 do salário-mínimo.[2]

Noutras palavras o BPC é o benefício de R$1.412,00 pago a (a) idosos que, sempre subempregados e egressos da miséria, nunca contribuíram para a previdência e (b) portadores de deficiência que sejam pobres.

Esses brasileiros serão alvo do pente fino do Ministério da Fazenda para economizar parte dos 25,9 bilhões de reais previstos.

Vale ressaltar que há; sem receber o BPC, mesmo fazendo jus a ele; por condições de não cidadania e de precariedades imensas nesse contingente populacional, incontáveis brasileiros e brasileiras, idosos miseráveis e portadores de deficiência, por vezes inclusive em situação de rua que estão invisibilizados.

Muitos dos que o recebem, reforçando essa ideia da exclusão social desses beneficiários, foram ajudados por terceiros de boa vontade, preocupados com a miserabilidade extrema daquele ser humano singular, no entanto elegível para receber o BPC.

Ora, se for subtraído do benefício dificilmente, muitos dos que o recebem atualmente reunirão novamente as condições para reivindicar a revisão da decisão negativa, pois precisarão atender a uma burocracia estatal perante a qual estão antecipadamente derrotados.

Recebendo o BPC está portanto, é bom que se diga, a federação dos excluídos e dos miseráveis, gente com distúrbios mentais, idosos que nunca contribuíram, gente que não sabe ler, pessoas simples e vulneráveis de todos os matizes, razão porque muitos dos que têm direito legal não o recebem.

A prova da existência desses invisíveis é o que nos informa o elogioso artigo da Folha de São Paulo em relação às medidas do governo, intitulado “Corte de R$ 25,9 bi prometido por Haddad prevê fim de brechas legais que impulsionaram benefícios” que foi publicado em 05 de julho de 2024, alusivo à iniciativa de cortes do governo. Diz a Folha:

“O gasto com o BPC é um dos que mais preocupam a equipe econômica. O programa tem hoje quase 6 milhões de beneficiários —dos quais 1 milhão foi incluído nos últimos dois anos. A despesa com o programa está prevista em R$ 105,1 bilhões neste ano e poderá crescer mais R$ 10 bilhões no ano que vem se nada for feito. As concessões do benefício tiveram uma aceleração considerável a partir do segundo semestre de 2022. Até então, o público do programa oscilava entre 4,6 milhões e 4,7 milhões, com pequenas variações mensais. Em julho daquele ano, o governo habilitou 93 mil novos beneficiários. No mês seguinte, mais 90 mil. Desde então, as concessões têm se mantido superiores a 50 mil por mês.”[3]

Ou seja, a aceleração das concessões provavelmente se deve ao fato de que o governo Lula vem identificando, através do MDS mais situações de pessoas não atendidas do que o governo Bolsonaro. A que senhor o Ministério da Fazenda serve?

A Carta Capital em 20 de agosto de 2024, nos traz o que pensa o Ministro responsável pela pasta sobre o assunto, arrematando o que segue:

“Não podemos correr o risco de tirar do mercado quem pode trabalhar, por uma distorção de um programa mal gerenciado.” Rever as condições do BPC é parte significativa do pacote anunciado por Haddad para cortar 25,9 bilhões de reais em gastos do governo em 2025.[4]

Ora, com o valor de R$1.412,00 por BPC, cada bilhão de reais amealhados por ano pelo Ministério da Fazenda implicará no corte de, segue a fórmula, (1.000.000.000/1.412,00 = 708.000 benefícios)/12 meses ou 708 mil/12 meses perfazendo 59 mil beneficiários excluídos do benefício por ano.

Isso tem implicações econômicas óbvias: o BPC, quer as famílias tenham ou não os seus dados cadastrais atualizados, conforme estabelece a lei, serve essencialmente para cobrir despesas de sobrevivência indo para a economia assim que é recebido, utilizado que é em compras de comida, medicamentos e gêneros de primeira necessidade…

Isso significa que parte das despesas do governo com o pagamento do BPC volta imediatamente aos cofres públicos, sob a forma de impostos, barateando, portanto e muito o próprio BPC.

Esse BPC barateado, volta para o governo, no entanto, não sem antes ter dado vitalidade à combalida pequena economia local do entorno da moradia dos beneficiários, pois, é a isso que servem. De fato, os beneficiários do BPC não poupam os recursos recebidos, nem o enviam como parte dos lucros ao exterior.

Ao fim do ano fiscal, portanto, aqueles R$1.412,00 investidos no consumo dos pobres e na economia local, terão sido deduzidos fiscalmente de muito  do que custaram ao governo, pois terão gerado a arrecadação que está atrelada ao consumo, gerado empregos e renda, configurando um multiplicador keynesiano.

Isso significa que além dos idosos pobres e dos portadores de deficiência pobres os cortes também atingirão a padaria e o mercadinho das favelas e periferias do Brasil, produzindo desemprego e insolvência. Um golaço! Só que contra.

Por que isso está sendo feito?

Como tudo tem que ter um mínimo de legitimidade para ser levado adiante e produzir o devido consenso, o BPC tem algumas atualizações a serem feitas, sobretudo no que se refere aos benefícios pagos por ocasião da COVID que talvez pudessem ser suspensos. Diz a Folha:

Um dos casos mais emblemáticos é uma portaria da época da pandemia de Covid-19 que permite a concessão do BPC (Benefício de Prestação Continuada) a pessoas que não estão no Cadastro Único ou não comprovam o enquadramento no limite de renda para acessar o benefício.

A medida foi adotada no momento em que o isolamento social era necessário para conter uma doença para a qual ainda não havia vacina. Mais de um ano após a declaração do fim da emergência de saúde pública, o texto segue em vigor.

Mais adiante o artigo arremata, com a verdadeira justificativa que explica tudo:

O governo articula incluir as propostas no projeto de lei que trata da desoneração da folha de 17 setores empresariais e dos municípios de até 156 mil habitantes. O texto tem o líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA), como relator. Parte da economia de despesas pode inclusive ajudar a compensar o impacto das renúncias fiscais.2

Ou seja, por ser responsável do ponto de vista fiscal, e é, parabéns, o governo tem, para assegurar a sustentabilidade das renúncias fiscais com as quais está plenamente comprometido, que tirar, quanto mais melhor (por isso o pente fino cadastral) o dinheiro minguado das compras famélicas dos mais pobres dos pobres, esgarçando o já frágil tecido econômico das periferias.

Sim pois:

“O plano do governo é, no primeiro momento, convocar para atualização cadastral 900 mil beneficiários do BPC que estão há mais de quatro anos sem passar por reavaliação, bem como aqueles que estão fora do CadÚnico, acima do limite de renda ou tiveram o benefício concedido pela via judicial.”2

Vamos observar aqui que a concessão do benefício por via judicial é tomada pelo Ministério da Fazenda como graciosa, quando esse tipo de situação decorre muitas vezes da costumeira negativa do Poder Constituído de honrar benefícios para evitar os gastos públicos (em cima dos mais pobres, claro). A justiça só pode atuar a bem de assegurar um benefício garantido pela lei…

Entretanto, é claro que o controle do gasto público deve imperativamente ser feito pelo governo, não com o propósito de cortar para reduzir, mas de, sendo o caso, de cortar para garantir que os que realmente fazem jus (e como vimos, nem todos ainda foram cobertos) não sejam em qualquer circunstância prejudicados.

Portanto, se há gente recebendo e que não deveria receber, corte-se o benefício, por dever de ofício e não para ajudar a pagar as renúncias fiscais do próprio governo.

Essa auditoria prevista dos 900 mil, uma blitz krieg, se dará portanto, para essa gente excluída de tudo, sob a espada da perda do que para muitos deles é a sua única fonte de renda!

Considerando que o propósito não é o da gestão dos direitos do programa para a garantia do que a lei estabelece, mas a da garantia dos benefícios a outro projeto social do governo (a renúncia fiscal dos ricos), estaríamos diante do constrangimento ilegal de centenas de milhares de beneficiários?

O lógico, obviamente, deveria ser o oposto, ou seja:

(a) para assegurar a continuidade do BPC e

(b) a inclusão dos novos contingentes, que fazem jus ao mesmo, mas estavam até aqui invisibilizados pela miséria e adversidade, o governo Lula fará:

(c) uma revisão dos benefícios eventualmente injustificáveis como os da COVID ou de quem recebe e tem renda mais alta e

(d) complementarmente fará também uma blitz krieg em cima das renúncias fiscais dos tais 17 setores da economia beneficiados.

Ora, além desse aparente desvio de finalidade (enxugar para beneficiar terceiros) a caça da renda de sobrevivência dessa gente, é uma grande jogada, porque se quando os orçamentos do SUS foram ameaçados os movimentos da Saúde, pintados de guerra visitaram o Ministério da Fazenda para dizer um “vem que tem”, desse contingente o Brasil só terá notícia no cruzamento das grandes cidades onde provavelmente haverá mais idosos mendicantes, além de portadores de deficiência em cadeiras de roda implorando a caridade pública.

O pacote ainda inclui uma revisão da multa do FGTS para os demitidos sem justa causa, restrições ao Seguro Desemprego e, escrito com bom humor, também pretende limitar os super salários do funcionalismo público, o que inclui os do Judiciário.

Vale salientar que o Ministério da Fazenda apresentou a proposta à imprensa e à sociedade antes de apresentá-la ao Presidente da República deixando-o numa condição vulnerável frente ao Banco Central (que aumentou os juros e as despesas da União em R$ 40 bilhões), os Bancos que já começaram a elogiar Haddad, e a imprensa.

O correto, do ponto de vista da proteção da imagem de Lula pelo Ministério da Fazenda, teria sido apresentar as propostas primeiramente ao Presidente, cuidando para que não vazassem.

E não vazaram, foram entregues de bandeja à mídia…

A ação tem ares de uma conspirata na qual o Ministério da Fazenda atuou como advogado da Faria Lima colocando o Presidente Lula em saia justa.

Se não concordar com o que Haddad propôs e se posicionar em favor de cortes que não atinjam os mais pobres, Lula deverá pensar seriamente sobre o que fazer com o seu todo poderoso Ministro da Fazenda que parece destoar na orquestra.

De fato, o governo parece não precisar de oposição.


[1] Benefícios tributários farão governo abrir mão de R$ 543 bi em receitas em 2025 (disponível em

https://oglobo.globo.com/economia/noticia/2024/09/20/beneficios-tributarios-farao-governo-abrir-mao-de-r-543-bi-em-receitas-em-2025.ghtml)

[2] BRASIL, MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO E ASSISTÊNCIA SOCIAL, FAMÍLIA E COMBATE À FOME, disponível em (https://www.mds.gov.br/webarquivos/assistencia_social/bpc/Perguntas%20Frequentes%20BPC.pdf)

[3] Folha de São Paulo, Corte de R$ 25,9 bi prometido por Haddad prevê fim de brechas legais que impulsionaram benefícios” que foi publicado em 05 de julho de 2024 disponível em (https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2024/07/corte-de-r-259-bi-prometido-por-haddad-preve-fim-de-brechas-legais-que-impulsionaram-beneficios.shtml)

[4] Carta Capital Haddad defende rever ‘distorções’ no BPC e diz não se tratar de corte em gasto social, disponível em (https://www.cartacapital.com.br/economia/haddad-defende-rever-pagamentos-do-bpc-e-diz-nao-se-tratar-de-corte-em-gasto-social/)

Ion de Andrade é médico epidemiologista e professor e pesquisador da Escolas de Saúde Pública do RN, é membro da coordenação nacional do Br Cidades e da executiva nacional da Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela democracia

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1 Comentário

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  1. O lamentável é o discurso do governo em verificar as falhas no BPC, elogiável, mas esquecer o avanço na tributação de grandes fortunas.
    Pessoas físicas e jurídicas – estas criadas para mascarar as PFs – acumulam montanhas vergonhosas de recursos que nada contribuem para o país salvo o abuso de manobras diversas visando a manutenção e incremento do bolo.
    Na realidade o que acontece é que o trabalho tem alíquota que chega a 27,5 % do salário e o financeiro não chega nem perto. No Brasil o trabalho é criminoso e é tratado como tal.
    Ao fim e ao cabo seguimos com a escravidão disfarçada no jogo fiscal corrompido. Apenas uma troca de nomenclatura: antes escravo agora trabalhador.
    A resposta, Ion: sempre pagaram . . .

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