O desafio de Boulos é o de ser o candidato de um novo consenso
por Ion de Andrade
A candidatura Boulos conseguiu muito até aqui e possivelmente consolidou a sua presença no segundo turno da eleição de São Paulo.
O fez como representante do eleitorado progressista, mas não ainda como representante do campo democrático como um todo, o que inclui, obviamente, setores conservadores do dito Centro.
Esse eleitorado centrista está disperso essencialmente numa órbita que inclui Tabata e Datena.
Restam fora do escopo dos assimiláveis, os possíveis 38% do eleitorado, conforme a última pesquisa da Quaest, que se inclinam pela direita e pela extrema direita.
Aí a clivagem se dá entre Nunes, por quem parte do dito Centro se inclinaria com maior facilidade no segundo turno e Marçal que de azarão tornou-se competidor de verdade. Marçal, no entanto, parece ter menor apelo para o segundo turno, pois o Centro se dividiria de forma mais plebiscitária, nesse caso, entre ele e Boulos, sempre segundo a Quaest.
Considerando essas variáveis podemos imaginar algumas tendências:
- Em primeiro lugar o crescimento de Marçal se deu em cima, essencialmente, de parte do eleitorado de Datena que perdeu, entre as duas últimas pesquisas da Quaest, o mesmo percentual de votos que ele ganhou. Todos os demais mantiveram a posição ou cresceram. Isso poderia numa primeira leitura, sinalizar um teto para o crescimento de Marçal que talvez não tenha mais de onde tirar votos.
- Em segundo lugar, a candidatura Marçal, que comporta um risco maior (nos cenários testados pela Quaest) de ser derrotada por Boulos, poderá sofrer uma desidratação em relação a Nunes que poderia beneficiar-se de um certo voto útil da extrema direita. Portanto a candidatura Marçal, por essa ótica poderia começar a ser acompanhada de um viés de baixa.
- Boulos por sua vez, ameaçado do (pequeno) risco de não estar num segundo turno preenchido por Marçal e Nunes, hipótese pouco provável, mas não inexistente, poderia receber desde já o voto útil de parte do segmento do Centro que cogita poder votar nele no segundo turno. Esse fenômeno se acentuaria no caso de as pesquisas apontarem para o risco de um segundo turno limitado aos dois candidatos da extrema direita. Esse voto útil contribuiria para consolidar a candidatura Boulos no segundo turno.
- É preciso considerar que a candidatura Marçal pode estar “brigada” com o clã Bolsonaro somente nas aparências, já que boa parte do eleitorado de São Paulo mostra profunda rejeição ao nome do ex-presidente, sendo conveniente para a extrema direita ter um candidato de perfil “descolado”. A briga pode aparecer, aí sim, de verdade agora porque Marçal excedeu às expectativas de ser o ator coadjuvante para o qual foi criado e ganhou vida própria. Hoje ele ameaça, se for para o segundo turno (onde tem fortes chances de perder) a viabilidade do projeto da extrema direita de ser vitoriosa nas eleições de São Paulo. É previsível, portanto, que esse eleitorado da extrema direita comece a dar preferência ao nome de Nunes. Essa matemática deveria funcionar como um limitador a mais da candidatura de Marçal.
- Resta o imponderável que poderá ser trazido (a) pelo que se denomina de indecisos (que podem se manter no patamar em que estão, ou se distribuir conforme o restante da população, não mudando o cenário) ou (b) por um realinhamento de posições de certos segmentos populacionais numerosos em virtude da expressão (falsa ou verdadeira) de compromisso de um candidato de enfrentar os problemas percebidos por eles como graves e inadiáveis… Sim estamos falando das periferias.
No que toca às periferias, Boulos tem um programa efetivamente transformador para a cidade, apontando para o enfrentamento das desigualdades sócio-territoriais, ultrapassando, sem descuidar dela, a agenda do urbanismo clássico e adentrando numa proposta ampla de acesso universal ao direito à cidade.
Com uma proposta abrangente de participação social, investimentos públicos e com a implantação de uma infraestrutura de equipamentos para a Cultura, o Esporte e o Lazer nas comunidades assim como para o acolhimento de idosos e população em situação de rua da cidade, Boulos cria pontes, como Lula fez para o Nordeste nos seus primeiros mandatos, com a solução de problemas graves e inadiáveis, dessa feita para as periferias paulistanas.
Vale assinalar aqui os seguintes pontos (ilustrativos de muitos outros) com potencial de reaglutinar civicamente os eleitores (reordenei para melhor compreensão):
- Distribuição de equipamentos e políticas com base territorial
Na introdução do programa: “Nenhum distrito pode ficar sem um equipamento básico: vamos zerar os distritos sem bibliotecas e outros equipamentos culturais e de lazer, superando uma das faces mais perversas da desigualdade urbana em São Paulo.”
A base territorial, “nenhum distrito” sinaliza que Boulos e equipe entenderam que é a partir do território que se constrói a universalidade do acesso às políticas.
- Participação social com base territorial: A participação social na tomada de decisões com a garantia da execução do que foi planejado pelo Poder Público é a maior escola de cidadania que uma comunidade possa ter produzindo desenvolvimento social e lastro para a democracia. Nos itens seguintes o programa de Boulos diz:
104. Recompor a capacidade de gestão territorial e planejamento das Subprefeituras, aprofundando a descentralização dos serviços públicos por distrito, organizando a implementação de equipamentos no território e estruturando um hub de serviços públicos, em sintonia com o projeto urbanístico de garantir tudo o que as pessoas precisam perto de sua casa.
105. Implantar os Planos Regionais das Subprefeituras. Com base na participação social, nas potencialidades de cada território e no mapa das desigualdades, vamos criar uma rede de equipamentos públicos em áreas urbanas, priorizando bairros periféricos, para promover cultura, educação, esporte e lazer, e garantindo o acesso a serviços municipais à população mais vulnerável.
- Cultura: A exclusão social se dá em grande medida pela exclusão cultural). Diz o programa:
66. Ampliar gradativamente o orçamento da cultura para 3%. Vamos expandir a capacidade de gestão da Secretaria Municipal de Cultura e, gradualmente, destinar mais recursos para programas de fomento, projetos e contratações artísticas, tais como VAI e Fomento às Periferias, dentre outros. Vamos ainda revitalizar e ampliar equipamentos culturais e preservar memórias, museus, bibliotecas e o patrimônio histórico.
67. Descentralização dos investimentos e equipamentos culturais nas periferias. Na lógica da redução de distâncias e desigualdades, vamos ampliar o número de equipamentos como centros culturais, Casas de Cultura, teatros e cinemas nas regiões periféricas da cidade. Na mesma direção, o aumento do orçamento da cultura será acompanhado pela expansão da proporção destinada ao fomento e apoio à cultura periférica.
- Esporte e Lazer: Carências nessas áreas estão diretamente relacionadas à exposição da juventude aos riscos da criminalidade, da solidão tédio e doença mental e dos valores tantas vezes corruptores das redes sociais. O programa prevê dentre outros itens:
70. Sistema Municipal de Esportes e Lazer. Vamos criar um sistema que conecte todos os equipamentos da Secretaria Municipal de Esportes com equipamentos de outras secretarias correlatas, articulando esporte de alto rendimento, esporte educacional e práticas recreativas a programas amplos de bem-estar urbano.
73. Revitalizar a infraestrutura municipal de esportes. Vamos requalificar os equipamentos esportivos, favorecendo a ocupação esportiva urbana, como pistas de skate e campos de futebol amador.
81. Ampliação dos territórios para o brincar livre. Vamos ampliar os espaços e territórios do brincar, do lazer, do esporte e da cultura para assegurar a todas as crianças e adolescentes o direito à convivência familiar e comunitária e o direito à cidade.
- População em situação de rua: Segmento icônico sempre à espera de uma proposta de inclusão social do campo progressista. Ao alcance de São Paulo o programa propõe:
37. Acolhimento humanizado. Qualificação dos centros de acolhida, por meio da reforma dos equipamentos; isso inclui aumentar o número de banheiros, resolver os problemas estruturais de segurança e melhorar as condições sanitárias e de habitabilidade. Garantir o respeito aos direitos dos moradores, com a implementação de um conselho gestor de cada equipamento que inclua a participação dos moradores e representantes da sociedade civil. Vamos assegurar em todos os equipamentos espaço para animais de estimação e carroças utilizadas para reciclagem. Além disso, vamos ampliar as equipes de Consultórios na Rua e as Unidades Odontológicas Móveis, que servem como primeiro contato para a ressocialização das pessoas em situação de rua.
38. Garantir vagas para todos. Vamos ampliar os programas de atendimento especializado para população em situação de rua, com foco no princípio de Moradia Primeiro. Isso implica fortalecer o serviço social de moradia, hotel social, repúblicas e manter os programas existentes. Nenhuma pessoa ficará para trás: todos terão acolhimento humanizado e assistência social.
- Idosos: Numerosa a população idosa não assistida cria dificuldades para o trabalho e a geração de renda de milhares de famílias, de forma semelhante que a falta de vagas em creches. Atualizando uma das mais graves lacunas das políticas sociais no Brasil o programa propõe:
84. Ampliar a rede de proteção já existente à população 60+. Vamos aumentar o número de Centros-Dia, Núcleos de Convivência, Centros de Convivência Intergeracionais e Instituições de Longa Permanência para Idosos, garantindo cobertura nas regiões da cidade em que atualmente faltam vagas.
86. Política de moradia para a população idosa. Vamos atualizar os cadastros de pessoas idosas em situação de vulnerabilidade e garantir a reserva de habitação prevista em lei nos empreendimentos da Cohab e do Minha Casa, Minha Vida na cidade. Vamos ainda construir novas unidades da Vila do Idoso nos locais de maior demanda.
- Melhorias habitacionais e urbanização integrada: Sem descuidar de unidades novas, Boulos sinaliza para a compreensão de que a moradia deve estar casada com equipamentos comunitários capazes de garantir qualidade de vida nos locais de moradia. Mostra também que sabe que hoje a maioria esmagadora dos problemas de moradia se concentram em melhorias habitacionais (acessibilidade, salubridade, segurança, banheiros, teto, etc) e aluguel social. O programa estabelece:
33. Programa Periferia Viva de Urbanização e Melhoria Habitacional. Faremos urbanização integrada das favelas da cidade, através de: (i) melhorias voltadas a pequenas reformas e requalificações em moradias precárias, como forma de combater o déficit habitacional qualitativo no município, beneficiando 100 mil famílias; e (ii) elaboração de planos urbanísticos locais que definirão as prioridades da intervenção de urbanização – saneamento, obras viárias, pavimentação, contenção e estabilização do solo e recuperação ambiental – além de execução de obras de infraestrutura urbana e equipamentos públicos nas comunidades.
34. Implantar o Serviço de Locação Social. Vamos disponibilizar novas moradias, requalificando com retrofit edifícios públicos abandonados para locação social e serviço social de moradia, a exemplo do modelo já adotado em grandes metrópoles globais.
36. Construir 50 mil unidades habitacionais de interesse social. Vamos dar prosseguimento à aquisição de unidades contratadas e realizar a construção de novas moradias, por meio de programa municipal próprio e também fortalecendo a parceria com o programa Minha Casa, Minha Vida. Promoveremos ainda a atuação conjunta com entidades e cooperativas para construção habitacional, estimulando a gestão direta de projeto e obra e a contratação de Assistência Técnica de Habitação de Interesse Social (ATHIS).
Mas a lógica de tentar desempatar as eleições nas periferias será também percebida pelos demais candidatos, mas Boulos conta a seu favor no quesito de produzir credibilidade com uma vida dedicada a essa causa.
Como as forças em São Paulo parecem ter chegado a algum grau de equilíbrio, com o voto útil apontando para a consolidação numa ponta da candidatura de Boulos e na outra, da de Nunes, cabe a Boulos avançar para ampliar de forma expressiva a sua vantagem nas periferias construindo um rearranjo cívico que não esteja polarizado pela questão ideológica, mas pelo projeto próprio de sociedade que ele propõe!
Boulos tem, portanto, proposta e credibilidade. O desafio é conclamar a militância para o front das ruas, entregando de casa em casa uma folheteria específica às periferias e promovendo reuniões locais às centenas entre a sua militância e as comunidades para apresentar o programa e o que pretende realizar.
A campanha não pode se fiar somente em atos públicos e nas redes sociais.
Se conseguir galvanizar a população das periferias em torno de um novo projeto de sociedade, consistente, viável e centrado na participação e no bem estar social, Boulos chegará ao segundo turno com musculatura para o desafio de obter a maioria eleitoral de que precisa, contagiando contingentes da juventude e das classes médias num consenso onde o plebiscito pela democracia se agregará ao da inclusão social.
No Nordeste, noutra quadra da nossa história Lula conseguiu isso.
Com um projeto consistente que respondeu ali a necessidades inadiáveis da população nordestina, específicas daquele momento histórico (fome zero, bolsa família, água para todos e cisternas, luz para todos, cidadania bancária, apoio ao pequeno produtor, dentre outros), Lula rompeu com o enquadramento ideológico do coronelismo numa região que dava maiorias eleitorais esmagadoras e aparentemente eternas à ARENA, depois ao PFL construindo ali uma hegemonia durável.
É o desafio de Boulos, já tendo entendido o que está escrito nas estrelas como prioridades sociais novas, tentar reaglutinar São Paulo em torno de um novo projeto civilizatório: a Exclusão Social zero, capaz de embaralhar as cartas das identidades políticas atuais e lançar um novo consenso histórico.
Ion de Andrade é médico epidemiologista e professor e pesquisador da Escolas de Saúde Pública do RN, é membro da coordenação nacional do Br Cidades e da executiva nacional da Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela democracia
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