Nem paz, nem guerra total… só guerra de atrito permanente, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Sob o comando de Lula, o Brasil chegou a ser a 5ª maior economia do planeta. O golpe neoliberal levou nosso país à 14ª posição entre os países mais ricos.

Pablo Picasso

Nem paz, nem guerra total… só guerra de atrito permanente

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Não é fácil interpretar o que está ocorrendo no Brasil. A direita encara o golpe de 2016 como o final da guerra civil sem sangue que pacificou o país colocando-o no rumo certo, qual seja, o da destruição do legado getulista com a ascensão triunfal do neoliberalismo modernizante. A esquerda, por outro lado, tem razão ao dizer que não é possível pacificar o país doando a riqueza petrolífera aos estrangeiros, empobrecendo a população e deixando-a sem direitos totalmente à mercê de um sistema econômico cuja principal característica é o desprezo pelos direitos humanos.

Sob o comando de Lula, o Brasil chegou a ser a 5ª maior economia do planeta. O golpe neoliberal levou nosso país à 14ª posição entre os países mais ricos. Exceto os generais cujos salários foram aumentados e os banqueiros que lucram mais quando o Estado afunda em dívidas e eles especulam em dólar contra a fragilidade do real, ninguém pode dizer que o Brasil realmente ficou melhor ou mais rico. A paz não é possível quando o povo passa fome.

Abaixo transcrevo trechos de três livros que, de uma maneira ou de outra, ajudam a compreender o que está ocorrendo em nosso país:

“A operação militar realizada [no Brasil para derrubar Dilma Rousseff e levar Bolsonaro ao poder] envolveu três elementos conectados:

1: a camuflagem. Ninguém percebeu que havia militares agindo no sentido de provocar um conjunto de dissonâncias. Primeiramente esta ação ocorreu no interior das próprias Forças Armadas, depois foi sincronizada com outros poderes, especialmente o Judiciário; finalmente adentrou a população, camuflada no interior da campanha eleitoral.

2: a abordagem indireta. Tal qual a estratégia da abordagem indireta, os militares ‘operaram’ através de outros agentes na sociedade, que vão desde movimentos populares até o chamado mercado, mas também, e principalmente, a Justiça. É preciso ter este ponto bem ressaltado: a partir do momento em que uma guerra híbrida começa, uma série de agentes atua sem que se tenha uma ligação direta com o centro decisório. A guerra híbrida funciona como um dispositivo que aciona comportamentos, como a cismogênese. Esta, em sua forma simétrica aciona uma escalada horizontal do conflito: aumenta seu espectro, envolve cada vez mais pessoas e grupos. Assim, toda estratégia se baseou na ideia de que as fraturas eram produzidas pelo ‘outro lado’ e por ‘inversões’ de papéis, o que em denominação militar são as operações de false flag, e este padrão se disseminou por vários agentes sociais.

3: a criptografia. Foram disparadas tantas bomas semióticas que se perderam duas noções muito importantes no processo político: a percepção de quem é aliado e quem é inimigo; e as noções de tempo e espaço: não se tem ideia de quando os processos foram disparados, eles não coincidem com os eventos; não se sabe o que é o front e o que é a retaguarda, todo o conflito está descentralizado.” (O Brasil no espectro de uma guerra híbrida, Piero C. Leirner, editora Alameda, São Paulo, 2020, p. 260/261)

“… O Estado neoliberal não quer mais (ou não pode mais) dar as mesmas respostas que o Estado liberal-social em relação à garantia de segurança, pois isso geraria um aumento de despesas sociais, que ele recusa. Ele também se volta contra o Estado liberal e seu ‘pacto de segurança’ por uma política deliberadamente insecuritária no plano social. Essa guinada da lógica de mercado contra os dispositivos protetivos engendra, há décadas, males sociais já suficientemente documentados. Na ausência de fortalecimento do Estado-providência e da equalização das condições sociais, que colidiriam com sua própria lógica, esse Estado não tem à sua disposição senão a generalização da resposta policial e penal. Mas é essa contradição dos Estados neoliberais: eles devem continuar a proteger a população enquanto deterioram sua segurança ao diminuir as proteções sociais que aportam. Essa dupla restrição leva ao desenvolvimento de uma violência específica do Estado neoliberal, que deve ser analisada fora das generalidades da ‘violência legítima’. Para apreender o momento que vivemos, não podemos, então nos limitar à análise foucaultiana do ‘pacto de segurança’. Antes, precisamos nos voltar para aquilo que, notadamente no curso A sociedade punitiva dado por Foucault (2013[2015]) no Collège de France em 1972-1973, atribuía à guerra um papel privilegiado no exame das estratégias do Estado. Não são apenas eventos excepcionais que devem ser enfrentados no quador do ‘pacto de segurança’ entre Estado e população: há um inimigo permanente e polimófico que é preciso combater.” (A escolha da guerra civil – Uma outra história do neoliberalismo, Pierre Sauvêtre, Christian Laval, Haud Guéguen e Pierre Dardot, editora Elefante, São Paulo, 2021, p. 248/249)

“…a ideia de um ser humano autêntico, ou seja, capaz de expressar sua personalidade individual como seu dever moral mai importante, é uma ameaça real a um sistema que prega que o dinheiro e a posse de propriedades são os valores humanos mais altos.

O grande feito do capitalismo financeiro, como mola propulsora do neoliberalismo e como embuste ideológico, foi se apropriar precisamente dessa concepção de felicidade radical e libertadora segundo seus próprios termos. Isso não se deu, obviamente, de um dia para o outro. Foi uma guerra ideológica incansável até que criatividade, emancipação e originalidade individual fossem repaginadas nos termos do capital financeiro. ‘Criatividade’ se torna um recurso para a gestão de pessoas e conflitos dentro da empresa, não mais uma aventura de autoconhecimento. ‘Originalidade’ passa a ser um recurso gerencial definido de antemão para fins de lucro. ‘Emancipação’ se transforma na farsa de que todos são agora empresários de si mesmos. Assim, o domínio do capital financeiro não é algo que se contraponha de fora aos indivíduos, mas, ao contrário, parte de dentro, da alma e das aspirações mais profundas do imaginário individual e social. É isso que explica sua incrível eficácia dissimulada e insidiosa.

Essa saída de poder se disfarças de emancipação e liberdade foi uma benção para o neoliberalismo. Na realidade, o ataque à regulação econômica em nome da livre circulação de capitais e a globalização do capital financeiro apenas criaram uma incrível acumulação de recursos restrita aos muito ricos e sua ‘elite funcional’, o hoje famoso 1% da sociedade. Isso porque, mesmo com um ataque frontal aos sindicatos e um bem organizado ataque à esfera pública pluralista – por meio da compra direta da imprensa corporativa para que se torne um veículo neoliberal -, a sociedade ainda se mantinha estranhamente apegada a ideias tidas como ultrapassadas pelo neoliberalismo radical, como liberdade, igualdade e fraternidade.

A solução foi recobrir o discurso neoliberal com a aura das lutas pela emancipação.” (A guerra contra o Brasil, Jessé Souza, Estação Brasil, Rio de Janeiro, 2020, p. 133/134)

Piero C. Leirner detalhou como foi realizada a guerra política, econômica, jornalística e cultural para derrubar Dilma Rousseff e impor o neoliberalismo: dissimulação, descentralização e multiplicação de ataques. Pierre Sauvêtre, Christian Laval, Haud Guéguen e Pierre Dardot explicaram a principal contradição do Estado neoliberal: o dever de proteger a população que é programaticamente agredida. Jessé Souza, por sua vez, expõe o “modus operandi” da ideologia neoliberal: reapropriação e transformação de características positivas do individualismo para fazer o indivíduo passar a combater seus próprios interesses.

As três abordagens são complementares. Porém, há algo mais que pode ser dito. No mundo antigo e, de maneira geral, até a II Guerra Mundial, havia uma distinção clara entre paz e guerra. O conflito entre EUA e URSS borrou essa distinção, pois as duas potências nucleares não estavam nem em paz nem em guerra. A doutrina da mutua destruição nuclear garantida criou uma situação de atrito permanente, que provocava erupções de violência militar e/ou política em países menos desenvolvidos.

Hannah Arendt tinha razão ao dizer que, naquele contexto, a guerra não poderia ser uma continuação da política por outros meios. Afinal, em caso de conflito nuclear entre EUA e URSS ambos os contendores e vários de seus satélites seriam totalmente devastados não restando quaisquer condições de possibilidade do espaço político existir ou funcionar.

O fim da Guerra Fria não significou o fim da doutrina da mutua destruição nuclear garantida. As tensões entre as potências nucleares diminuíram e se tornaram menos visíveis, mas elas não deixaram de existir. O mundo está em paz, mas os EUA segue hostilizando a China e a Rússia. Ameaçados, esses dois países seguem modernizando seus arsenais nucleares. França e Inglaterra já não conseguem mais disfarçar que competem acirradamente (e até de forma antiética) para vender seus armamentos aos compradores em potencial.

Não podemos esquecer que o surgimento de novas potências nucleares (Israel, Índia, Paquistão, Coreia do Norte) complicou o cenário. O conceito de “mutua destruição nuclear garantida” da Guerra Fria não deixou de existir. Ele foi apenas redefinido, pois uma guerra nuclear regional entre Índia e China ou entre Paquistão e Índia não deixará de provocar uma catástrofe planetária.

Na periferia do mundo, o Brasil perdeu totalmente a capacidade de determinar seu próprio destino. Se por um lado o novo Estado neoliberal tenta agradar os norte-americanos abrindo mão da riqueza petrolífera do pré-sal, por outro nosso país afundará totalmente na miséria se deixar de exportar alimentos e matérias-primas para os chineses. Em caso de guerra entre EUA e China os brasileiros ficarão sem qualquer fonte de riqueza e não estarão de condições de barganhar o que quer que seja ao final do conflito.

Isso explica, de certa maneira, a violência extrema e dissimulada que está sendo empregada pelo Estado neoliberal contra a população indígena em especial e contra a população brasileira em geral. Antevendo uma lose lose situation os brasileiros ricos não querem dividir recursos públicos escassos com a imensa população empobrecida e decidiu exterminá-la: “morram que a economia cresce” é o verdadeiro lema de Paulo Guedes e Roberto Campos Neto. Entretanto, me parece evidente que aumento de miseráveis famintos e de famílias traumatizadas por causa do genocídio não será capaz de pacificar o país ou de conferir estabilidade às instituições neoliberalizadas.

No passado o objetivo do capitalismo era organizar a produção e o comércio para auferir lucros e garantir a defesa do Estado. A guerra era um fenômeno político que destruía temporariamente a racionalidade econômica. Durante a Guerra Fria a distinção entre paz e guerra deixou de existir. Atualmente, o objetivo dos capitalistas é desorganizar o mercado para maximizar lucros. A guerra permanente foi transformada em racionalidade econômica por outros meios.

No caso específico do Brasil, o genocídio pandêmico não foi apenas um programa de governo apoiado e gerenciado pelo Exército. Ele foi também uma solução violenta transitória para o conflito de classes e uma fonte de renda adicional de recursos públicos para a elite local num período de incertezas internacionais e locais. Quando a pandemia acabar a guerra civil repaginada em 2016 não chegará ao fim. O mais provável é que ela se intensifique.

Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Fábio de Oliveira Ribeiro

1 Comentário

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  1. A pistola manda. Mas só se tiver pistola e munição, que é ainda mais efêmera; logo, carecendo de permanentes manutenções no estoque. Carecendo de financiamento.
    O golpe começou com Carlos Britto aceitando uma acusação estapafúrdia e abrindo precedente para tudo o mais que veio a seguir. O judiciário, ternamente udenista deu golpe.
    E as Forças Armadas, pouco importa a natureza e a intenção dos grupos subscritores do golpe, só entraram pra valer quando sentiram que PT tinha perdido qualquer forma de controle, em 2014: não tinha religião, a comunicação era de uma pobreza de dar dó, não tinha mais o dinheiro bloqueado sucessivamente por qualquer juiz, cabo eleitoral da UDN (isso aconteceu em meados dos 40, em minha cidade), não tinha nada.
    E, principalmente: perdeu a total credibilidade de fato; atestada na noite de 20 de maio de 2013, quando milhões acorreram às enormes filas da Caixa Econômica, ao acreditar na boataria via SMS de que Dilma ia mexer no Bolsa Família.

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