Opinião

O Brasil tem um STF ou 11 ditadores de toga?, por Fábio de Oliveira Ribeiro

O Brasil tem um STF ou 11 ditadores de toga?

por Fábio de Oliveira Ribeiro

A imprensa comemorou a decisão proferida pelo Ministro Cristiano Zanin nos autos da RCL 64369 MC/MA. Sou defensor da liberdade de expressão e de imprensa, mas não posso deixar de fazer algumas observações sobre referida decisão.

O STF é o guardião da constituição (art. 102, caput, da CF/88). Todavia, nos últimos anos a Suprema Corte brasileira tem se transformado numa Assembleia Constituinte permanente que decide em última instância e de maneira ad hoc qual deve ser a redação da nova constituição do Brasil. Num momento são proferidas decisões que garantem direitos fundamentais, noutro os direitos fundamentais são simplesmente ignorados como se os Ministros do STF pudessem se colocar acima de qualquer normatização.

Dois exemplos bastam para evidenciar esse fenômeno.

Apesar da Constituição Cidadã garantir o vínculo de emprego (art. 7º, da CF/88) e outorgar à Justiça do Trabalho competência para decidir em cada caso concreto quando um determinado reclamante tem ou direitos trabalhistas (art. 114, da CF/88), o STF inventou um precedente para garantir a exclusão automática do vínculo de emprego quando o beneficiário da exploração do trabalho humano é uma plataforma de internet. A competência da Justiça do Trabalho nestes casos foi suprimida, algo que seria considerado crime de responsabilidade se praticado pelo presidente da República, a teor do art. 85, II, da CF/88.

Ao receber o recurso do ex-presidente Jair Bolsonaro no caso da punição que lhe foi imposta pelo TSE, o Ministro Alexandre de Moraes indeferiu o processamento do recurso. A Constituição Cidadã garante o duplo grau de jurisdição (art. 5º, LV), mas para que esse princípio se torne válido e eficaz não deve ser possível ao juiz que participou da prolação da decisão ser encarregado de revisá-la em grau de recurso. Na prática isso equivaleria à criação de um Tribunal de Exceção, algo proibido expressamente pelo texto constitucional (art. 5º, XXXVII, da CF/88). Alexandre de Moraes votou para condenar Jair Bolsonaro no TSE. Portanto, ele não deveria ter revisado aquela decisão. Ao fazê-lo ele também incorreu numa conduta que seria considerada crime de responsabilidade caso o ato fosse praticado pelo presidente da república (art. 85, III, da CF/88).

Quando comentou as consequências da força normativa da constituição, o jurista Georges Aabboud disse o seguinte:

“… Na medida em que a Constituição adquire força normativa em sua inteireza mediante a inserção dos princípios constitucionais e direitos fundamentais, estão lançadas as premissas para o recrudescimento constante da judicialização dos atos do Poder Público e de conflitos sociais.

Nesse cenário, de uma judicialização restrita a aspectos formais do produto legislado, [o] objeto da jurisdição constitucional foi sendo ampliado para controle material da legislação, controle dos atos do Executivo, correção das omissões legislativas, atos normativos de regulamentação das Agências Reguladoras, controle da jurisprudência de outros Tribunais, a mera demonstração dessa crescente amplitude da jurisdição constitucional é suficiente para evidenciar como se operou significativo aumento da complexidade dos conflitos submetidos à jurisdição constitucional, culminando na insuficiência do conceito de legislador negativo para funcionalização da jurisdição constitucional.

Daí nossa insistência na necessidade de superação do modelo puramente kelseniano de controle de constitucionalidade, que além de reduzi-lo a uma espécie de vertente do processo legislativo, alijava os juízes da interpretação do texto constitucional, como se apenas o Poder Legislativo fosse seu destinatário, Na realidade, mais do que necessidade essa superação se impôs faticamente, prova disso são as novas modalidades de decisão da jurisdição constitucional, bem como a ampliação, ainda crescente, do objeto da jurisdição constitucional.” (Direito Constitucional Pós-Moderno, Georges Abboud, Thomson Reuters, São Paulo 2021, p. 291/292)

O jurista citado considera a ampliação crescente do objeto da jurisdição constitucional um fato consumado. Os abusos que foram relatados no item III da presente e outros fartamente apontados por estudiosos do Direito Constitucional e das decisões do STF (o próprio Georges Abboud comentou vários deles no livro Ativismo Judicial – os perigos de se transformar o STF em inimigo ficcional, Thomson Reuters, São Paulo, 2022), bem como o próprio objeto da RCL 64369 MC/MA, sugerem que a Suprema Corte do nosso país está passando por uma perigosa mutação.

O STF foi originalmente concebido para ser o guardião da constituição. Num segundo momento ele se transformou em guardião de suas próprias decisões (inclusive de suas decisões abusivas que são enfiadas goela abaixo dos membros da Justiça do Trabalho). Como se tornou fonte primária de novos conflitos constitucionais, o STF já atua como se fosse um verdadeiro ditador, capaz de solucionar as exceções criadas pelos seus próprios Ministros.

No momento em que proferiu a decisão que foi suspensa, o juiz da 8ª Vara Cível de São Luís aplicou no caso concreto, segundo seu próprio entendimento, a decisão do STF. O prejudicado poderia recorrer ao Tribunal de Justiça, mas preferiu ir direto ao STF onde obteve uma decisão favorável da lavra do Ministro Cristiano Zanin.

A insegurança jurídica criada pelo precedente do STF referente à liberdade de expressão e de imprensa é evidente. Nesse caso, a jurisdição constitucional concentrada não apenas deixou de pacificar a sociedade. Ela reforçou o papel ditatorial da Suprema Corte que vai sendo mais e mais constrangida a atuar como se fosse a única instituição judiciária do país dotada de uma competência ad urbi et orbi. Assim como suprimiu a competência da Justiça do Trabalho nos processos envolvendo empresas de Apps, o STF revoga agora a competência dos Tribunais de Justiça dos Estados-membros quando a questão refere-se à liberdade de expressão e de imprensa.

O número de processos no STF explodiu. As soluções para os problemas enfrentados pela Suprema Corte são variadas e todas politicamente plausíveis: investidura de Ministros para cumprir mandato fixa de 8 a 10 anos sem direito à recondução; possibilidade de remoção do Ministro que profira decisão manifestamente abusiva ou que caracterize crime de responsabilidade na forma do art. 85, da CF/88; afastamento compulsório da Corte aos 65 anos de idade; redução de competência do Tribunal e/ou o aumento do número de juízes.

Todavia, sequiosos dos poderes quase absolutos que conquistaram os Ministros do STF se recusam a aceitar qualquer reforma da Suprema Corte. Em decorrência da inevitável entropia, nossa corte suprema está se tornando supremínima. Ninguém mais aguenta realmente escutar durante horas o rolando-lero jurídico-neoliberal dos Ministros Gilmar Mendes, Luiz Fux, Luís Barroso, etc… No fundo até aqueles que aplaudem o resultado dos julgamentos sabem que os Acórdãos do STF deformam o sistema constitucional, mas são incapazes de recriar ou transformar a realidade brasileira. Só a política pode fazer isso, mas a Suprema Corte atravancou o progresso da política ao vergonhosamente participar da preparação do golpe de estado de 2016.

O fenômeno da Lava Jato deveria ter ensinado ao Judiciário brasileiro uma lição: não é aconselhável concentrar muito poder nas mãos de um único juiz. No auge daquela operação, Sérgio Moro também exercia uma competência ad urbi et orbi e praticava atos abusivos que não eram e não poderiam ser revisados nem pelo TRF-4, nem pelo STJ. Em decorrência das escolhas feitas pelos Ministros, no princípio da Lava Jato o próprio STF ficou acoelhado como disse Lula. Agora, esse Tribunal se mostra valente e incorre nos mesmos desmandos que foram cometidos pelo herói lavajateiro.

Durante a Lava Jato o Brasil tinha um ditador de toga que despachava na primeira instância da Justiça Federal. Agora nosso país tem 11 ditadores numa Suprema Corte que revisa e mutila o texto constitucional e vezes prefere acintosamente descumprir seus preceitos e suprimir as competências de todas as outras instituições do Poder Judiciário. Frear a ambição política dos Ministros do STF será em breve algo tão indispensável quando foi interromper a carreira de Sérgio Moro.

Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para dicasdepautaggn@gmail.com. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

Fábio de Oliveira Ribeiro

Fábio de Oliveira Ribeiro

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