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do ObjETHOS
por Rogério Christofoletti*
“Impacto” é uma das palavras favoritas de muitos jornalistas. Ela tenta apontar para consequências do seu trabalho e para coisas que aconteceram a partir da publicação de uma reportagem, por exemplo. Todo jornalista espera causar impacto, pois, com isso, contribui para provocar mudanças de comportamento, interferir positivamente na vida coletiva e desfazer injustiças. Uma das medidas desse impacto é a repercussão social, e disso nem o jornalista Chico Felitti nem a Folha de S.Paulo podem ser queixar diante do sucesso recente do podcast “A Mulher da Casa Abandonada”. A publicação de sete episódios do podcast não só trouxe à tona uma história rocambolesca como gerou três efeitos: transformou o local onde mora a personagem-título num ponto de turismo bizarro, criou um circo midiático e levou a uma invasão policial espetaculosa para cumprimento de mandados de busca e apreensão na casa.
Para quem não ouviu, o podcast narra a história de uma mulher excêntrica que vive solitária numa mansão em escombros num dos bairros mais ricos de São Paulo. Seus hábitos estranhos ganham novos contornos quando Felitti adiciona outros elementos surpreendentes: a moradora é uma ex-milionária paulistana foragida da justiça dos Estados Unidos, acusada de ter mantido uma empregada doméstica em situação análoga à escravidão por décadas. Tecnicamente bem produzido, o podcast oferece uma experiência de mergulho numa história que flerta com terror, suspense, denúncia social e jornalismo investigativo. Aliás, é justamente por se apresentar como um produto jornalístico que o podcast me chamou a atenção. Um segundo motivo provocou a escrita deste texto: no Twitter, uma importante pesquisadora manifestou seu desconforto sobre o podcast e perguntou como ele poderia ser visto pelas lentes da ética jornalística. Genuíno, o questionamento mostra como o jornalismo ainda precisa explicar suas ações e escolhas para o público, e quanto há de névoa em torno da legitimidade das nossas atitudes diante dos fatos.
Como se trata de um podcast, a materialidade do trabalho jornalístico está em entrevistas e conversas gravadas por Felitti durante a investigação. Fica claro, ao longo dos episódios, que nem sempre os depoentes sabem que estão sendo gravados, que estão participando de um documentário jornalístico ou que seu interlocutor é jornalista. A gravação de conversas sem autorização é uma técnica controversa, mas usual no jornalismo. É polêmica porque fica no limite ético, podendo ser justificada diante de um benefício maior que eventuais danos. Quer dizer, jornalistas se dispõem a gravar sem o consentimento das pessoas quando o conteúdo dos áudios trazem informações de denúncias que não poderiam ser obtidas pelos meios convencionais e com as esperadas autorizações. Do ponto de vista legal, privacidade, intimidade e imagem pessoal são direitos individuais protegidos. Só se admite violá-los com decisões judiciais ou para atender outra expressão favorita dos jornalistas: “interesse público”.
Curiosidade x interesse público
Nos manuais de jornalismo e na literatura especializada, o interesse público é a grande razão para que jornalistas façam vista grossa para atitudes inconfessáveis ou mesmo avancem sobre a lei. Em nome do interesse público, pode-se recorrer a métodos controversos, como usar gravadores clandestinamente ou captar imagens com câmeras ocultas.
Apoiado em diversas técnicas narrativas, Felitti conta em primeira pessoa como foi descobrindo os segredos por trás das paredes daquele casarão em ruínas. Descreve detalhadamente locais e personagens, compartilha sentimentos íntimos e investe pra valer nas ambientações. Para isso, insere áudios que ajudam a compor as várias paisagens sonoras que sustentam sua história, e deixa o gravador ligado furtivamente quando aborda pessoas variadas. Bem editado, o podcast “vicia” e leva os ouvintes a “maratonar”, consumindo um episódio atrás do outro. A julgar pela técnica jornalística, tudo parece muito bem.
Pelo que se percebe, em “A Mulher da Casa Abandonada”, Chico Felitti se move para contar uma história inusitada, com uma personagem intrigante e uma justificativa moral bastante defensável: denunciar uma pessoa que cometeu crimes detestáveis e que permanece impune. São razões que o jornalismo abraça, é verdade, mas a forma como isso é feito coloca o projeto na berlinda. Do ponto de vista da ética jornalística, o podcast oferece um conjunto de temas para discutir e uma fila de práticas para evitar.
Em algumas atividades, entre elas, o jornalismo, a escolha do formato para se contar a história ajuda a definir suas arestas éticas. A apresentação de um enredo dividido em tantas partes estica a história, gerando uma novelização daquela tragédia e uma consequente espetacularização do fato. Alongar a contação é uma estratégia para deixar o público entretido por mais tempo, gerando a necessidade de espalhar pequenas armadilhas para manter sua curiosidade. Note que escrevi “curiosidade”. Sim, ela é próxima, mas bem diferente do interesse, e é mais distante ainda do interesse público.
A curiosidade é fugaz, banal, superficial. É imediatista, altamente perecível e absolutamente humana. Todo o mundo pode se deixar fisgar por querer saber de algo que pode ser importante ou não. No outro pólo temos o interesse, que é mais comedido, espesso e mais exigente. O interesse depende de mais concentração e dedicação, e se distribui ao longo do tempo. O interesse público de que os jornalistas falam amplifica a ideia de interesse individual porque o coletiviza. Tudo o que afeta e potencialmente interfere na vida da sociedade e dos seus grupos sociais é de interesse público. Não se pode deixar de considerar que curiosidade e interesse são alimentados em doses distintas, mas ambos dependem da capacidade de se capturar a atenção das pessoas. O jornalismo vive disso também. O impacto desejado só pode vir se o público voltar a cabeça para a reportagem e se dispuser a consumi-la.
Em “A Mulher da Casa Abandonada”, não vejo um investimento por um efetivo interesse, mas pela curiosidade. Há algo de jocoso nas vinhetas e temas musicais de fundo. Existe um permanente tom especulativo e a arquitetura de alguns capítulos se apoia quase que exclusivamente nas queixas e impressionismos de vizinhos. Não chega a ser um podcast sensacionalista, mas em muitos momentos ele é apelativo. O que era para ser “investigativo” aproxima-se perigosamente das fofocas de um bairro privilegiado, que se divide entre problemas de arborização e a convivência com uma moradora esquisitona. Em vários trechos também, resta a impressão de que o passado tenebroso e criminoso da personagem-título vitamina a ânsia coletiva para perseguir a vizinha inconveniente e indesejável. Da voz do narrador, emerge com força uma superioridade moral que ajuda a promover um inadiável julgamento daquela mulher.
Em tempos de redes sociais, o que era para ser jornalismo de denúncia se deteriora para a exposição exacerbada (“exposed”), provocando reações coletivas de cerco e perseguição. Não é à toa que, nas aberturas dos episódios finais, Felitti diga que se trata de jornalismo e não investigação policial, e que a Folha de S.Paulo condena agressões e perseguições aos envolvidos. Foi necessário dizer, pois o efeito de manada já estava criado entre alguns ouvintes do programa. Por isso, não é demais se perguntar: o podcast busca justiça ou contribui para um justiçamento? Há inequívoco interesse público em apresentar tão ostensivamente aquele caso? Era possível tratar de uma temática tão delicada e urgente quanto o trabalho escravo de uma maneira a não personalizar o assunto? É justificável que um repórter fareje o paradeiro de alguém que foi condenado pela justiça, cumpriu sua sentença e retomou sua vida, como é o caso do marido da personagem-título? É correto que o repórter busque a punição de quem ao menos foi julgado, como é o caso da mulher da casa abandonada?
Sinceramente, avalio que o interesse público de que os jornalistas falam passa longe nesta história, que é muito personalístico o tratamento dado e que o podcast insiste em alimentar a curiosidade popular, que sobrevive à base de um apetite que nunca termina. Note, por exemplo, que o próprio Chico Felitti prometeu em seu Twitter mais um episódio “com informações inéditas” e “o circo que se formou”.
Crime e Castigo
Nitidamente orgulhoso de preservar a identidade da vítima mantida como escrava nos EUA, o narrador faz adormecer os pudores éticos à medida que fornece quantidades generosas de informações pessoais e do histórico da foragida da justiça. Felitti vasculha o passado, interpela a vizinhança, cruza o oceano atrás de fontes na cidade do cativeiro, tudo em nome de uma investigação jornalística que pretende o quê? Reabrir o caso e punir novamente o marido da mulher da casa abandonada? Extraditar uma brasileira para que responda a um processo no exterior? Forçar sua condenação?
É evidente que os crimes atribuídos à personagem central do podcast são odiosos e inaceitáveis. É claro também que a impunidade não pode ser admitida. Mas por que tanta disposição para fazer justiça neste caso que tem no cerne, inclusive, uma personagem com prováveis transtornos psíquicos?
Recente sucesso no streaming de áudio nacional, “A Mulher da Casa Abandonada” permite pensar no que a busca por justiça pode provocar. Reparação? Compensação? Alívio moral? O podcast ajuda a refletir também sobre julgamentos morais e imperativos éticos para o jornalismo. Como garantir justiça, equilíbrio e proporcionalidade para contar uma história? É possível evitar a mera curiosidade para satisfazer o verdadeiro interesse público? De forma melancólica, terminei a audição dos episódios com um ruído incômodo: no podcast, o abandono maior não é à construção que um dia foi uma imponente mansão paulistana. O que mais assusta é a celebração do jornalismo que persegue, julga e incita ao justiçamento, tão distante do que insistimos pensar ser correto, importante e justo.
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*Rogério Christofoletti professor de jornalismo e pesquisador do objETHOS. Twitter: @christofolettis
O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].
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Excelente análise! Muito discernimento! Ética passou longe deste podcast que transformou jornalismo em mero entretenimento, dito de outro modo, caçador de likes.
Estava dirigindo quando um dos caronas colocou uma parte de um dos capítulos desse tal melodrama infantil produzido pela folha de São Paulo. Para um público que assiste heróis da Marvel ou qualquer porcaria apresentada no cinema e agora nesses podcasts tanto a não história como a produção com não entrevistas sobre um não caso relatado pode causar algum interesse. Eu logo comecei a reclamar e pedir para desligar, pois a infantilidade da narrativa, um total e completo giro sobre o mesmo ponto, além de sem a mínima estrutura narrativa que prendesse a atenção, se repetia em todo o tempo.
Deixando de ser democrático e fazendo valer o direito de propriedade simplesmente desliguei, depois de minutos de tortura, desliguei o rádio sem antes definir o que em poucos minutos o que era a história, vazia, uma fofoca entre vizinhos contra uma senhora que aparentemente apresenta algum distúrbio mental extremamente leve, que não a impede de levar a sua vida.
Porém o mais grave de tudo, que sem nenhuma confirmação oficial, a senhora reclusa foi acusada de manter uma pessoa em regime similar a escravidão, só baseando-se no fato que seu esposo que tem nacionalidade americana foi condenado por leis de violação ao regime de imigração.
Não há nenhuma informação pública que a mesma está foragida das leis norte-americanas e ela saiu dos USA dois anos antes da justiça norte-americana abrir um processo contra seu esposo.
Mas além de todas as falsas informações transmitida por esse podcast a valiosa polícia paulista fez uma verdadeira invasão na casa da senhora com direito da entrada ilegal de rede de televisão, exposição da senhora ao escárnio público e roubo de um cãozinho de propriedade dessa senhora por uma histérica “defensora dos animais”.
Olha, Rogério: confesso que não ouvi o podcast; preferi ler a transcrição. Penso que o Chico Felitti agiu de forma tecnicamente correta quando entrevistou vizinhos da “Casa Abandonada”, e até se deslocou aos EUA para ouvir outros envolvidos nesse episódio. Exerço o jornalismo há 42 anos, mais da metade como repórter investigativa. E, várias vezes, já fiz isto: percorri quarteirões, entrevistando vizinhos. Para “perseguir” pessoas? Não: para levantar mais elementos. Trabalho quase sempre com a investigação de improbidades, “maracutaias”. E já me aconteceu, muitas vezes, de possuir documentos contábeis a indicar que determinadas empresas eram de fachada. Mas, para obter mais indícios, era preciso não apenas ir ao local e verificar se ali havia ao menos uma placa, antiga ou recém-pintada; era preciso conversar não só com os ocupantes do imóvel, que poderiam estar até envolvidos no esquema: era preciso, sobretudo, ouvir a vizinhança, para saber acerca da movimentação naquele imóvel; se alguma vez funcionou algum empreendimento ali, quando, por quanto tempo, sob o comando de quem e vendendo ou produzindo o quê. Então, não é “perseguir”. É que jornalismo investigativo exige esse tipo de apuração. Concordo com você na crítica a gravações escondidas, tão em uso na imprensa: a meu ver, o correto é ligar o gravador e colocar na frente da pessoa. No entanto, penso que esse nem foi um dos maiores problemas desse podcast. Bem mais problemático foi o Chico Felitti ter se fixado em apenas um personagem, em um tema tão vasto e complexo quanto a escravidão contemporânea. Ele optou por um jornalismo-novela, quando o ideal teria sido optar por um jornalismo ao estilo das séries americanas, mais parecido com as séries de reportagens do jornalismo investigativo. Porque isso permitiria ter um personagem, uma pessoa explorada, em cada episódio, mostrando tudo o que ela sofreu; como foi que acabou cativa; em que pé se encontra o caso; quem foram os seus exploradores etc…E os fios condutores, os elementos permanentes, poderiam ser um agente do Estado que trabalha no combate ao trabalho escravo e os dados acerca disso. Quer dizer: apesar de não me ligar em podcast e preferir a leitura, não descartaria esse formato para reportagens investigativas, já que atrai as pessoas e ajuda a relatar, de forma mais simples, problemas complexos e de grande interesse público. E isso é muito bem-vindo, já que o esforço de comunicação, em tais casos, tem de ser principalmente nosso. Então, penso que o que é preciso é dar uma bela de uma guaribada nessa excelente ideia. Até porque, bem vistas as coisas, trata-se de explorar mais o potencial informativo do rádio, só que com uma “repaginada”. Agora, também concordo com você que essa história da Mulher da Casa Abandonada não é exatamente de interesse público. É muito mais um “causo”, uma coisa curiosa, o que acabou reforçado pela escolha de um jornalismo-novela, que sufocou o debate acerca do trabalho escravo. Ao que li, o Chico Felitti começou a investigar isso tudo pensando se tratar de uma mulher sozinha, vista com estranheza, e até hostilidade, pela vizinhança, o que seria um “causo” bastante interessante, porque remeteria à discriminação contra mulheres sozinhas. Mas, enquanto investigava, ele descobriu que se tratava, supostamente, de uma foragida da Justiça norte-americana, que teria escravizado uma pessoa, décadas atrás. E creio que aí é que está o grande equívoco do Felitti: não ter parado, imediatamente, com essa investigação. Primeiro porque uma consulta a advogados mostraria que o caso estava prescrito. Segundo porque a personagem escolhida sofre, aparentemente, de transtornos mentais. Assim, ele deveria ou ter abandonado o caso de vez, ou ter partido para uma bela reportagem sobre o abandono de pessoas incapazes, na rica e populosa cidade de São Paulo. Qualquer alternativa seria melhor do que insistir em uma investigação que poderia resultar em linchamento moral, e de uma pessoa incapaz, como, de fato, aconteceu. Agradeço por você abordar, corajosamente, o triste espetáculo que isso acabou se tornando. Mas peço que reflita, com seus alunos, sobre o uso desse formato, em grandes reportagens, após uma bela de uma guaribada. Abs,
Parabéns pelo texto Rogério! Compartilho da mesma visão e ainda não tinha sido capaz de reproduzir em palavras. Do ponto de vista de entretenimento o podcast me levou a maratonar, porém a cada episódio eu me sentia incomodado. Quando terminou a sensação que eu tive foi um projeto produzido pra caçar likes… ou melhor views.
Ufa!
Muito obrigado. Concordo plenamente. Ao final, um incômodo diante da arrogância justiceira.
Como uma tentativa de reparar algo pode provocar tanto mais estrago?