O verdadeiro batom na cueca do caso das offshores, por Eduardo Borges

O capitalismo criou sua própria ética que justifica que capitalistas nacionais possam driblar o sistema de impostos do país investindo em paraísos fiscais. Desde que eles avisem que estão fazendo isso, a ética do próprio sistema os torna dentro da lei.

O verdadeiro batom na cueca do caso das offshores

por Eduardo Borges

Quando discursou na ONU o presidente Jair Bolsonaro, entre diversas escatologias, afirmou que sua vitória em 2018 foi necessária para livrar o país de um quase socialismo. É certo que tirando os membros da seita bolsonarista, tanto direitistas quanto esquerdistas sabem que a última vez em que o Brasil flertou mais próximo com isto foi a mal organizada tentativa revolucionária liderada por Luís Carlos Prestes em 1935. De lá para cá, o capitalismo reinou nadando de braçada e independente do “interregno” petista entre 2002 e 2016, manteve-se firme e intocável. Diria o ex-presidente Lula: “no meu governo os bancos nunca ganharam tanto” e diria o comunista Lenin: “o que é um assalto a banco perto do que é um banco”.

Dito isto, vamos ao que interessa. Este texto é tão somente para fustigar algumas considerações e reflexões a cerca do capitalismo brasileiro e sua elite econômica e política no contexto deste escândalo das offshores em paraísos fiscais. Temos a elite mais usurária e arrogante do mundo. Nosso passado político foi fincado, a partir de 1822, em um “liberalismo” escravista quando boa parte das nações do mundo ocidental, principalmente as do centro do capitalismo mundial, já defendiam estrategicamente (não existe nada de humanismo nessa história) a transição e consolidação para o trabalho assalariado. Juntamente com o salário viria a exploração da mais valia absoluta e precarização das relações de trabalho como fundamento básico da exploração e do lucro. A produção de pobres fornecia a mão de obra barata tão necessária ao enriquecimento da burguesia industrial nascente.

Contudo, não bastava controlar o capital era necessário controlar aqueles que estabeleciam as condições políticas e administrativas que assegurassem a ampliação da exploração e do lucro. O sistema construía sua máquina perfeita ao unir economia e política. Os donos do poder formavam a parceria que sustentaria o capitalismo ocidental com poucos riscos de sobressaltos. Acreditar em um possível risco de um socialismo brasileiro no século XX e mesmo no iniciar do XXI é possível somente em mentes tão obtusas e medíocres como as dos membros da seita bolsonarista.

O próprio Bolsonaro sabe que ele só chegou a ser presidente porque o capitalismo triunfou no Brasil do século XX e XXI. No caso de sua micro oligarquia familiar o esquema das rachadinhas funcionava como uma espécie de “capitalismo doméstico de Estado”. O 01, 02 e 03 se mostraram exímios capitalistas ao multiplicarem de forma estratosférica seus respectivos salários pagos pela sociedade brasileira e isto só foi possível porque vivemos em pleno capitalismo. A casa de 6 milhões de reais do “nobre” senador Flavio (comprada com o salário acumulado de Deputado Estadual) é o exemplo da mais competente forma de retirar do capitalismo todas os benefícios que lhe é possível. O 04 e toda sua verve de empreendedor individual talvez seja a melhor expressão de como os Bolsonaros manipulam com mestria, sempre em benefício próprio, os instrumentos de uma espécie de “capitalismo doméstico de Estado”. Mas Bolsonaro segue nos alertando sobre os riscos do socialismo. Estranho é ter uma parcela de brasileiros excluídos socialmente pelo capitalismo tão adorado pelos Bolsonaros, que segue temendo o “monstro imaginário” do socialismo, campanha que só beneficia política e economicamente à família presidencial e a burguesia nacional.

Feito esta pequena introdução chego, finalmente, ao tema central deste artigo que é a grande notícia do momento surgida em decorrência da publicação dos Pandora Papers, vazamento de informações obtido pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ) que traz informações sobre offshores abertas em paraísos fiscais por diversas autoridades, personalidades e bilionários do mundo.

No Brasil o fato ganhou destaque por trazer os nomes do ministro da Economia Paulo Guedes e do Presidente do Banco Central Roberto Campos Neto. Apesar de se tratar de um grande prato a ser comido lentamente pelo mundo da política (ambos servem a um governo que sofre pressão de um processo de impeachment), prefiro enxergar este fato sob uma ótica mais complexa, aquela que escancara a verdadeira e mais cruel face do sistema capitalista brasileiro.

O fato de Guedes e Roberto Campos, homens do mercado servindo momentaneamente à política, serem proprietários de offshores em paraísos fiscais e, consequentemente, se beneficiarem na vida privada de decisões tomadas na vida pública somente reafirma o que todos já sabiam, de que não existe capitalismo separado do Estado. O Estado mínimo pregado por eles visa somente àquela parte do Estado que se preocupa com a igualdade e inclusão social, esta tem que ser devidamente enquadrada pela reforma trabalhista e pelo teto de gastos. Os pobres no capitalismo são custos e não investimentos. Para os Guedes et caterva o Estado deve ser máximo no limite da preservação dos seus interesses privados. Diria outro senador: “vai vendo Brasil”.

Além de Guedes e Roberto Campos (rentistas na momentânea condição de sócios oficiais do poder político), outros sujeitos como Luciano Hang (também ele presente na lista do Pandora Papers) podem ser vistos como rentistas sócios não oficiais do poder político. Não existe almoço grátis, o apoio do “patriota” Hang e outros bilionários ao governo Bolsonaro é somente a legitimação da espúria sociedade entre os poderes. Hang se vende como um “patriota”, se veste de verde e amarelo, combate o inimigo do socialismo (agora já sabemos por que), mas não tem nenhum escrúpulo em não declarar suas offshores por 17 anos.

O patriotismo e nacionalismo de Hang e Cia não é suficiente para deixar de aplicar seus recursos em locais que não cobram impostos de offshores. Ele ama o Brasil, desde que não tenha que gastar um tostão por isso.  Alguns irão justificar afirmando que ele é um grande empresário que gera empregos, como se um empresário abrisse uma empresa para criar empregos e não para acumular lucros à custa da exploração do trabalhador. No caso de Hang, entre 1992 e 1996 ele deixou de recolher o valor correto do INSS de seus funcionários com a sonegação atingindo cifras de mais de 10 milhões de reais. Condenado a 3 anos e 11 meses de prisão, o empresário bolsonarista fez acordo para pagar a dívida e fugir da pena. Não foi gratuita a malta de políticos bolsonaristas que se fizeram presentes na CPI da Covid quando o “veio da Havan” foi prestar depoimento. O andar de cima sabe qual o momento certo de se defender mutuamente.

Certamente que a oposição vai espernear e exigir punições a Paulo Guedes e Roberto Campos, e certamente eles terão “boas” explicações e justificativas. Casos como estes não configuram, necessariamente, batom na cueca. O capitalismo criou sua própria ética que justifica que capitalistas nacionais possam driblar o sistema de impostos do país investindo em paraísos fiscais. Desde que eles avisem que estão fazendo isso, a ética do próprio sistema os torna dentro da lei. O argumento do conflito de interesses (por mais que seja explícito neste caso) se torna subjetivo na narrativa dos donos do poder.

 Mas casos como estes nos possibilitam a oportunidade de denunciar abertamente a promiscua relação entre o capital e o poder político. Mais do que isto, diante dos inúmeros políticos da América Latina (três presidentes em exercício) presente na lista e o fato de todos eles serem vinculados a partidos de direita precisa ser devidamente debatido pelos setores progressistas da sociedade. Na Europa e nos EUA o setor político tem colocado na parede os agentes públicos envolvidos com a lista do Pandora Papers.

Na Inglaterra, políticos como Margaret Hodge membro da Câmara dos Comuns, admitiram que o Reino Unido “está no cerne do Escândalo”. Afirmou Hodge “O sigilo sobre a propriedade permite a lavagem de dinheiro. Advogados, banqueiros e consultores britânicos fornecem a cobertura. Nosso regulamento é fraco, nossa aplicação patética.”[1]No centro do capitalismo mundial o caso das offshores estão extrapolando o debate político e abrindo a possibilidade de debater o funcionamento do próprio sistema capitalista. Será que o Brasil vai seguir este exemplo? Na América Latina a presença de pesos pesados da política na lista, como o chileno Sebastian Piñera, o equatoriano Guillermo Lasso, além de ex-presidentes colombianos como os liberais César Gaviria e o conservador Andrés Pestrana deixa em aberto as vulnerabilidades da direita no Continente. No caso de Guillermo Lasso, do Equador, os documentos dos Pandora Pepers mostraram que ele chegou a ter 14 empresas offshores. Precisou que o esquerdista Rafael Correia desenvolvesse uma lei que proibia candidatos a presidente de serem beneficiários de empresas em paraísos fiscais.[2] Temos mais um exemplo que explica o medo de Bolsonaro e da burguesia brasileira com o tal do “socialismo”.

No Brasil a esquerda precisa aprender com a horda bolsonarista de como propagar na blogosfera verdades que incomodam os conservadores e reacionários do país.

Portanto, por mais que o fato de o ministro que comanda a economia lucrar privadamente com seus atos públicos seja algo realmente escandaloso, isto é somente a parte externa do iceberg. O importante agora é aproveitar a oportunidade para debater a dinâmica espúria e indecente do sistema capitalista brasileiro que se sustenta na promiscua relação entre o poder econômico e o poder político, tendo como resultado final o maior enriquecimento de quem já é rico e o maior empobrecimento de quem já é pobre. Vai vendo Brasil, 2022 é logo ali.    


[1] https://www.theguardian.com/news/2021/oct/04/tories-facing-calls-to-return-cash-from-donors-named-in-pandora-papers.

[2] https://brasil.elpais.com/internacional/2021-10-03/pandora-papers-na-america-latina-tres-chefes-de-estado-e-11-ex-presidentes-operaram-em-paraisos-fiscais.html.

Eduardo Borges (Professor Adjunto de História – UNEB)

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Redação

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