Derrota e fuga de Bolsonaro: que sonho incrível!, por Marcio Valley

O pensamento bolsonariano é, antes de tudo, em sua essência, antidemocrático. A vida toda Bolsonaro pregou que, eleito presidente, daria um golpe no dia seguinte

Derrota e fuga de Bolsonaro: que sonho incrível!

por Marcio Valley

            A ascensão do bolsonarismo ao poder foi a coisa mais deletéria a acontecer com o país desde a ditadura militar. Num país que vinha, desde o governo Collor, aos poucos se afirmando perante o mundo e se colocando como modelo em termos de respeito às instituições democráticas, nas pautas igualitárias, na gestão dos recursos ambientais e na mitigação da desigualdade social, a eleição de um representante do pensamento protofascista bolsonariano foi um balde de água fria e uma frustração política gigantesca.

            O representante máximo do bolsonarismo, ora presidente, é uma figura política grotesca que dificilmente encontra comparação no Brasil e no mundo. Seu pensamento é medieval, absolutista. Contra o Estado laico1, defende a prevalência da visão religiosa também no plano político. Essa visão teocrática, dogmática e indiscutível por natureza, é exatamente o que ocorria no passado e ainda ocorre atualmente, como são exemplo os países muçulmanos.

            O pensamento bolsonariano é, antes de tudo, em sua essência, antidemocrático. A vida toda Bolsonaro pregou que, eleito presidente, daria um golpe no dia seguinte, fechando Congresso e Supremo, os dois outros poderes da república. Em outras palavras, tornaria-se um ditador. Por isso mesmo, nenhum eleitor do bolsonarismo pode afirmar-se democrata, pois se utiliza da democracia apenas para a ela pôr fim, destruindo as liberdades civis.

            Embora tenha se tornado um certo lugar-comum, não há como falar da ameaça bolsonarista sem indicar o nazismo alemão como exemplo das possibilidades. Afial, trata-se do mais importante modelo histórico negativo do que pode decorrer da omissão ou pouco-caso de cidadãos e eleitores com políticos de orientação despótica que manejam o discurso moralista cristão para alavancar seus projetos de dominação. Hitler e o nazismo não teriam matado milhões de judeus, ciganos, homossexuais e outras minorias políticas se os alemães brancos e cristãos tivessem repudiado, desde o nascedouro, essa excrescência política. Em seu livro autobiográfico, escreveu Hitler2:

E, assim, eu creio, como sempre, que o meu comportamento está de acordo com a vontade do Onipotente Criador. Enquanto me mantiver de pé, serei contra o Judeu, defendendo a obra do Senhor.

            Isso foi em 1924, muito antes dele assumir o poder. Os alemães tinham conhecimento da personalidade de Hitler, apenas colocaram seus pensamentos na condição de bravatas, de piadas do tiozão no churrasco, exatamente como alguns brasileiros se referem ao nosso fascista em progressão.

            Até agora, as instituições, com muito custo e imenso desgaste, têm mantido os bolsonaristas – presidente, generais e seguidores – sob rédea curta. Pode não ser assim num segundo mandato, com o bolsonarismo sentindo suas ações como aprovadas pelos eleitores. Assim como Hitler, Bolsonaro jamais escondeu suas convicções antidemocráticas e totalitárias. É possível selecionar dezenas de reportagens e vídeos nos quais defende a tortura, o assassinato de inimigos políticos, o fuzilamento de “esquerdalhas”, o golpe contra o Congresso e contra o Supremo, a guerra civil mesmo ao custo da morte de incontáveis inocentes e outras sandices desse nível. Escolhi apenas um vídeo, do Youtube, bem representativo do pensamento bolsonariano, para quem duvidar que tais coisas saíram da boca do próprio Bolsonaro. É esse aqui: Declarações inacreditáveis do Bolsonaro3. Mas, quem decidir, por honestidade intelectual, perder alguns minutos no Google, encontrará incontáveis exemplos do tipo.

            Justamente por ser o que é, Bolsonaro mereceu, desde antes de eleito, o repúdio enojado de um terço da população brasileira, com movimento do tipo “Ele, não, ele, nunca”. Como não podia deixar de ser, houve um cisma gigantesco na sociedade brasileira, com amigos e familiares deixando de se falar. Na época da eleição, publiquei texto no qual afirmava que ele não teria facilidade, seria fiscalizado diuturnamente pelos 47 milhões de brasileiros que não votaram na indignidade.

            E foi, sem trégua em minuto algum. Talvez por isso mesmo o protofascismo se encerre logo no primeiro mandato. O bolsonarismo não conseguiu avançar em sua agenda de endurecimento do regime. Fez muito mal, milhares de pessoas morreram por conta do descaso e da ineficiência. A conta, todavia, poderia ser muito maior não fosse a resistência incansável, principalmente da mídia alternativa e dos partidos progressistas e seus simpartizantes.

            No momento em que escrevo (21/08/2022), encontramo-nos a 42 dias do primeiro turno das eleições de 2022, a ser realizado em 02/10/2022, domingo. Segundo a mais recente pesquisa do Datafolha, o ex-presidente Lula lidera a corrida presidencial com ampla vantagem sobre o segundo colocado, o atual presidente Bolsonaro: Lula possui 47% da preferência dos eleitores, enquanto Bolsonaro tem 32%. Considerando os votos válidos, o ex-presidente abocanha 51% do eleitorado, o que significa possibilidade concreta de finalizar a eleição já no 1º turno.

            Analisando a média das pesquisas eleitorais, o sociólogo e pesquisador Marcos Coimbra considera a fatura liquidada4 Para ele, a análise da evolução das pesquisas eleitorais realizadas para essa eleição, nas quais Lula mantém há mais de ano uma distância considerável de Bolsonaro, coloca uma pá de cal na pretensão de reeleição. Coimbra ironiza ao dizer que Lula já pode encomendar o terno da posse.

            De fato, o presidente não conseguiu impacto positivo de monta mesmo após ser socorrido pela bancada do Centrão com a aprovação do “pacote eleitoreiro de bondades”. O antirrepublicano orçamento secreto bilionário negociado entre Bolsonaro e os líderes do Centrão, o mais escandaloso caso de corrupção legal que esse país já testemunhou, deu demonstração inequívoca de sua valia. Os pagamentos de bolsa-caminhoneiro e Auxílio Brasil se iniciaram dois meses antes da eleição. Além disso, a campanha de reeleição recebeu valiosa ajuda da Petrobras e dos grandes empresários. Cientes da fragilidade eleitoral de sua galinha dos ovos de ouro, cortaram na própria carne para reduzir os preços à fórceps e melhorar a imagem de Paulo Guedes, símbolo da suposta, e falsa, eficiência do governo no aspecto econômico.

            Auxílio caminhoneiro, auxílio Brasil e redução artificial de preços engendrados após sucessivas pesquisas eleitorais negativas e a poucos dias da eleição representam um movimento eleitoreiro evidente, óbvio demais. Não se podia supor, honestamente, que essa natureza fraudulenta passaria desapercebida. E não passou. O povo sabe que as benesses do governo possuem data certa para acabar, 31 de dezembro de 2022, e que, após isso, caso reeleito o atual modelo econômico, um número inadmissível de pessoas estará novamente ao léu, desempregadas, comprando ossos no açougue ou catando restos nas lixeiras para sobreviver. É por isso que decidiram receber os auxílios oferecidos, porque se encontram em situação precária e precisam deles. Todavia, as pesquisas demonstram que isso não se converterá em votos pela reeleição. As pessoas identificaram o canto da sereia e estão dizendo: não somos estúpidas, sabemos o que vocês querem!

            Quanto aos preços, não nutram ilusões. Serão mantidos nos patamares atuais somente até a definição eleitoral, no primeiro ou no segundo turno. Logo depois, sem dúvida alguma, voltarão aos escandalosos níveis anteriores, ganhe quem ganhar. Se Bolsonaro, porque esse é o modelo econômico adotado por seu governo: a total liberdade de lucrar ao máximo com a miséria humana; com margens inescrupulosas de lucros obtidas às custas da fome e da morte dos brasileiros desvalidos. Se Lula, para que os preços ainda estejam estratosféricos, objetivando manter ao menos em parte os ganhos artificiais já alcançados antes que se iniciem as negociações futuras, que sabem inevitáveis, que ocorrerão com o novo governo para recolocação do trem nos trilhos.

            A eleição está definitivamente polarizada entre Lula e Bolsonaro é fato. Não há a menor chance de crescimento dos candidatos da chamada “terceira via”. Pelo contrário, seus baixos percentuais de intenção de votos quase certamente serão ainda menores na realidade das urnas, ante a forte possibilidade de migração para os candidatos da ponta. Dito de outro modo: o próximo presidente será Lula ou Bolsonaro, seja a eleição decidida no 1º ou no 2º turno.

            Porém, resta a indagação: a fatura está liquidada mesmo em favor de Lula? Escaldado pela eleição de 2018, durante a qual, até o resultado final, considerava impossível crer que, tendo Haddad como opção, o povo escolheria uma pessoa com as características deletérias que Bolsonaro sempre fez questão de exibir por 30 anos, ainda tenho alguns receios. Esse é o motivo pelo qual, pela primeira vez em 40 anos de ativismo eleitoral, defendo o voto útil para extirpar o protofascismo instalado no governo brasileiro. Sempre defendi, e ainda defendo, que os eleitores votem com a consciência, independentemente das chances eleitorais do candidato. Porém, creio que a absoluta liberdade de consciência no voto somente é cabível em situações normais de temperatura e pressão. Ao menos no que toca a mim, entendo não ter o direito, em decorrência de profunda convicção num projeto político partidário ou, pior ainda, por mera vaidade intelectual, de colocar as pessoas e a sociedade em risco ao dar oportunidade de crescimento a um movimento político notória e inquestionavelmente possuidora de natureza antidemocrática e totalitária.

            E há, de fato, o risco da reeleição. O apoio ao inominável é grande, vem inclusive de onde jamais se esperaria. Por incrível que pareça, uma pessoa que defende que os cidadãos andem armados, o ataque a homossexuais que se beijam em público e a tortura e assassinato de inimigos políticos, recebe apoio de porção significativa dos cristãos, notadamente dos evangélicos. Bolsonaro, com apoio de sua atual mulher evangélica e de pastores inescrupulosos, propaga à exaustão, a seu próprio modo, a ideia de ser um enviado divino em sua luta contra os esquerdistas. Em nada surpreenderia se afirmasse: “creio que o meu comportamento está de acordo com a vontade do Onipotente Criador. Enquanto me mantiver de pé, serei contra as pessoas com pensamento de esquerda em defesa da obra do Senhor”. Como a História demonstra, esse tipo de discurso autodivinizante, expresso ou tácito, próprio ou de terceiros, é o prenúncio de muito sofrimento e morte.

             Somente por isso penso ser válido que os eleitores reflitam sobre a possibilidade de confirmar a previsão de Marcos Coimbra e liquidar o protofascismo já no 1º turno, de preferência por margem avassaladora, enviando mensagem inquestionável aos simpatizantes do inominável. Para não dar chance alguma ao azar. A ocasião faz o ladrão, diz o velho ditado. Em segundo turno, um congresso já eleito, sem medo de perder o mandato, pode ser tentado à prática de atos antidemocráticos. Vejam: não se trata de uma determinação, mas de uma sugestão. Não se advoga a renúncia à liberdade de voto. Sua consciência, seu voto. Nessa eleição, o eleitor ainda é livre para decidir em quem votar. Repito: nessa eleição. Todavia, todos devem estar bem cientes de que, a depender do resultado da livre escolha, poderá não ocorrer uma próxima eleição ou, se houve, pode ser que haja escolha alguma a ser verdadeiramente feita. Como dizia o Tio Ben para o Peter Parker, grandes poderes trazem grandes responsabilidades. Mas, não esqueça: shits happens. Cada eleitor tem o direito de votar como achar melhor, mas deve assumir a sua parcela de responsabilidade se e quando der merda, mesmo quando não tenha votado no eleito. O direito de não votar em alguém ou em ninguém é também uma escolha e, como tal, produz seus efeitos.

            Há uma vantagem em defenestrar Bolsonaro logo no 1º turno que, talvez, tenha escapado a alguns: dará a ele e aos seus uma janela de oportunidade maior, valiosa, de fugir do Brasil institucionalmente, com passaporte diplomático. E isso é o melhor que poderia acontecer para a pacificação social desse país. Respeito bastante a ideia de ser mais republicano e apropriado  submetê-lo a um julgamento justo e, se for o caso, prisão. De fato, seria, porém divirjo e explico.

            O primeiro ponto a considerar é que o nosso sistema policial-judiciário está, em grande medida e infelizmente, tomado por representantes do pensamento protofascista bolsonariano; as chances de Bolsonaro ser efetivamente condenado são bastante remotas. Absolvido, ganhará reforço no discurso de que suas ações estavam corretas, assim conquistando musculatura eleitoral.

            Em segundo plano, ainda que admitindo a difícil condenação, isso o tornaria um mártir para os bolsonaristas, um foco de resistência capaz de dificultar imensamente a pacificação. Ainda que condenado a décadas de prisão, tornaria-se um eleitor gigantesco, privilegiado, capaz de eleger qualquer poste bolsonarista, não sendo difícil imaginar, dada a sua trajetória, que o escolhido seria um dos cinco filhos ou uma das três esposas. Não conseguindo, indicaria algum dos seus diversos asseclas, sendo o mais significativo o próprio Paulo Guedes.

            Um terceiro argumento reside na circunstância de que, não sendo condenado e com isso não sendo obrigado a indicar um poste, ele próprio se fortalece como candidato em futura eleição, mantendo essa espada de Dâmocles sobre as cabeças dos brasileiros. Vale lembrar que seu homólogo alemão da década de 1930 saiu da prisão ainda mais fortalecido, com isso logrando assaltar o poder de forma avassaladora.

            Um quarto ponto positivo é que, fugindo, Bolsonaro seria julgado à revelia, ficando mais difícil, mesmo para um juiz bolsonarista, deixar de condená-lo. Condenado e procurado pela Interpol, a sua acomodação em países democráticos que respeitam as instituições e, portanto, as decisões do Poder Judiciário seria grandemente dificultada. Mesmo países com governos assemelhados ao bolsonarismo, como Polônia e Hungria, não seriam um refúgio seguro, pois são democráticos, não existindo garantia de que um novo governo compactuaria com promessa de não extradição. Assim, o destino mais certo para uma fuga de Bolsonaro seriam países não democráticos e autoritários, com muitos dos quais, aliás, ele mantém relação de cordialidade e mesmo admiração, como é o caso da Arábia Saudita.

            Um quinto ponto, que considero um dos mais relevantes, é o agudo simbolismo que uma fuga assim representaria para o ideário político nacional. Em breve tempo histórico, teríamos um exemplo positivo, de pessoa pública importante, representante da esquerda do espectro político, demonstrando absoluto respeito às instituições democráticas e se submetendo ao judiciário, com apresentação voluntária para a prisão, suportando estoicamente quase dois anos injustamente encarcerado enquanto utiliza as ferramentas da ordem constitucional para demonstrar sua inocência, e outro negativo, de figura pública prepotente, arrogante, da direita política, que, à semelhança de Raskolnikov, protagonista de Crime e Castigo, se vê como pessoa especial e por isso mesmo infalível e inimputável, não submetido às leis gerais que regulam o comportamento dos seres humanos comuns.

            Bolsonaro fugir do país, evadindo-se dos processos e das condenações, é seguramente o melhor que nos poderia acontecer. Seja porque quanto mais longe ele ficar do país melhor, como em função do forte simbolismo que isso traria: os justos e dignos acreditam nas instituições e manejam as ferramentas do Direito para a própria defesa; os inescrupulosos, não. Como cães que não querem demonstrar o medo que sentem, a covardia que os atormentam, latem agitada e raivosamente, se contorcem em todas as direções, mijam no poste como demonstração de macheza, mas, no final das contas, mostram o que são verdadeiramente ao fugir com o rabo entre as pernas. Já temos exemplos menores desse tipo, como um certo blogueiro que, procurado pela Interpol, está nos EUA, ao que parece com visto expirado, mas participa até de motociatas ao lado de ministros brasileiros e somente não foi extraditado porque, afinal, o governo ainda é bolsonarista e não tem respeito algum pela institucionalidade.

            O melhor meio de proporcionar a fuga do inominável é com Lula vencendo em 1º turno, dando tempo para que sejam feitas as conversações com os amigos ditadores para suplicar a concessão de refúgio político. Feito isso, basta agendar uma visita presidencial ao país do amigo e, em novembro ou dezembro, antes de ser obrigado a transmitir a faixa presidencial, fugir do Brasil de forma oficial, munido do passaporte diplomático, e, se tivermos sorte, retirando-se da vida pública para sempre, nunca mais pisando em solo brasileiro.

            Bolsonaro fugindo do Brasil e sendo condenado à revelia é um sonho, sei disso. Podemos, no entanto, ajudar a concretizá-lo no ato de defenestrar o atual presidente do poder já no primeiro turno.

            Vale a pena pensar sobre isso.

1 – Extraído de matéria publicada no site do Jornal da Paraíba, disponivel em: https://jornaldaparaiba.com.br/politica/2017/02/08/bolsonaro-defende-porte-de-arma-para-todos-e-fuzil-contra-o-mst. Acesso: 21/08/2022.

2 – Extraído de matéria publicada no site do Instituto Humanitas Unisinos, disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/categorias/185-noticias-2016/559252-quando-os-nazistas-disseram-deus-esta-conosco. Acesso: 21/08/2022.

3 – Vídeo extraído do Youtube, disponível em: https://www.youtube.com/watch?time_continue=8&v=WWOWsUiddhg&feature=emb_logo. Acesso: 21/08/2022.

4 – Extraído de matéria publicada no site da revista Forum, disponível em: https://revistaforum.com.br/politica/2022/6/24/marcos-coimbra-o-fato-que-bolsonaro-ja-morreu-como-candidato-119225.html. Acesso: 21/08/2022.

Marcio Valley é formado em Direito pela UFF, com pós-graduação em Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

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