Sobre passividade política e falta de lideranças, por Roberto Bitencourt da Silva

É típico de uma compreensão do mundo destituída de capacidade crítica o desprezo elitista pela massa, conferir a ela uma impotência em participar dos processos decisórios.

Sobre passividade política e falta de lideranças

Por Roberto Bitencourt da Silva

É moeda corrente atribuir a responsabilidade maior pelas mazelas do País ao Povo Brasileiro. Triste e habitual prática política.

De longa data, as categorias de interpretação elitistas, reacionárias, entreguistas, são nutridas por um verdadeiro desprezo pelas camadas trabalhadoras populares e, cada vez mais, também reservadas à depreciação dos setores sociais intermediários.

Hoje, sob a capa do liberalismo econômico e da subserviência aos interesses imperialistas estadunidenses e do capital internacional, tais categorias conferem ao Povo a culpa pela crise econômica, em função de supostos “privilégios” de teor “paternalista” (tratam-se dos direitos trabalhistas, previdenciários e sociais outros) pretensamente “danosos” à economia.

Desde a chamada “era Vargas”, convenhamos, com alguns matizes e algumas ressignificações, em essência esse esquema de percepção lesa pátria, liberal, burguês, pouco foi alterado.

O que tem, efetivamente, manifestado-se como fenômeno mais recente na história política brasileira é a surpreendente adoção parcial de traços desse esquema conservador de interpretação sobre o mundo e o Povo Brasileiro pelos próprios setores progressistas que se auto-atribuem sintonias com ideais de esquerda.

Singulares expressões que circulam folgadamente nas redes sociais, como “pobre de direita”, visam justificar o atual estado de coisas no Brasil, por meio da indicação do “débil, ignorante” culpado, destituído de “luzes” e “saber”. Mas, quem está portando as “luzes”?

Recorrente também é a crítica a uma alegada “passividade” (inata?) do Povo Brasileiro, que vê todo processo destrutivo em sua Pátria e “nada faz”. Toda e qualquer iniciativa popular organizada, ocorrida no exterior, de manifestação contra iniciativas lesivas aos interesses nacionais e da maioria, adotadas por governos conservadores, tem se prestado como parâmetro comparativo. Sempre desfavorável ao Povo Brasileiro.

Nesta semana, Carta Capital – importante revista, cujo noticiário anos a fio tem colaborado para a veiculação de abordagens e informações razoavelmente destoantes dos veículos massivos de comunicação –, por meio do seu diretor de redação, Mino Carta, publicou artigo bastante ilustrativo.

Sobretudo, por revelar, de maneira representativa, as limitações e a miséria da perspectiva política das esquerdas institucionais brasileiras (jornalismo, partidos e sindicatos), particularmente do petismo, ao qual a revista oferece apoio público. O título, autoexplicativo: “Lição equatoriana: o Brasil carece de um povo corajoso e consciente.

Em outra oportunidade fiz algumas ponderações sobre esse tipo de perspectiva intelectual que conforma uma prática política disseminada nos últimos anos em nosso País. Portanto, não me estenderei. Mas, é difícil, realmente, observar o status de naturalidade com que se tem convertido a vítima em algoz.

É típico de uma compreensão do mundo destituída de capacidade crítica o desprezo elitista pela massa, conferir a ela uma impotência em participar dos processos decisórios. Como bem chamava atenção, nos idos dos anos 1960, o filósofo nacionalista e anti-imperialista Álvaro Vieira Pinto, o desprezo na capacidade política de iniciativa popular, de incidir nos rumos da sociedade e do poder, costuma ser acompanhado do “culto ao herói salvador”.

Os lulismos, cirismos e bolsonarismos, e outros setores e partidos políticos avizinhados desses fenômenos personalistas, tão estridentes nas redes sociais, cada um a seu modo, são arquétipos de uma visão elitista, que, em grande medida, despolitiza a nossa gente, restringindo a participação ao sistema eleitoral, conformando o arco esquerda/direita do sistema político ainda em vigor.

Diga-se, sistema que se sustenta e se ocupa da reprodução do status subalterno da economia brasileira na divisão internacional do trabalho, da preservação e intensificação da dependência tecnológica. Desse modo, na contramão do que o artigo de Carta Capital tão bem ilustra nas esquerdas consolidadas e institucionalizadas, cumpre observar que o que carece no Brasil são partidos, líderes e organismos populares e sindicais, sem o controle do petismo e de satélites ou avizinhados, que só pensam em boquinhas e comodidades.

O Brasil, de fato, carece de líderes e partidos que liderem, mobilizem, politizem, organizem a nossa gente trabalhadora – que integra o mundo dos (parcos) direitos trabalhistas ou do subemprego crônico e do desemprego –, nossa juventude estudantil, amplas frações da pequena burguesia. Disso carecemos.

Não existe a menor possibilidade de construção de uma identidade e de experiências de lutas sem a mediação de organismos coletivos e lideranças, que politizem, esclareçam e debatam publicamente os grandes desafios nacionais. Fundamentalmente: para além do calendário eleitoral. Para além de compromissos e contingências eleitorais.

Precisamos de lideranças e organizações dotadas de espírito republicano, ou seja, norteadas pelo primado do interesse público, sem compromissos com posições e expectativas eleitoreiras, egóicas, pragmáticas, submetidas a situações de turno. Atores individuais e coletivos que, inclusive, ofereçam um diagnóstico honesto e desinteressado do Brasil dos últimos 30 anos (dilemas e vicissitudes).

Que digam claramente: nos últimos 30 anos, todos os governos (todos!) promoveram a desnacionalização da economia brasileira. Com isso, retiraram recursos autóctones de decisão do País. Ampliaram o endividamento púbico. Em maior ou menor medida, todos operaram com o nefasto entreguismo.

Como afirmava o prestigiado físico José Leite Lopes, com agudo senso de oportunidade e veia patriótica, sem indústria e demais meios de produção nacionais não há possibilidade de se criar ambiente favorável à geração de bons empregos, de incentivo à educação básica e superior, à criação interna de saber, ciência e tecnologia.

Tudo que é sofisticado e composto por maior valor agregado é importado e fabricado nos laboratórios das multinacionais estrangeiras. Fenômeno que se desenvolveu há décadas. Sem interrupção. Agora incrementado. Economia colonial. Somos meros consumidores. Os ônus só crescem.  Perdemos, mais e mais, a capacidade de produzirmos e moldarmos nosso próprio meio, atendendo a objetivos por nós fixados; desapossados de intervenção efetiva nos destinos do País. Um diagnóstico de que carece o Brasil. E muito.

Nesse sentido, devido a momentânea falta de agentes destinados e interessados na superação do lamentável cenário nacional, o que se vê predominar é a atuação de representantes políticos como meros cronistas das agruras da Nação e das ações destrutivas dos setores políticos lesa pátria no governo federal e fora.

Imprensa, militância e autoridades políticas que convertem a vítima em algoz, deliberadamente ou não, têm dado cobertura moral à miséria intelectual e à pobreza propositiva das esquerdas institucionais, à absoluta incapacidade política transformadora que demonstram.

Conceber o Povo Brasileiro como anátema, desvalorizá-lo, retirar atributos e possíveis capacidades de ação, de intervenção sobre a realidade, implica em embotar a iniciativa política, diminuir a sua auto-estima e a autoconsciência de si e do seu meio nacional e internacional. Uma prática sobremodo conservadora, adotada pelas direitas e esquerdas do sistema político em franca erosão de legitimidade.

Roberto Bitencourt da Silva – cientista político e historiador.

Redação

1 Comentário
  1. “… nos últimos 30 anos, todos os governos (todos!) promoveram a desnacionalização da economia brasileira.”
    Não posso concordar. A afirmação me parece exagerada. Podemos admitir que houve muitas concessões aos setores entreguistas dentro do jogo político. Mas, por exemplo, política de conteúdo nacional para o setor de petróleo, a priorização das relações com o bloco BRICS (em especial, a criação do banco de fomento desse bloco econômico), dentre outras iniciativas, não podem ser ignoradas. Houve, sim, uma tentativa de fugir à condição de quintal do Tio Sam, mesmo enfrentando ferrenha oposição do Cartel da Mídia.
    Penso que foi justamente por contrariar os interesses essenciais do imperialismo americano que sobreveio o golpe. Porque, se o Brasil aprofundasse as medidas de adesão à frente aberta por Rússia e China, para pôr fim à hegemonia do petrodólar, o império americano estaria na lona.
    Dentro das limitações impostas por uma coalizão extremamente precária, os governos de Lula e Dilma conseguiram acertos importantes, embora também tenham cometido erros capitais, como ignorar o monstruoso poder desse Cartel que controla a comunicação social, a produção cultural, a informação e o pensamento da população brasileira.

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