The zoeira never ends, por Luis Felipe Miguel

Sucesso de Marçal mostra que, para muitos, política não é algo a ser levado a sério. Ver como espetáculo de mau gosto não é tão insano assim

Reprodução Youtube

The zoeira never ends, por Luis Felipe Miguel

Há um elemento importante a ser considerado no sucesso de uma criatura como Pablo Marçal nas eleições de São Paulo.

É verdade: ele não chegou no segundo turno. Mas foi por pouco, muito pouco. Foram 1.719.274 paulistanos julgando que era um bom nome para a prefeitura. Se mais uns 60 mil tivessem tido a mesma opinião, agora nós teríamos Marçal no lugar de Boulos como adversário de Ricardo Nunes na etapa final da eleição.

É muita coisa, sobretudo quando pensamos o que Marçal apresentou ao público durante a campanha.

Ele debochou de tudo e de todos, tumultuou os debates, lançou xingamentos baixos e acusações reconhecidamente falsas, apresentou propostas ridículas, demonstrou um desconhecimento absoluto sobre as questões que precisaria enfrentar se eleito.

Uma interpretação é de que a falsificação do documento contra Boulos foi demais e fez que perdesse o punhado de eleitores que lhe abriria as portas do segundo turno. Não sei; isso é apenas uma especulação. Ainda assim, foi por muito pouco.

Uma parte dos eleitores de Marçal pode ter sido convencida por seu “programa “. A Folha de S. Paulo, logo antes da votação, fez uma reportagem em que alguns entusiastas do estelionatário explicavam por que pretendiam votar nele.

É uma tristeza. Um sujeito, ferrado de tudo, segundo a descrição que o jornal faz dele, diz que se empolgava porque Marçal era “um cara explosivo na área de investimento” – opinião de alguém que certamente nunca teve um centavo para investir em nada e simplesmente estava embasbacado com a exibição de riqueza do candidato.

Outro se encantou com a ideia estapafúrdia de construir um prédio de 1 km de altura na capital paulista. Segundo ele, “precisamos ter um marco, alguma coisa que realmente nos represente. Somos um povo tão guerreiro”.

Diante de tamanha incapacidade cognitiva em pessoas adultas, é realmente necessária muita consciência para não simpatizar com a ideia elitista de que é melhor abolir o direito de voto…

Mas eu acredito que, no coração do voto em Marçal e em assemelhados, está um profundo descrédito na atividade política – que não tem nada de ilógico, muito pelo contrário.

Sim, ele só fala merda, ele atrapalha tudo, ele age como uma criança malcriada. Mas esses comportamentos parecem adequados a uma esfera que não mantém mais nenhum tipo de respeitabilidade e que as pessoas veem como inerentemente falsa e desprovida de consequências para as suas vidas.

Se não vai ter consequência na minha vida, então eu pelo menos vou premiar quem me proporciona uns momentos de comédia pastelão.

A redução da política a estratégias de marketing, em que os candidatos se limitam a projetar imagens e fogem do debate de propostas como o diabo foge da cruz, justifica essa visão.

A redução da capacidade impositiva do poder público, emparedado pelas grandes corporações no quadro da “desdemocratização”, justifica essa visão.

A deseducação política do cidadão comum, chamado a opinar apenas nas eleições e afastado durante todo o resto do tempo, justifica essa visão.

A democracia tal como a conhecemos – o regime de competição eleitoral – foi uma conquista dos grupos dominados, que ganharam espaço para que suas vozes se pudessem ouvir. A fim de evitar que seu potencial emancipatório se realizasse demais, havia necessidade da apatia e da passividade das massas.

Nos modelos de “cultura cívica” dos anos 1950 e 1960, os eleitores permaneceriam passivos manifestando uma confiança ingênua no sistema. Hoje, essa confiança foi substituída pelo cinismo.

A esquerda que se adapta a essa ordem e que também vê seu projeto político como sendo obter o máximo de votos deste eleitorado passivo tem parte da culpa por esse estado de coisas.

Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de O colapso da democracia no Brasil (Expressão Popular).

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1 Comentário

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  1. Aberrações políticas como a que estamos assistindo aqui no Brasil e mundo afora, podem ser explicadas pela biologia. Explico: Os organismos vivos mais complexos, carregam em sí, diversos microorganismos patogênicos que não conseguem proliferar desordenadamente a ponto de colapsar seu portador, em virtude do seu sistema immunológico propiciar uma eficiente defesa. Quando o sistema imunológico é fraco, propicia que os microorganismos patogênicos, então contidos, começam a se proliferarem ruinosamente caso não sejam tomadas as medidas para combater o mal. Agora, façam uma análise da nossa sociedade e comparem com o descrito acima. Infelizmente o Brasil e grande parte do mundo, está passando por esta crise, mas que vai passar.Isto é, se não desembocarmos num conflito nuclear.

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