Da lama ao lucro: como a tragédia de Mariana financia a privatização, por Bruno Resck

Recursos indenizatórios, como os decorrentes de crimes ambientais, têm uma função pública essencial: devem ser canalizados para o bem comum

Acervo Agência Brasil

Da lama ao lucro: como a tragédia de Mariana financia a privatização, por Bruno Resck

Imagine ser proprietário de uma casa que, embora habitável, requer reformas urgentes. Diante da limitação financeira, a solução encontrada é colocá-la à venda. Surge um comprador. No entanto, antes que a negociação seja concluída, o proprietário recebe uma quantia expressiva, fruto de uma indenização por danos pretéritos. Com esse recurso — somado a um valor emprestado por um familiar — ele decide reformar a casa. Ao término da obra, a venda é finalizada. Mas há um desfecho peculiar: o antigo dono permanece morando na mesma casa, agora como inquilino, pagando aluguel ao novo proprietário.

A cena, de contornos quase kafkianos, não é mera ficção. Ela encontra paralelo concreto e recorrente na dinâmica das concessões e privatizações no Brasil. Particularmente, o estado de Minas Gerais oferece um exemplo eloquente.

No dia 28 de março, o governo mineiro lançou um edital para concessão rodoviária envolvendo as rodovias BR-356, MG-262 e MG-329 (lote intitulado Via Liberdade). Rodovias que atingem diretamente os municípios de Nova Lima, Rio Acima, Itabirito, Ouro Preto, Mariana, Acaiaca, Barra Longa, Ponte Nova, Urucânia, Piedade de Ponte Nova e Rio Casca. O projeto de concessão prevê investimentos na ordem de R$ 6 bilhões, sendo R$ 2 bilhões oriundos do acordo de indenização repactuado pela mineradora Vale S.A. em decorrência do rompimento da barragem do Fundão, em Mariana, em 2015 – um dos mais devastadores crimes socioambientais da história brasileira.

Existe uma contradição evidente: recursos oriundos de uma tragédia que destruiu comunidades inteiras, contaminou bacias hidrográficas e comprometeu modos de vida tradicionais estão sendo redirecionados para valorizar um ativo público (as rodovias), que em seguida será transferido para gestão e exploração privada. O investimento, que deveria ter função reparadora, torna-se alavanca para a mercantilização de um bem público.

O caso das rodovias em Minas Gerais não é isolado. Ele é expressão de um modelo que tem se disseminado por todo o país nas últimas décadas, ancorado em Parcerias Público-Privadas (PPPs), concessões de ativos públicos e uma crescente financeirização da política de infraestrutura e serviços públicos. É a lógica da transformação de direitos em mercadoria. Tudo isso, muitas vezes, com o verniz de “eficiência” e “modernização”, mas sem o devido debate sobre os impactos sociais, econômicos e territoriais que acarreta.

Neste contexto, um elemento que tem aprofundado essa lógica é o papel do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). A instituição, historicamente responsável por fomentar o desenvolvimento nacional e regional, tem sido protagonista nos estudos e modelagens das concessões públicas — inclusive neste caso. O banco atua na estruturação técnica, jurídica e econômica dos projetos, conferindo segurança ao investidor e atratividade ao negócio.

Contudo, ao invés de induzir o desenvolvimento com base nas desigualdades regionais e nas necessidades sociais, o BNDES atua como elo entre o poder público e o capital privado, reforçando um modelo de Estado que transfere ativos para o setor empresarial, muitas vezes com subsídios implícitos, isenções e aportes públicos antecipados. O governo federal tem destinado bilhões de reais através do novo PAC para obras em rodovias exploradas pela iniciativa privada.

Recursos indenizatórios, como os decorrentes de crimes ambientais, têm uma função pública essencial: devem ser canalizados para o bem comum, com foco prioritário nos territórios afetados e nas populações atingidas. São, por natureza, um tipo de reparação coletiva, que visa restaurar — tanto quanto possível — as condições de vida, a infraestrutura e os ecossistemas degradados. Quando tais valores são desviados para viabilizar projetos que priorizam a lógica do lucro e não a justiça social, temos uma inversão perversa dos princípios da reparação. Os R$ 2 bilhões da indenização de Mariana, longe de representarem um gesto reparatório, funcionará como subsídio camuflado, mitigando riscos financeiros das concessionárias.

Afinal, o que está sendo reparado? Quem está sendo beneficiado? E quem continuará pagando a conta?

A escolha do nome Via Liberdade, referência à Inconfidência Mineira, carrega um simbolismo irônico. A liberdade, aqui, ressignifica-se como privilégio. Quando a liberdade anunciada nos discursos oficiais será traduzida em políticas que priorizem o comum sobre o lucro? Enquanto isso, a população mineira, tal qual o inquilino da analogia, paga para permanecer em sua própria casa.

Bruno Resck – Geógrafo – professor no IFMG campus avançado Ponte Nova

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  1. O que esperar do Romeu? É daí para baixo, mas o eleitor brasileiro escolhe seus representantes baseados no que seus intestinos raciocinaram.

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