Evangélicos, eleições e trabalho de base, por Delana Corazza

O debate sobre o voto evangélico tem sido tema de pesquisa nas universidades, nos partidos políticos e no campo popular. Este ano ganha força e preocupação.

Evangélicos, eleições e trabalho de base

Por Delana Corazza*
Artigo especialmente cedido pelo Instituto Tricontinental de Pesquisa Social

Nas eleições de 2018 visitei algumas favelas, ocupações e comunidades nas periferias de São Paulo para realizar o que chamamos na época de “vira-voto”, que era nada mais do que bater na porta da casa das pessoas, perguntar em quem elas iriam votar e indicar, a partir do diálogo, voto no então candidato a presidente, Fernando Haddad, do Partido dos Trabalhadores (PT). Em uma dessas atividades, fui munida de versículos bíblicos para evidenciar as contradições entre as falas de Jair Bolsonaro e os escritos sagrados. Passei cerca de uma hora conversando com um evangélico da Assembleia de Deus. Peguei meus versículos impressos em páginas soltas, ele pegou sua Bíblia, conversamos amigavelmente, ele me ensinou um pouco sobre como ler a Bíblia, concordou sobre os absurdos profanados por Bolsonaro e por fim, sentenciou: “você é uma abençoada, muito obrigada pela conversa de hoje, mas, enquanto evangélico, não posso votar na esquerda”.

Entendi ali que ainda que nos entendêssemos e concordássemos em tudo naquela uma hora de conversa, eu não poderia competir com sua igreja, que estava convencida de que a melhor opção era confiar seus votos e suas esperanças no, infelizmente, atual presidente da República.

O debate sobre o voto evangélico tem sido tema de pesquisa nas universidades, nos partidos políticos e no campo popular. Este ano ganha força e preocupação. A última pesquisa, divulgada em março pelo Datafolha sobre as eleições, aponta que no segundo turno Lula tem 55% das intenções de voto contra 34% para o atual presidente. No entanto, houve empate técnico entre os dois candidatos no voto evangélico, 46% para Bolsonaro e 43% para Lula.

O voto evangélico não é um cálculo simples, dado que não existe “o evangélico”. As pessoas que dividem essa fé são, muitas vezes, vítimas de generalizações e a realidade é que “os evangélicos” são um grupo diverso, heterogêneo, com múltiplos tons e nuances e estão em constante diálogo interno com suas várias identidades para além de sua fé. São negros e evangélicos, são mulheres e evangélicas, são militantes de movimentos sociais e evangélicos, enfim, não são uma coisa só e nem fazem uma única leitura de mundo a partir somente de sua fé. Mas a fé e Deus são fundamentais em sua vida e ignorar isso foi um grande erro de parte da esquerda.

Então, vamos lá. O mais importante desse diálogo é compreender que ninguém está cego frente a sua igreja, ninguém aposta cegamente em seu líder; não podemos subestimar o povo crente que encontrou nas igrejas respostas objetivas e subjetivas para suas dores mais profundas. Há um longo caminho para que ideias sejam construídas, afirmadas e reafirmadas enquanto verdade, ao mesmo tempo que outras sejam negadas, repudiadas. As igrejas evangélicas construíram uma metodologia de trabalho de base extremamente eficaz e puderam assim construir verdades que se consolidam profundamente no íntimo de nosso povo. Afirmo isso sem nenhum juízo de valor; o que precisamos debater é que metodologia é essa e qual linguagem, enquanto progressistas, nos escapou.

As igrejas evangélicas que se multiplicam nas periferias são espaços de acolhimento e pertencimento para nossa classe. Quando entramos pela primeira vez na igreja, sentimos o olhar do pastor, sua atenção durante o culto e, não raro, ao final da celebração, ele vem conversar, pergunta nosso nome, pede nosso contato, nos faz imediatamente sentirmos parte daquela comunhão. O pastor quer, de verdade, a nossa salvação e estar na igreja é um passo importante para que isso aconteça.

A igreja é também espaço cotidiano na vida do trabalhador, além dos cultos serem ofertados diariamente, os fiéis participam de diversos grupos, como de jovens, mulheres, casais, desempregados, entre outros. É também aporte econômico que vai além da caridade cristã: são muitos relatos de homens adictos que pararam de beber depois que encontraram um trabalho indicado por um irmão da igreja. Em algumas igrejas existem as células, pequenos grupos de fiéis que se encontram nas próprias casas para lerem a Bíblia e dividirem questões pessoais. A célula forma líderes que formarão novas células, multiplicando esse espaço de diálogo e formação entre os crentes.

Os evangélicos não são passivos em suas comunidades de fé, têm tarefas e funções que reorganizam suas vidas diariamente, o que faz com que se sintam parte da construção e manutenção de suas igrejas. Os cultos são momentos catárticos onde o corpo crente pode vivenciar sentimentos cantando, se emocionando. As músicas são tocadas, muitas vezes, com banda ao vivo, quase sempre por jovens que se formaram musicalmente dentro das próprias igrejas. É um espaço de resgate da dignidade do trabalhador: mulheres que após um dia inteiro de trabalho precário, horas em transportes públicos lotados, podem, em sua igreja, mostrar sua bela voz, emocionar seus irmãos de fé, serem respeitadas e admiradas.

Há um espaço de socialização nos cultos das “bênçãos e vitórias”, o momento em que o fiel pode provar, a partir de sua própria história, as mudanças reais em sua vida, incentivando outros fiéis a se manterem na fé e se dedicarem às suas igrejas para também conquistarem uma vida melhor e mais digna. O pastor das igrejinhas periféricas tem a mesma realidade que seus fiéis, são trabalhadores, passaram (e passam) por dificuldades, testemunham uma vida passada marcada por dores e pecados e são a prova viva para a sua comunidade de que a fé transforma.

Essa metodologia nos ajuda a entender por que as igrejas crescem tanto, principalmente nas periferias. Atualmente, segundo pesquisa Datafolha, os evangélicos compõem 31% de nossa população. A projeção, segundo o IBGE, é que até 2030 sejam metade dos brasileiros. Mas aqui, ouso dizer: a classe trabalhadora é evangélica, já que ao observarmos nossas periferias, o percentual atual se amplia nos espaços de moradia de nossa classe. E se alguém que mora nos bairros periféricos não é evangélico, está imerso em uma narrativa crente, em uma estética crente, em um jeito crente que tem reconfigurado e reconstruído os espaços de nossa classe. As paredes das casas, do mercadinho, até do bar, estão riscadas de salmos, a palavra irmão é uma identidade em diversos territórios, mais do que trabalhador.

Deus, a Bíblia e a fé são elementos fundamentais para o povo crente e boa parte da esquerda não soube dialogar com essas dimensões que atravessam profundamente a vida do trabalhador. Ainda que nossas ideias sejam justas, pertinentes e dialoguem concretamente com a realidade do nosso povo, ao nos afastarmos da disputa no campo religioso, deixamos aberto “vazios” preenchidos por diversas narrativas, dentre elas que a esquerda é inimiga da fé e vai destruir a família cristã. “Eu não posso votar na esquerda” é uma frase emblemática que não podemos ignorar. Não é possível disputar corações e mentes de nossa classe para o nosso projeto sem enfrentar o projeto antagônico ao nosso, sem enfrentar o fundamentalismo religioso que chega também naquela pequena igrejinha das periferias de nossa cidade.

Nesse contexto, alguns pontos podem nos dar pistas para um diálogo respeitoso nesse momento da conjuntura. Primeiro, que os evangélicos têm classe, raça e endereço. Segundo Datafolha, são mulheres, negras e periféricas. Sua realidade cotidiana está muitas vezes em contradição com os discursos fundamentalistas, mas os valores cristãos protestantes são base para dar conta dessa vida cotidiana, dentre eles de que, enquanto evangélicos, estão dispostos a passar por privações materiais para serem salvos e salvarem seus irmãos, ou seja, o discurso da piora econômica, ainda que dialogue diretamente com os trabalhadores, não é determinante para os trabalhadores evangélicos. Já o medo de que a esquerda vai destruir sua família, algo conquistado com tanto esforço junto à igreja, pode ser definitivo, por isso que a direita apostou tanto nesse discurso e precisamos aqui admitir que não soubemos avançar.

A defesa pela diversidade, algo tão importante e necessário para o nosso campo, foi traduzido pela direita cristã fundamentalista como a negação do respeito à chamada “família tradicional”. De fato, sabemos que na realidade, principalmente nas periferias, essa família tradicional, composta por pai, mãe e filhos heterossexuais, cisgêneros, é minoria. No entanto, temos que deixar claro em nossas práticas e discursos, que respeitar a diversidade não quer dizer rejeitar modelos “tradicionais”. Podemos pensar, por exemplo, que Bolsonaro não é exatamente o modelo de família tradicional, dado que o divórcio não é bem visto pelos evangélicos e o atual presidente já está em seu terceiro casamento. Mas o fato dele defender esse tipo de família é algo que conforta o cristão que é conservador nos costumes (ainda que possa ser progressista em pautas sociais). A figura de Michelle auxilia nesse sentido: é evangélica e compõe esse imaginário de família tradicional cristã. Vale lembrar que quando Michelle falou em línguas, manifestação espiritual comum e muito respeitada pelos evangélicos, a esquerda errou feio ao ridicularizá-la. Desconhecer a fé de nossa classe e suas manifestações pode ser fatal em um momento em que estamos, ainda, quebrando um muro muito bem construído pela direita.

A ideia não é, obviamente, se travestir de defensor da heteronormatividade e rejeitarmos o debate sobre gênero e sexualidade, mas abarcar a família cristã e seus valores como parte daquilo que defendemos e respeitamos. Muitos evangélicos, ainda que enxerguem como pecado famílias homossexuais, são contra a forma violenta e desrespeitosa de Bolsonaro contra a população LGBTQIA+. Como dialogar nesse sentido? Os evangélicos podem ser contra as relações homossexuais, mas também são contra a homofobia. Essa forma violenta e agressiva de Bolsonaro é um ponto que temos que ressaltar. O desrespeito à vida, evidenciado na pandemia, foi decisivo para alguns evangélicos que votaram em Bolsonaro na última eleição e agora estão, ou em disputa, ou convencidos do voto em Lula. O desprezo à dor de tantas famílias é o oposto do que defende um verdadeiro cristão.

Esses apontamentos não são suficientes, no entanto, para “competirmos” com o pastor e com os irmãos de fé. Os evangélicos são o grupo que mais se informam por amigos e familiares, o que nos mostra o quanto “estar lado a lado” nessa caminhada é fundamental. Insisto: o trabalho cotidiano realizado pelas igrejas será determinante nesse processo. É necessário ressaltar que os evangélicos progressistas são companheiros de classe e de luta, estão também nos territórios, muitas vezes solitários, e que têm que estar com a esquerda não religiosa nessa tarefa. Esse grupo também é diverso, os evangélicos que não se identificam com a direita fundamentalista e nem com o atual governo podem estar lado a lado, fazendo trabalho de base com o campo popular não religioso, ainda que defendam pautas morais mais conservadoras. O que nos une?

Nesse momento, e para além das eleições, não vamos avançar se não considerarmos que a classe trabalhadora é evangélica e que tem uma forma de leitura de mundo a partir também de sua fé. Assim como não vamos avançar sozinhos, sem os evangélicos progressistas que estão nos espaços de nossa classe. A fé é fundamental para nosso povo, resgatar nossa história e da América Latina também faz parte desse reencontro entre fé e luta. Estamos ainda em disputa, mas mais do que em disputa, estamos lado a lado enquanto classe. O que defendemos é: ou vamos juntos ou não vamos; e para isso temos que desaprender para aprender de novo, como nos ensinou o teólogo protestante Rubem Alves.

* Delana Corazza é pesquisadora do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, Cientista Social (PUC-SP) e mestre em Arquitetura e Urbanismo (USP).

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

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