O som da tortura, por Urariano Mota

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

Por Urariano Mota

Em mais de uma oportunidade já escrevi que podíamos escrever a história política do Brasil a partir do som da sua música popular. Assim foi, por exemplo, em páginas de Soledad no Recife, quando a ressurreição dos malditos anos da ditadura se fez sob a canção dos tropicalistas. Assim foi quando escrevi sobre Geraldo Vandré, sobre Chico Buarque, sobre Roberto Carlos.

Mas jamais poderia imaginar, e aqui mais uma vez a realidade supera o imaginado, que a música popular fosse usada do modo mais vil, como o noticiado na imprensa dos últimos dias:  “Deputado Rubens Paiva foi torturado ao som de ‘Apesar de Você’, diz testemunha

A informação consta de um depoimento escrito pela professora Cecília Viveiros de Castro, que esteve presa nas mesmas instalações que Rubens Paiva. Cecília, então com 48 anos, foi detida ao voltar de uma visita ao filho, Luiz Rodolfo, exilado no Chile.

Com ela estava Marilene Corona Franco, cunhada de seu filho. As duas traziam cartas de outros exilados para suas famílias.  No prédio da Aeronáutica, elas ouviram gritos de um preso que estava sendo interrogado. ‘Era a primeira vez que constatava a existência dos horrores da tortura, tão negados pelo governo’, diz.

Em depoimento anexado pelo Ministério Público à denúncia, Marilene Franco disse ter ouvido os gritos de Rubens Paiva, que era torturado em um salão ao lado de onde ela estava. Para abafar os gritos, um rádio foi ligado em alto volume. Tocava ‘Jesus Cristo’, de Roberto Carlos, e ‘Apesar de Você’, de Chico Buarque.”.

A notícia não informa, talvez em nome objetividade, que o deputado Rubens Paiva foi morto ao som de Roberto Carlos e Chico Buarque por diferentes razões, na escolha das músicas. Tentemos um esboço aqui. Chico Buarque, a partir da gradual saída de cena de Geraldo Vandré, veio a ser o valor maior de inconformismo e revolta musical contra a ditadura. Roberto Carlos, o Rei, veio na contramão, contrário à rebeldia política, em real estado de conformismo.

A militância contra a ditadura acompanhava a voz de Chico Buarque, cantava “Apesar de Você” nos bares, na rua, nos pontos de encontro, nas serestas, em documentos rodados em mimeógrafos:

“Hoje você é quem manda / Falou, tá falado / Não tem discussão. / A minha gente hoje anda / Falando de lado / E olhando pro chão, viu? / Você que inventou esse estado / E inventou de inventar / Toda a escuridão / Você que inventou o pecado / Esqueceu de inventar / O perdão. / Apesar de você / Amanhã há de ser / Outro dia…”

Enquanto a “maioria silenciosa”, nela incluídos os jovens mais alienados do mundo, os pequeno-burgueses que apenas queriam uma razão de se dar bem na vida, em lugar de uma razão de viver, acompanhavam Roberto Carlos na canção “Jesus Cristo! Jesus Cristo! / Jesus Cristo, eu estou aqui / Jesus Cristo! Jesus Cristo! / Jesus Cristo, eu estou aqui … / Quem poderá dizer o caminho certo / É você, meu Pai / Jesus Cristo! Jesus Cristo!….”

Deputado Rubens Paiva era torturado ao som de “Jesus Cristo”, de Roberto Carlos

[As razões dos torturadores que mataram um homem ao som desses dois compositores, com extrema perversidade, não cabem no samba curto de um artigo. As pessoas nascidas nos últimos anos não sabem que no tempo da ditadura a música era também uma realização política, era uma concreção, o mais próximo de uma arma possível. O seu lugar na vida e no imaginário da juventude rebelde era um ato inalienável de combate.

A militância contra a ditadura buscava a música de Chico Buarque à semelhança de um viciado que procura oxigênio, urgente. Isso, se aliviava, deixava em seu próprio alívio a ferida mais aberta. Até onde a memória alcança, lembro que nos momentos em que ouvíamos Chico a alegria não tinha morada. E dividam comigo por favor a dúvida, não sei se isso vinha da própria natureza da sua composição ou das circunstâncias, do tempo miserável da ditadura militar em que vivíamos. Pois a música de Chico era uma expressão da nossa asfixia.

Por ironia, a música de Roberto Carlos acabou por ser uma das mais representativas desses anos. O Rei não foi apenas o homem livre que somente fazia o que o regime mandava. Não. Roberto Carlos foi capaz de compor pérolas que realçavam o mundo ordenado pelo regime. Entre outras, o Rei compôs a canção que era um hino, um gospel de corações vazios, um som sem fúria de negros norte-americanos. O Rei orou “Jesus Cristo, eu estou aqui”.

É uma perversa vitória do real que esse crime expresse tão cruel o valor da música popular no Brasil. Com Roberto Carlos, Rubens Paiva e Chico Buarque numa associação que os três não queriam.

 

10 Comentários

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  1. Preciso

    Parabéns Urariano, sempre preciso na luta pelo não esquecimento do que foi a ditadura.

    Lembrar e repercurtir, é lutar contra os revisionismos extra acadêmicos, que tentam diminuir sua virulência e contribuição ao atraso do desenvolvimento político brasileiro. Lembrar e repercurtir, também e principalmente, promove a luta contra o esquecimento histórico, com a consequente ameaça de repetir os mesmos descaminhos já trilhados.

    O Sr. Bolsonaro e assemelhados estão ainda por aí, loucos para colocar o país (e nossos lares e famílias) na ordem unida dos quartéis, cuja lógica “democrática” se dá na “filosofia” do “eu mando e você obedece”… Se não…

    Um forte abraço.

  2. O som da tortura.

    A pior de todas disparado,tocava em radios a cada 30 minutos. Eu te amo ,meu Brasil,eu te amo,ninguem segura a juventude do Brasil” e a brasileirada arrancando dente de ouro,alianças de casamentos para doar “Ouro para o bem do Brasil.

  3. O som da tortura.

    A pior de todas disparado,tocava em radios a cada 30 minutos. Eu te amo ,meu Brasil,eu te amo,ninguem segura a juventude do Brasil” e a brasileirada arrancando dente de ouro,alianças de casamentos para doar “Ouro para o bem do Brasil.

    1. Imagina, caso algum querer

      Imagina, caso algum querer fazer manisteção contra copa,  qual  será a música que vou colocar bem alta e ficar circulando prócimo desses e longe das mãos deles?

  4. Realmente a música do Roberto

    Realmente a música do Roberto Carlos (assim como Programa Jovem Guarda) era o “Lexotan” da época e o Generais davam o maior ponto porque era uma música conformista. Para os Generais somente existia uma música melhor que era a da dupla Don e Ravel que enaltecia a ditadura. O Chico, Vandré (antes da lavagem cerebral) e o Caetano (antes da idiotice), Gilberto Gil, Tom Zé e outros do mesmo quilate, eram compositores que os censores (alguns oriundos dos jornais como Folha, Globo e Estadão) viviam de olho  e estavam sempre com a letra censuradas.

  5. Realmente a música do Roberto

    Realmente a música do Roberto Carlos (assim como Programa Jovem Guarda) era o “Lexotan” da época e o Generais davam o maior ponto porque era uma música conformista. Para os Generais somente existia uma música melhor que era a da dupla Don e Ravel que enaltecia a ditadura. O Chico, Vandré (antes da lavagem cerebral) e o Caetano (antes da idiotice), Gilberto Gil, Tom Zé e outros do mesmo quilate, eram compositores que os censores (alguns oriundos dos jornais como Folha, Globo e Estadão) viviam de olho  e estavam sempre com a letra censuradas.

  6. Na arquibancada pra qualquer momento ver emergir o mostro da lag

    Quando a gente raciocina de forma lógica, percebe que o Golpe de 64 foi vencedor. Tudo aquilo que eles desejavam pra nossa sociedade esta aí presente no nosso cotidiano: educação e saúde no chão, meios de comunicação oligopolizados, violência, sociedade politicamente desmobilizada, judiciário elitista, constante instabilidade política e econômica, etc.  

    Ainda que vivamos um período mais  democrático, são constantes os ataques aos avanços produzidos no Brasil nos últimos 12 anos. Como os golpistas ainda assumem posições-chave dentro de nossa sociedade, eles a todo dia tentam retomar o pouco espaço que lhes foi tomado desde que o PT chegou ao poder, criando,  aqui e ali, armadilhas midiáticas para confundirem a opinião pública e mergulhar o país no caos.

    Na relação das maiores fortunas brasileiras publicada pela FORBES no mês passado, chama-nos atenção que os mais ricos do Brasil são aqueles que mais contribuiram para afundar o país nos últimos 50 anos, beneficiando somente a si mesmos e a seus correligionários. Nessa listagem figuram as famílias Marinho, Igel, Setúbal e Civita, fortemente comprometidas com o que houve de pior nos chamados “anos de chumbo”. Quem não se lembra, por exemplo, do Sr. Boilesen do Grupo Ultra-Igel  – empresa que aparece na relação da FORBES – aquele gringo que pagava para ver sessões de tortura com um saquinho de pipocas nas mãos, ou mesmo dos Marinho e dos Civita, que engordaram suas panças omitindo roubos e torturas praticados pelo poder milico-empresarial brasileiro sediado em São Paulo? Chama-nos também atenção que muitas dessas empresas, principalmente as de comunicação e do mercado financeiro serem concessões do governo federal. Isso é um absurdo! Fomentam o golpe diuturnamente com o beneplácito do nosso  suado dinheiro.

    Quando Fernando Henrique chegou ao poder em 1995, prometeu acabar com os resquícios do varguismo no Brasil (direitos trabalhistas, Petrobràs, salário mínimo,etc). Embora ele não tenha conseguido de todo, o estrago causado pelas reformas que fez no governo causou um estrago indelével na qualidade de vida de cada um de nós. É bom que fiquemos atentos a tudo que ocorrer nesse ano conturbado de 2014, pois, do contrário seremos cotidianamente torturados em nossos lares não com as belas canções de Chico, mas com o barulho silencioso de nossa consciência dizendo:

    “Fiz merda, acreditei na mídia, votei errado e entreguei o país e meu destino nas mãos de um playboy irresponsável que me tirou o emprego e a esperança.

    1. Você acertar quando diz que

      Você acertar quando diz que tudo segue tal a didatura queria. Só é ilógico quando tenta tirar o petismo disto. E a razão simples: com essa a ditadura cumpriu o que prometera ao destruir todos os arquivos de como aplicava o imposto sindical e perseguia os sindicalistas que não aderiam ao lulismo, Tuminha é agora a porca preta em mídia como aqui porque deu boas dicas disto. Lembro que o lema da ditadura era crescer para dividir o bolo e a garantia de que seria divido tal qual eles queriam é a realidade e por isso o petismo numa apoiou o projeto Suplicy dew renda mínima garantida e nem o do Aécio de que seja um programa de Estado, via orçamento para que fique sem refém dos gostos petista.

  7. Alguém que tortura ao som de

    Alguém que tortura ao som de Jesus Cristo é milhões de vezes mais degerado social do que se for Apesar de Você, pois Chico apoia a ditadura cubana e por lá suas músicas justicam até matar para o bem do povo, enquanto Roberto não serve para isso em lugar nenhum.

  8. Há uma dimensão não percebida

    Há uma dimensão não percebida ou silenciada na crônica de Urariano, que com toda sua qualidade dança pela obviedade de santificar Chico Buarque e demonizar Roberto Carlos, sem notar que as canções não se limitam por condicionamentos ideológicos. Nessa hipotética cena terrível de tortura aí, não é difícil perceber um outro sentido para “Jesus Cristo, Jesus Cristo, eu estou aqui”… até pela situação de martírio até à morte vivida pelo torturado. Além da ironia terrível de quem “tem no peito amor e procura a paz”, em relação à tarefa dos torturadores e ao estado de coisas no Brasil da época. Sei não, mas na situação descrita a coisa estava mais pra gospel do que pra sambão.

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