
“O que se vê não se via, o que se crê não se cria”: teorias da conspiração em tempos de novas tecnologias digitais
por Edílson Márcio Almeida da Silva e Laura Graziela Gomes
Em um famoso cartoon, Pink e Cérebro são dois ratos que, sob o comando do segundo, tramam seguidamente conspirações, cujo objetivo é obter o controle do mundo. Infelizmente para eles e felizmente para o mundo, as conspirações nunca dão certo. Pink acaba fazendo tantas trapalhadas e comete tantos erros que deixam Cérebro – o gênio e autor dos planos mirabolantes – sempre na mão.
A questão interessante do cartoon não é apenas o fato de que os planos não dão certo, mas que os ratos nunca são presos ou sequer percebidos como suspeitos. Em vez disso, continuam livres e prontos para orquestrar o próximo plano. A história da República no Brasil é permeada por tramas desse tipo, de modo que olhar o atual momento político segundo a ótica de Pink e Cérebro constitui uma verdadeira tentação.
Para os propósitos deste artigo, gostaríamos de voltar nossa atenção para os assim chamados “atos de 8 de janeiro de 2023”, quando um grupo de cerca de 4 mil manifestantes – muitos dos quais oriundos de acampamentos montados em frente ao Quartel-General do Exército em Brasília – se deslocou para a Esplanada dos Ministérios e, lá chegando, invadiu e depredou as sedes dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Os atos foram efetuados por apoiadores assumidos do ex-presidente Jair Bolsonaro, muitos dos quais ostentavam as cores verde-amarelo e símbolos nacionais, se auto-intitulavam patriotas e, como tais, clamavam por uma intervenção militar para derrubar o recém-empossado Lula.
As ações se deram cerca de dois anos após a ocorrência de um evento similar em Washington-DC, quando apoiadores do então presidente Donald Trump invadiram o Capitólio, o centro legislativo dos Estados Unidos, protestando contra o resultado das eleições que haviam levado o democrata Joe Biden ao poder.
Não seria o caso e nem cabe aqui recapitular os episódios que antecederam o 8 de janeiro. Eles podem ser recuperados pela internet, nos documentários produzidos pelos principais canais de mídia do país (Folha de S. Paulo, O Globo, CNN etc.), bem como em canais alternativos e probos que deixaram registradas as imagens do fatídico domingo em Brasília. Isso sem falar nos inúmeros depoimentos e esclarecimentos prestados pelos agentes públicos que atuaram decisivamente para “abortar” – sim, a expressão é correta – o monstrengo que poderia ter vindo à luz. E, se é verdade que uma imagem pode valer por mil palavras, as que foram veiculadas durante as manifestações e nos dias seguintes são bastante eloquentes quanto à virulência dos atos e aos objetivos em jogo.
As reações institucionais foram prontas e diversas. No domingo, dia dos atos, 243 pessoas foram presas dentro dos prédios do Palácio do Planalto, do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal (STF), bem como na Praça dos Três Poderes. No dia seguinte, mais de 1.900 que estavam no acampamento montado em frente ao Quartel-General do Exército, na capital federal, foram conduzidas à Academia Nacional de Polícia.
O Congresso abrigou uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI), que expôs os responsáveis pelos crimes cometidos naquela tarde. Além do próprio Bolsonaro, outras 60 pessoas foram acusadas de associação criminosa, violência política, abolição violenta do Estado Democrático de Direito e golpe de Estado. A pedido da Procuradoria Geral da República (PGR), 1.354 ações penais foram instauradas. Os inquéritos ficaram sob a responsabilidade do ministro Alexandre de Moraes que, antes mesmo de assumir a relatoria, já era alvo constante dos ataques bolsonaristas.
Dada a repercussão negativa das manifestações, participantes e apoiadores se mobilizaram a fim de justificar seus atos. Um dos primeiros esforços nesse sentido foi a afirmação de que teria havido omissão ou complacência do governo frente a ações das quais estaria ciente. No limite, alguns deles chegaram a afirmar que tudo não teria passado de uma conspiração da esquerda, que infiltrara pessoas mal intencionadas num ato cívico, numa manifestação legítima de cidadãos ordeiros.
Diante de uma multidão de descontentes, os agentes infiltrados seriam a fagulha inicial de um incêndio que, não fosse a pronta resposta do poder público, viria a produzir efeitos ainda mais deletérios. Ecoando teorias do século XIX, de nomes como Scipio Sighele e Gustave Le Bon, os apoiadores dos atos de 8 de janeiro sustentavam que, ao invés de indivíduos voluntariamente predispostos a participar dos tumultos, os manifestantes deveriam ser encarados como náufragos lançados ali pela tempestade psicológica, que os arrastara sem o saberem.
Ante o exposto, o que nos estimula neste breve artigo é esboçar considerações sobre a negação sistemática de que os manifestantes tiveram a intenção de impor um golpe de Estado, tese que tem sido sistematicamente desconstruída pelas apurações em curso. A título de ilustração, pode-se mencionar as investigações levadas a efeito pela Ação Penal 1080 que, já em sua fase preliminar, conseguiram recolher farto material postado pelos réus em suas redes sociais acerca da invasão e depredação dos prédios públicos.
Da mesma forma, a maioria dos réus foi rapidamente identificada, uma vez que eles mesmos se fotografaram e gravaram vídeos durante as ações, em meio a palavras de ordem nas quais nomeavam seu líder. Não só o material é abundante, como contundente quanto à natureza das ações empreendidas, fundamentando, assim, o entendimento de que teria havido uma intenção inequívoca por parte dos manifestantes de tomada ilícita de poder, com uso de meios violentos, para derrubar um governo democraticamente eleito.
Enquanto relator da AP 1080, o ministro Alexandre de Moraes instruiu que os conteúdos produzidos e difundidos pelos réus ficassem disponíveis durante os interrogatórios, de modo a funcionarem como “provas” acessíveis a todo e qualquer cidadão que, porventura, tivesse interesse em acompanhar tais atos processuais. Nesse sentido, um aspecto inusitado da exibição das imagens tem sido a “indignação” ou a “esquizofrenia” que não raro toma conta dos réus ao se verem confrontados com seus próprios vídeos e fotos, isto é, com um material que produziram em outro contexto, quando tinham a expectativa de que o golpe seria bem sucedido e todos passariam incólumes!
A fim de contornar as novas circunstâncias, alguns réus chegaram a contestar a credibilidade dos registros, tendo havido, inclusive, quem requeresse a realização de perícia técnica nas imagens apresentadas nos autos, a fim de verificar sua autenticidade, integridade e fidedignidade. Como as imagens partiam da Polícia Federal, os requerimentos foram indeferidos, de modo que as imagens continuaram a ser exibidas nos interrogatórios, contribuindo, assim, para o esclarecimento dos fatos e, por vias transversas, para a formação de opinião a seu respeito.
Dadas as circunstâncias, qualquer um poderia acessar as imagens e delas dispor, como fez, por exemplo, Victor Panchorra, um cidadão paulista, comunicador, influenciador digital e produtor de vídeos que, interessado nas transmissões dos interrogatórios da AP 1080, viu nelas uma “janela de oportunidade” para movimentar seu canal no Youtube. Perfeitamente sintonizado com a lógica da economia de plataforma, Panchorra desejava monetizar seu canal e, ao mesmo tempo, estimular o debate público em torno de uma questão que afetava toda a sociedade brasileira. Arguto, ele logo se deu conta de que os conteúdos disponibilizados pelo STF poderiam se revelar atraentes à sua audiência. Assim, valendo-se de certos recursos, como os reacts – uma prática de gravar vídeos reagindo aos conteúdos de outros já postados na rede –, o influenciador digital fez de seu canal uma espécie de tribuna para a divulgação dos próprios comentários e daqueles que, porventura, o seguiam.
O que Panchorra talvez não imaginasse era que, ao reproduzir os interrogatórios disponibilizados pelo canal do STF, além de conteúdos postados pelos próprios réus em suas redes sociais, ele colocaria em evidência um aspecto fortemente presente em nosso ordenamento judiciário e político: a “lógica do contraditório”. Assim, se, por um lado, as “provas” apresentadas nos julgamentos impunham um efeito de desautorização moral dos patriotas recolhidos à Papuda e seus advogados de defesa, por outro, estes buscavam desqualificar sistematicamente o discurso dos seus detratores, sustentando que o julgamento no STF era “político” e que o relator dos casos, o ministro Alexandre de Moraes, teria feito manifestações sobre o tema fora do processo. Numa palavra, o STF não teria competência para abrigar o julgamento e Moraes seria “ilegítimo” para sua condução.
O posicionamento assumido pelos réus e seus defensores nos tribunais, na verdade, apenas refletia uma postura que teria se notabilizado na esfera e espaço públicos brasileiros há alguns anos. Como é de conhecimento geral, um dos direitos propaladamente exaltados por Bolsonaro e seus apoiadores têm sido o de exercício da liberdade, sobretudo, da “sagrada liberdade de expressão”, que viria a se tornar mote bolsonarista com a instauração do inquérito das fake news, presidido pelo ministro Alexandre de Moraes.
Entre outros, a investigação tinha como alvos aliados do então presidente que, diante do que considerava uma arbitrariedade, atacaria diretamente Moraes, no dia 7 setembro de 2021, em um evento de celebração do Dia da Independência. Naquele então, diante de milhares de apoiadores na Avenida Paulista, Bolsonaro o chamaria de “canalha”, afirmando que o ministro devia “pegar o chapéu” e deixar a Corte.
A admoestação pública derivava de uma segunda e não menos importante motivação, posto que, por seu intermédio, Bolsonaro pretendia desqualificar as ações promovidas pelo magistrado na instauração de outro inquérito, este sobre atos antidemocráticos ocorridos no primeiro semestre de 2020, no qual o próprio presidente era investigado. De acordo com ele, o objetivo dos inquéritos era afrontar os anseios da nação por uma vida plena de “democracia” e “liberdade”, o que o teria levado à ameaça de descumprimento das decisões do magistrado e à classificação das investigações como atos de “censura ao povo”. Sem nunca ter deixado de ser propagada publicamente, a postura de hostilidade em relação ao STF e, mais particularmente, a Moraes voltaria à tona no último dia 7 de setembro, quando mobilizações coletivas foram organizadas em pelo menos sete capitais brasileiras, com novas e antigas exigências.
A maior manifestação ocorreu na cidade de São Paulo, num ato realizado na Avenida Paulista, que contou com a presença de lideranças políticas e religiosas, além do próprio Bolsonaro. Em seu discurso, o ex-chefe do Executivo pediu a anistia de todos os envolvidos nos atos antidemocráticos de 8 de janeiro – a que chamou de “armação” – e voltou a atacar o processo eleitoral de 2022 que, segundo ele, teria sido conduzido de forma parcial por Moraes, então presidente do Tribunal Superior Eleitoral. Bolsonaro cobrou, ainda, uma atitude do Congresso Nacional, a fim de que este colocasse “um freio” em seu desafeto político, numa inédita tentativa de impeachment de um ministro do STF.
De forma sucinta, pode-se definir uma teoria da conspiração como um modo de enxergar a realidade marcado pela noção genérica de que a “verdade oficial” é uma mentira a serviço de interesses ocultos e inconfessáveis. Conforme o exposto, parece ser precisamente essa a perspectiva compartilhada por participantes e apoiadores dos atos de janeiro de 2023.
O problema é que, para o bem ou para o mal, esses agentes não dispõem de provas materiais que confirmem ou confiram existência objetiva às suas imputações. Já quanto às suas ações… Como assinala Juan Blasco Quintana, o “encontro de várias pessoas propensas a delinquir se converte em conspiração quando elas ostensivamente planejam todas as fases de um ato punível e decidem firmemente executá-lo”. Salvo melhor juízo, não seria outro o caso dos episódios ocorridos em Brasília, nos quais se sobreleva o papel atualmente desempenhado pela comunicação digital.
Conforme mencionado, durante a invasão às sedes dos Três Poderes, vários participantes compartilharam nas redes sociais vídeos exibindo, em tempo real, os seus feitos. Semanas antes, as mesmas redes haviam desempenhado uma função estratégica na articulação das manifestações, cuja organização teria ocorrido ao longo de toda a semana que as antecedeu, com a sucessiva chegada de caravanas à Capital Federal. Para atrair adeptos, os comboios contaram com ampla divulgação nos grupos e canais bolsonaristas, mobilizando-se por meio de múltiplos aplicativos de mensagens, como Telegram e WhatsApp.
Mas, esses teriam sido apenas alguns dos usos possíveis de tais recursos. Desde 2018, as plataformas digitais já haviam se tornado uma capilaridade fundamental de apoio a Bolsonaro, servindo, inclusive, para rivalizar com notícias desfavoráveis publicadas pela imprensa. Há quem diga que, em se tratando do Brasil, o populismo digital teria na ascensão do bolsonarismo a sua primeira e mais notável expressão. Quem poderia imaginar que um dia o feitiço pudesse se voltar contra o feiticeiro?
Esse é o ponto. Tomados pelo entusiasmo, ingenuidade ou pela certeza de impunidade, nossos Pinks e Cérebros não atentaram para o fato de que as tecnologias digitais estão alterando rápida e significativamente alguns dos nossos processos de produção de verdades. Diante das novas formas de produção, armazenamento e circulação de informações as famigeradas “disputas de narrativas” podem estar com os dias contados. A não ser, claro, para aqueles espíritos já acostumados a pregar para convertidos. A ver….
*Edílson Márcio Almeida da Silva é professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Pesquisador do NUFEP e do INCT-InEAC.
**Laura Graziela Gomes é professora do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Pesquisadora do NEMO e do INCT-InEAC.
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