Comunidade Guarani e Kaiowá do tekoha Avae’te é atacada novamente por pistoleiros

É o primeiro ataque registrado este ano, apesar de ações armadas serem frequentes desde 2018; a promessa de um novo atentado causa medo na comunidade

Casa incendiada por pistoleiros no ekoha Avae’te, em Dourados (MS), do povo Guarani e Kaiowá. | Foto: comunidade do tekoha Avae’te

do Conselho Indigenista Missionário (Cimi)

Comunidade Guarani e Kaiowá do tekoha Avae’te é atacada novamente por pistoleiros

por Maiara Dourado

Um grupo armado invadiu, nesta tarde (16), o tekoha Avae’te, em Dourados (MS), do povo Guarani e Kaiowá. “Eles vieram pelo mato e atiraram umas quatro vezes, e [um dos disparos] quase acertou nosso parente”, relata Yvyraija Miri, liderança da comunidade. Segundo relatos dos indígenas, o grupo de pistoleiros monitora a comunidade por meio de drones a fim de localizar e alvejar os moradores. “Se a gente sair para filmar, eles dão tiro porque o drone fica em cima, até agora está aqui em cima” conta a liderança.

Na madrugada de terça-feira (15), um outro ataque foi empreendido por pistoleiros que invadiram e incendiaram dez das trinta casas do tekoha Avae’te. Os indígenas tiveram que se esconder no mato para se proteger dos tiros disparados pelo grupo armado que adentrou de forma violenta o território, tendo quase alvejado uma anciã e uma criança.

“Eles vieram pelo mato e atiraram umas quatro vezes, e quase acertou nosso parente”

“Eles vieram em duas caminhonetes com oito pessoas a pé para queimar as nossas casas. Eles têm armas pesadas, dão tiro para matar. Nós estamos correndo perigo, lutando pelos nossos direitos, pela nossa terra”, narra Yvyraija Miri.  

Ninguém ficou ferido, mas a promessa de um novo ataque, anunciada no momento da investida, tem causado medo e pânico dentre os indígenas. “Eles, em gritos de ameaça, prometeram voltar hoje à noite, gritando que ‘à noite é o Caveirão que manda’”, narrou um morador do tekoha, em mensagem de Whatsapp, a uma pessoa do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

“Eles [pistoleiros], em gritos de ameaça, prometeram voltar hoje à noite, gritando que ‘à noite é o Caveirão que manda’”

Casa incendiada por pistoleiros no ekoha Avae’te, em Dourados (MS), do povo Guarani e Kaiowá. | Foto: comunidade do tekoha Avae’te

caveirão – um trator blindado e modificado com chapas de metal – já é velho conhecido dos Guarani e Kaiowá de retomadas localizadas em áreas próximas aos atuais limites da reserva indígena de Dourados, cujo território é reivindicado pelos indígenas como parte de sua terra de ocupação tradicional.

O veículo é utilizado para atacar as comunidades Guarani e Kaiowá e derrubar os barracos das retomadas. Segundo relatos dos indígenas, o trator serve ainda como plataforma de tiro contra os Guarani e Kaiowá, sendo por este motivo, apelidado de “caveirão”. 

O trator serve ainda como plataforma de tiro contra os Guarani e Kaiowá

Além das casas incendiadas, os indígenas denunciaram o despejo de lixo no território da comunidade. “Eles jogam lixo, entulho dentro do tekoha, em frente às nossas casas”, relata, ainda, a liderança. Segundo Yvyraija Miri, esse foi o mais recente ataque ocorrido esse ano, mas os atentados contra a comunidade são frequentes, tendo o último ocorrido três dias atrás.

As investidas contra a comunidade de Avae’te e as outras retomadas do entorno da reserva têm se intensificado desde 2018, quando iniciou-se o processo de retomada das áreas. Em 2021, ao menos três casas de indígenas foram queimadas por seguranças privados de fazendeiros no tekoha Avae’té. “Agora [2023] sobraram 20 casas do total de 30 da nossa comunidade”, lamenta a liderança.

“Eles jogam lixo, entulho dentro do tekoha, em frente às nossas casas”

Dez das trinta casas do tekoha Avae’te são incendiadas. | Foto: comunidade do tekoha Avae’te

Reserva de Dourados

O tekoha Avae’te é um dos acampamentos Guarani e Kaiowá oriundos de um processo de retomada de terras que fazem divisa com a reserva de Dourados. “A reserva é insuficiente, não tem espaço, não suporta mais o número populacional”, explica Matias Benno, coordenador do Cimi Regional Mato Grosso do Sul. Segundo o Censo de 2022, a reserva de Dourados possui um contingente populacional de 13.473 indígenas, que vivem confinados em uma área de apenas 2,4 mil hectares.

Nesse sentido, as retomadas passam a emergir na região como uma forma de reivindicação de terras tradicionalmente ocupadas, invadidas por fazendeiros e arrendatários. Desse confinamento territorial da reserva de Dourados, surgiram 13 acampamentos: Avae’te 1 e 2, Ñu vera 1 e 2, Ñu vera Guasu, Aratikuty, Bolqueirão, Yvu Vera, Jaychapiry, Yvy rory poty, Ñu porã, Apyka`i e Pacurity.

“A reserva [de Dourados] é insuficiente, não tem espaço, não suporta mais o número populacional”

O último avanço da retomada Avae’te ocorreu no início desse ano. “Não houve reação dos fazendeiros após a nova retomada, que já estava estabelecida. Isso faz desse ataque uma ação quase gratuita, de extrema violência, onde o pessoal partiu para cima dos indígenas”, considera Benno, que esteve na noite de ontem (15) no tekoha.

“Inclusive as últimas barracas a serem queimadas estavam em áreas cuja posse está há muito tempo consolidada pelos indígenas. Ou seja, houve um avanço dos fazendeiros sobre uma área em que os indígenas estavam tranquilos, que já estava muito pacificada”, explica Benno. 

Noite de medo e tensão

Os indígenas passaram a noite de ontem (15) em estado de tensão e alerta. “Eles estavam com uma fogueira acesa, com jovens e crianças ali perto dessa fogueira”, relata Matias Benno. Também foi avistada uma ronda do grupo armado apontando luzes advindas da fazenda contra a comunidade.

“Havia uma movimentação na parte de cima [do território], os indígenas tinham avistado unidades policiais, aí depois viram carros passando na divisa da fazenda com a retomada. Em um determinado momento, se acendeu uma fogueira dentro da fazenda, então ficou a fogueira dos indígenas e a fogueira dos fazendeiros”, informou o missionário.

“Havia uma movimentação na parte de cima [do território], os indígenas tinham avistado unidades policiais”

Dez das trinta casas do tekoha Avae’te são incendiadas. | Foto: comunidade do tekoha Avae’te

A comunidade de Yvy Rory Poty, que também compõe esse conjunto de retomadas que descende da reserva de Dourados, sofreu, de igual modo, um ataque armado na última semana. No momento dos disparos, crianças se deslocavam para a escola. 

A violência contra indígenas dentro e fora da reserva de Dourados resulta de um longo processo de paralisia nas demarcações de terras indígenas da região. As áreas reivindicadas na região de Dourados, no entorno da reserva, foram incluídas por um Termo de Ajustamento de Condutas (TAC) assinado em 2007 entre a Funai e o Ministério Público Federal (MPF) na Terra Indígena (TI) Dourados Pegua. Desde então, contudo, o processo demarcatório da área ainda não avançou, acirrando os conflitos.

Ataques continuam

O ataque ocorrido na tarde de ontem (16) contra a comunidade do tekoha Avae’te prosseguiu, ininterrupto, até a 00h30 de hoje (17).  Além da investida armada, um trator foi usado para atentar contra vida dos indígenas e para derrubar a vegetação preservada pela comunidade. 

A Polícia Militar (PM) foi chamada pelos fazendeiros para intervir. No entanto, os indígenas denunciam a conivência da PM, que assistiu sem ação, o ataque contra a comunidade.“Chegaram duas viaturas, nós estávamos olhando do meio do mato, eles [pistoleiros] se reuniram com a PM e antes que ela fosse embora, na frente da Polícia Militar eles começaram a atirar”, relata Yvyraija Miri, liderança da comunidade. 

Nesta quinta (17), o medo persistia entre moradores do  Avae’te  que temem nova investida, mais de uma vez anunciada pelos pistoleiros. Missionários do Cimi Regional Mato Grosso do Sul receiam um massacre, caso não ocorram providências e devida intervenção das autoridades públicas.

A Defensoria Pública da União (DPU) junto à Defensoria Pública do estado do Mato Grosso do Sul (DPE-MS), em ofício, pediram atuação do Ministério da Justiça (MJ), do Ministério dos Povos Indígenas (MPI), do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e do Ministério de Direitos Humanos e Cidadania  (MDHC). As defensorias solicitam aos órgãos, a mediação nos conflitos, o envio da Polícia Federal e a proteção da vida e da integridade física dos indígenas Guarani e Kaiowá, tanto do tekoha Avae’te, como de todas retomadas limítrofes com a Reserva Indígena de Dourados. 

Os ataques contra a comunidade Avae’te ocorrem na mesma semana em que a Aty Guasu – Grande Assembleia Guarani e Kaiowá – se reúne com autoridades de instâncias internacionais para denunciar as violências sistemáticas vividas pelas comunidades Guarani e Kaiowá do estado do Mato Grosso do Sul. As lideranças da Aty Guasu pedem medidas de regramento ou embargo comercial a produtos oriundos dessas regiões de conflito, cuja produção, sobretudo de soja e grãos, “é fruto do sangue derramado do povo Guarani e Kaiowa”, como definiu  Zélia Maria Batista missionária Cimi Regional Mato Grosso do Sul 

Atualização em 17/08/2023, às 15h00: A matéria foi atualizada com as informações sobre a continuidade dos ataques, incluídas no subtítulo “Ataques continuam”

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