Maira Vasconcelos
Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).
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Fiocruz em terra indígena: “Mais de trinta aeronaves do garimpo passando baixinho na nossa cabeça”

Entre os impactos no modo de vida da população, “crianças indígenas brincam de fazer armas de madeira, revólver e metralhadora”.

Fiocruz em terra indígena: “Mais de trinta aeronaves do garimpo passando baixinho na nossa cabeça”

por Maíra Vasconcelos

Especial para Jornal GGN

Pesquisadores da Fiocruz, que avaliam a presença de mercúrio nas terras indígenas Yanomami, em Roraima, devido a presença da mineração ilegal, financiada pelo tráfico de drogas, solicitaram apoio de agentes de segurança da Força Nacional para entrarem no território. No percurso, “a gente via mais de trinta aeronaves passando baixinho na nossa cabeça, fazendo o movimento do garimpo, de ida e volta”, relatou em entrevista ao Jornal GGN, o médico e pesquisador da Fiocruz, Paulo Basta, que trabalha há 25 anos com temáticas da saúde indígena. Ele relatou sobre o clima de muita tensão, a dificuldade de chegar de barco ao território, pela resistência dos índios em levá-los por causa da presença de garimpeiros no caminho do rio Mucajaí, onde habitam as comunidades Paapiu e Sikamabiu, tendo que esperar que eles parassem o trabalho para poder passar. Além da dificuldade de trabalhar diretamente com a comunidade, influenciada pelas estratégias das máfias do garimpo, de aliciamento de lideranças locais.

“Chegamos em uma área que estava completamente conflagrada pela presença do garimpo. A gente vendo o rio completamente assoreado, aquela água barrenta, os conflitos instalados ao redor da comunidade, os garimpeiros promovendo festas regadas à bebida, comida. Foi um negócio bem estranho”.

Essa situação foi vivida pelos pesquisadores da Fiocruz, em outubro do ano passado, quando foram examinadas 290 pessoas, coletadas amostras de peixes, de água e de sedimentos do rio Mucajaí, para identificação da presença de mercúrio que atinge a população Yanomami. Espera-se que o resultado dessas pesquisas saia no final deste mês, após um ano de atraso. Em 2021, a autorização de ingresso às terras Yanomami foi “descaradamente” negada pelo ex-presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), o delegado Marcelo Xavier. Basta contou que 11 médicos foram impedidos de entrar no território, “onde sabidamente havia conflito e a população estava sofrendo”.

Em outras áreas, e em etapas anteriores da pesquisa, chegaram a identificar elevados níveis de mercúrio em mais de até 90% das amostras coletadas. Essa é a terceira etapa da pesquisa, que começou em 2013, após pedido, por meio de uma carta, do reconhecido líder Davi Kopenawa, que preside a Hutukara Associação Yanomami. Basta detalhou como foi, ao longo desses quase dez anos, o desenvolvimento do trabalho de pesquisa sobre a presença do mercúrio nas terras indígenas. E à medida que os resultados iam sendo divulgados, outros grupos de outras etnias solicitavam o apoio da Fiocruz. Como foi o caso, em 2019, do povo Munduruku, no Pará.

Basta falou sobre o momento em que a atividade de garimpo esteve controlada, na década de 90. E que, após 20 anos da expulsão do garimpo das terras Yanomamis, a atividade ilegal foi retomada, a partir de 2013 e 2014, “houve uma explosão a partir de 2016 e 2017, e com a ascensão do governo Bolsonaro à presidência, isso cresceu vertiginosamente”. Paulo Basta comentou também sobre os testes de neurodesenvolvimento infantil, e que crianças têm apresentado problemas de memória,  de comunicação e coordenação motora.

O pesquisador da Fiocruz disse que costuma fazer uma analogia entre a presença do tráfico de drogas nas favelas e a presença do garimpo nas aldeias. Diante da ausência do Estado, são esses grupos de criminosos que resolvem os problemas de necessidades básicas da população: “é o garimpo que instala o motor de energia elétrica, é o garimpo que te dá uma geladeira, que compra um barco, que coloca o motor, que traz a cesta básica”. Basta falou sobre o grau de criminalidade dos garimpeiros,“eles são milicianos e quem patrocina é o Primeiro Comando da Capital (PCC). Eles são traficantes de armas, de drogas, de pessoas”.

Ao final, Basta explicou todo o processo químico do mercúrio usado pelos garimpeiros, quando se alastra pelo curso dos rios. Pois o mercúrio tende a ir para o fundo do leito e, junto com a lama, se sedimenta passando por um processo de transformação. Essa mudança da forma original, digamos, do mercúrio, o torna mais perigoso. “Os nossos estudos comprovaram que, depois de 30 anos do garimpo ter sido interrompido, ainda assim, pessoas estavam contaminadas”, afirmou o pesquisador da Fiocruz.

Durante as pesquisas, quais entraves políticos o senhor e sua equipe viveram nos últimos quatro anos?

Primeiramente, o primeiro trabalho que fizemos foi por um pedido do Davi Kopenawa. Ele veio  ao Rio de Janeiro a meu convite para fazer a abertura de um curso de saúde indígena na Fiocruz. O Davi conheceu a instituição e se sentiu seguro, sentiu potencial. De alguma maneira, que eu diria já vislumbrando o problema que viria, ele pediu o apoio, naquela época, para fazer uma avaliação em três áreas na terra indígena Yanomami, onde o garimpo estava voltando e estava começando a impactar a região.

Esse trabalho que fiz com o Davi teve uma repercussão importante, a gente preparou um relatório técnico, entregamos ao Ministério Público, Ministério da Saúde, Ministério da Justiça, Funai, Ibama, Procuradoria Geral da República, à representante dos povos indígenas da ONU, à Victoria Tauli-Corpuz. E a comunidade nas margens do rio Tapajó também teve acesso a esse material. Por isso, de modo semelhante ao que o Davi fez, pediram também o nosso apoio, da Fiocruz, para ajudá-los a entender o processo de impacto decorrente da mineração ilegal e o uso indiscriminado de mercúrio no território.

O grupo de pesquisa foi se fortalecendo nessa área, a gente foi complexificando os protocolos. Com os desdobramentos, veio uma terceira etapa. Novamente, a Hutukara, presidida pelo Davi, pediu pra gente fazer uma nova avaliação em áreas que estavam, realmente, sofrendo os impactos da mineração, que é esse “olho do furacão”, que está aparecendo na mídia agora. Nos organizamos internamente, conseguimos captar recursos, por meio de emenda parlamentar, com a deputada Joenia Wapichana, montamos uma equipe grande com 22 pesquisadores, 11 médicos, para ir ao território e fazer essa nova etapa da pesquisa. Estou dando essa volta toda para dizer que o presidente da Funai negou a autorização para nossa equipe entrar na terra Yanomami, em novembro de 2021.

Voltando um pouco, a primeira etapa, quando o Davi Kopenawa entrou em contato com a Fiocruz, a etnia estudada era a dos Yanomamis?

Ele escreveu uma carta em 2013, que completa dez anos agora. Naquela época, eu ainda não trabalhava com a temática do mercúrio. A gente conseguiu recurso, conseguiu elaborar um projeto de pesquisa, submeter ao Comitê de Ética, conseguimos as autorizações legais, fomos ao território, uma ano depois, em dezembro de 2014, fizemos o trabalho de campo.

Foram estudadas três áreas. Uma área chamada Paapiu, bem no coração da terra indígena, na divisa entre Roraima e o Amazonas, perto da fronteira com a Venezuela. Essa região de Papiu tinha sido impactada pela primeira corrida do ouro, na década de 80, e naquele momento, em 2013, 2014, não existia garimpo naquela região. Tinha sido feita a desintrusão na década de 90, e até 2013 não tinha voltado o garimpo. Então, estávamos usando aquela área como “área controle”, para avaliação. Incluímos mais duas áreas no extremo norte da terra Yanomami, nas margens do rio Uraricoera, uma área que se chama Waikás, onde tem o grupo Ye’kwana, outra etnia que vive na terra Yanomami, e um pouquinho mais ao Norte, uma outra área chamada Aracaçá, um subgrupo Yanomami. É um povo menor que vive às margen do rio Uraricoera, e naquele momento o garimpo ilegal estava voltando.

Hoje em dia, essa região do rio Uraricoera, é uma das mais impactadas. Naquele momento, descobrimos que no Paapiu, embora o garimpo tenha sido interrompido há mais de 30 anos, ainda assim 7% tinham elevados níveis de contaminação nas amostras de cabelo coletados, revelando a larga permanência do mercúrio no meio ambiente e os impactos negativos que se estendem por décadas a fio. Na região do Uraricoera, a aldeia Ye’kwana, dos Waikás, eles tinham uma certa proximidade com o garimpo, no sentido de ter algum tipo de trabalho, de transporte, o garimpo estava no entorno das comunidades, mas não estava tão próximo. Nessa comunidade, cerca de 30% das pessoas tinham elevados níveis de contaminação nas amostras de cabelo. E, por sua vez, a aldeia de Aracaçá, onde o garimpo estava praticamente dentro da comunidade provocando impactos importantes, mais de 90% tinham elevados níveis de contaminação.

Isso foi relatado pormenorizadamente nos relatórios técnicos, gerou publicação científica, foi publicado em 2018. A partir desse movimento, geramos uma massa crítica, geramos evidências científicas comprovando os efeitos da contaminação, sobretudo os efeitos a longo prazo. Houve a divulgação e o povo Munduruku teve acesso a esse material. Então, eles pediram pra gente fazer um trabalho.

Em 2019, nós visitamos três aldeias da região Munduruku, no Pará. A situação lá estava bem mais grave do que a gente viu na época dos Yanomamis. Esse trabalho dos Munduruku também repercutiu bastante, teve relatório técnico, teve seis artigos científicos. Em decorrência disso, e aí já estava o governo Bolsonaro com essa política anti-endógena, anti-ambiental, anti-direitos humanos, essa necropolítica, nós tivemos inúmeros espaços de divulgação, reuniões com movimentos e lideranças indígenas, com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), a reunião com pesquisadores de outras instituições, com jornalistas da imprensa. Esse trabalho repercutiu muito e o governo todo estava sabendo quem eu era, o que eu estava fazendo. Então, quando fomos fazer a terceira etapa, a pedido do Davi, agora no rio Mucajaí, a gente conseguiu a captação dos recursos, que é a coisa mais difícil, estava tudo certo, equipe mobilizada, equipamentos comprados, e no processo de pedir autorização para entrada na terra indígena, o presidente da Funai, descaradamente, negou a autorização. Isso deu a maior repercussão. Recentemente, essa fala do presidente negando a nossa entrada foi repercutida. Para mostrar mais uma das evidências do genocídio do Bolsonaro, que foi ter impedido a entrada de 11 médicos na região onde sabidamente havia conflito e a população estava sofrendo. Depois de uma longa batalha, de vários debates, de reivindicações, movimento do Ministério Público Federal (MPF), nós conseguimos fazer o trabalho que deveria ter sido feito em novembro de 2021, nós fizemos em outubro de 2022.

Quando vocês chegaram no território, no ano passado, como encontraram as terras e os indígenas? Um ano é muito… ficou um ano parado, até que puderam retomar as pesquisas…

A gente chegou em uma área que estava completamente conflagrada pela presença do garimpo. Nós tivemos dificuldade de entrar no território. O garimpo fez um processo de cooptação de muitas lideranças locais, fez aliciamento de alguns grupos. A gente teve dificuldade de chegar na comunidade, tivemos que fazer esse deslocamento, de Boa Vista, capital de Roraima, para o baixo do rio Mucajaí, uma aldeia chamada Sakamabiu, onde tem uma pista de pouso, depois tivemos que pegar um barco, uma embarcação para subir aquela região do Alto do Itajaí, onde nós saímos a trabalho. Esse percurso de barco foi custoso, muita tensão, os índios não queriam levar a gente, porque sabiam que tinham garimpeiros, alguns esperando os garimpeiros pararem o trabalho pra gente passar. Depois, quando nos instalamos na comunidade, o primeiro e o segundo dia de trabalho foram bastante estranhos, porque a comunidade estava meio dividida. Ao longo do trabalho, a gente via mais de trinta aeronaves passando baixinho nossa cabeça, fazendo o movimento do garimpo, de ida e volta. Foi um negócio bem tenso. E a gente vendo o rio completamente assoreado, aquela água barrenta, os conflitos instalados ao redor da comunidade, os garimpeiros promovendo festas regadas a bebida, regadas a comida. Foi um negócio bem estranho.

E essas festas…

As festas são para os próprios índios. Como falei, eles utilizam várias estratégias de cooptação, de aliciamento. Quando o Estado está ausente, o Estado não oferece nenhum serviço público essencial, abandona a população a própria sorte…costumo fazer uma analogia com o tráfico de drogas na favela, aqueles jovenzinhos que são aviões, que entregam drogas pra quem vai comprar, ou fazem aquele serviço mais sujo, não fazem isso por opção, por escolher a carreira de traficante, fazem porque o Estado está completamente ausente, vira as costas pra eles. E a possibilidade de acesso a recursos, de ter algum benefício, quem leva nessas áreas é o tráfico, nas aldeias, quem leva, é o garimpo. É o garimpo que instala o motor de energia elétrica, é o garimpo que te dá uma geladeira, que te compra um barco, que coloca o motor, que traz a cesta básica, é o garimpo que traz 1/4 de boi para fazer churrasco, para alegrar a festa da comunidade.

Eles atuam então como milicianos.

Eles não atuam, eles são milicianos. E quem patrocina o garimpo na terra Yanomami é o PCC (Primeiro Comando da Capital). Eles são bandidos, eles são milicianos, eles são traficantes. Eles são traficantes de armas, de drogas, de pessoas.

Essas aeronaves que você diz, são dos garimpeiros. Então é muito dinheiro envolvido…

Aviões mesmo, aqueles aviões monomotor de pequeno porte. Então, tinha esse clima de tensão, e nos dois primeiros dias, a gente ficou desconcertado. Até que a gente chamou um cacique, uma liderança de lá, e falamos, olha, nosso trabalho é assim e assim, a gente precisa da colaboração da comunidade, vocês não podem beber durante o período que nós estivermos aqui, senão vai atrapalhar a realização dos exames médicos. Então, houve uma conversa de alinhamento e tudo se acalmou e conseguimos fazer o trabalho. Examinamos 290 pessoas, coletamos 47 amostras de peixes, coletamos 14 amostras de água, de sedimento do rio, essas amostras ainda estão em processamento no laboratório. Essa pesquisa é de outubro de 2022. O trabalho de campo terminou nos dias 14, 15 de outubro, mas consegui entregar as amostras apenas um mês depois, 14 de novembro. As amostras estão em processamento.

Vocês não têm medo de fazer o trabalho de campo em área que tem muita presença de garimpeiros, não?

Sim. Dessa última vez, ficou claro que a gente não só deve ter medo, como também devemos ficar bastante preocupados.

Vocês não vão com segurança, alguém do Estado?

Sim, dessa vez, fomos com quatro agentes da Força Nacional.

O que mais os pesquisadores têm necessitado solicitar ao Estado para entrar nessas áreas?

Neste momento, não estou envolvido diretamente, porque estou envolvido com outros projetos. Mas imagino que está tendo apoio do Ministério da Defesa, do Exército. Eles estão trabalhando conjuntamente.

Algo mais que queira destacar sobre as últimas pesquisas?

Essa situação de desordem social que encontramos lá, em decorrência da presença ostensiva de garimpo na região, isso tem impactos não só na organização social, mas no modo de vida das pessoas, também na alimentação. Tem crianças brincando fazendo armas de madeira, revólver, metralhadora. A criança reproduzindo esse ambiente hostil na qual ela está vivendo. Aplicamos testes de neurodesenvolvimento infantil, algumas crianças com alguns problemas relacionados ao neurodesenvolvimento infantil.

Em que sentido?

Problemas de comunicação, problemas de memória, coordenação motora.

Isso tem a ver até com a minha próxima pergunta. Porque além da questão sanitária, desnutrição e todos os problemas de saúde, no modo de vida dos indígenas, o que mais  tem sido afetado pela presença das máfias do garimpo? 

A subsistência está diretamente afetada. Quando o garimpo entra no território, a primeira providência é desmatar, derrubar floresta, mudar curso de rio, criar clareiras, buracos, aquelas cavas, e isso afeta diretamente a disponibilidade de alimentos. A caça é afugentada, os peixes são contaminados, as áreas agricultáveis para roça ficam restritas, os materiais de coleta da floresta somem, então isso tem impacto diretamente na segurança alimentar das comunidades.

Por isso, os casos de desnutrição estão se multiplicando. Ao mesmo tempo, como estratégia de aliciamento, o garimpo fornece cestas básicas, alimentos industrializados, ricos em sódio, em gordura, em açúcar, e paupérrimos em nutrientes, proteínas, que são minerais. Está havendo um processo de substituição da alimentação, as pessoas estão deixando de comer alimentos tradicionais, da natureza, da floresta, ricos em nutrientes, e estão passando a comer alimentos industrializados ultraprocessados. Isso resulta em desnutrição de crianças e idosos, e no surgimento de síndromes metabólicas, obesidade, sobrepeso, diabetes, hipertensão, em adultos jovens, principalmente nos homens.

Realmente, tinha áreas onde não havia a presença do garimpo, ou se havia na década de 90, como você falou, isso foi controlado, e recentemente, eles voltaram?  

As duas coisas.

Pode-se dizer que os problemas vinham de décadas, ou realmente, há uma presença de garimpeiros que antes não havia?

Em algumas áreas não tinha, efetivamente. Foram removidos, nos anos 90, com a demarcação e homologação da terra indígena. A explosão das pistas clandestinas, a desintrusão dos garimpeiros, esse processo se manteve estável, por quase 20 anos. Foi a década de 90 toda tranquila, o início dos anos 2000 tranquilo, voltou a ter garimpeiro, a partir de 2013, 2014, e houve uma explosão a partir de 2016, 2017, e com a ascensão do governo Bolsonaro à presidência, isso cresceu vertiginosamente. Tem estudos que mostram esse fenômeno.

Para fechar, queria que o senhor falasse mais detalhadamente sobre a contaminação do mercúrio. Quando o mercúrio chega em um determinado local do rio, ele se espalha por todo o leito, como é isso?

É bom esclarecer sobre isso. Aquele mercúrio utilizado pelo garimpeiro é o mercúrio elementar, que a gente fala. A prata líquida, também chamada de azogue, os nomes populares que o mercúrio tem. E ele é uma forma relativamente estável, ele é utilizado pelos garimpeiros porque ele forma ligas metálicas com facilidade, com metais nobres, principalmente, prata e ouro.

Quando o mercúrio é despejado no leito do rio, ele tem uma densidade maior que a da água, não se mistura na água, a água corre e leva o mercúrio à medida que ele está sendo jogado. Mas o mercúrio tem uma tendência a se sedimentar, a ir para o fundo do leito. Quando ele vai para o fundo do leito do rio, se mistura com aquela lama e sofre um processo de transformação química intermediado por bactérias e deixa de ser a prata líquida, vira uma forma orgânica do mercúrio, o metilmercúrio. Esse metilmercúrio é a forma mais tóxica do metal, porque ele ingressa na cadeia trófica alimentar de todos os animais que vivem dentro do rio. Contamina a biota, vai contaminar algas, larvas de inseto, pequenos crustáceos, tracajá, jacaré, diversas espécies de peixes, todos os animais que se alimentam de pescado, por exemplo, aves, a lontra, o porco do mato. E o ser humanos vai ser contaminado pela ingestão desse pescado, desses outros produtos, desses outros animais que estão no rio e estão contaminados. Essa é a forma de contaminação dos povos tradicionais. 

Compromete o leito do rio todo?

Essas generalizações são sempre complicadas. Mas podemos dizer que afeta a biota aquática, os animais que vivem dentro do rio. Como falei, esse mercúrio é um material de longa permanência no ambiente. Os nossos estudos comprovaram que depois de 30 anos do garimpo ter sido interrompido, ainda assim, pessoas estavam contaminadas. Se contaminando com esse mercúrio residual. Se hoje a gente interromper o garimpo, vamos pensar que essas ações do governo federal vão ser efetivas, vão ter o mesmo resultado que tiveram nos anos 90, o garimpo vai acabar na terra Yanomami, mas isso não garante que a população estará livre da contaminação.

Voltando um pouco no assunto, e assim fechamos, você sabe o que foi feito naquela época, na década de 90, que garantiu o controle e a expulsão dos garimpeiros?

Primeiro, foram essas ações de comando e controle que estão acontecendo agora, bloqueio do espaço aéreo, ações militares, desintrusão, ação militar ostensiva, tirou todo mundo de dentro do território. Depois, houve políticas públicas, a demarcação do território foi uma política de reparação desses povos (decreto nº 1.775, de 8 de janeiro de 1996), houve investimentos na área da saúde, houve distribuição de recursos para projetos elaborados por ONGs, associações indígenas, e uma postura franca do governo federal de não apoiar esse tipo de atividade ilegal. Um conjunto de ações que garantiram uma certa calmaria na terra Yanomami.

Maíra Vasconcelos é jornalista e escritora, de Belo Horizonte, e mora em Buenos Aires. Escreve sobre política e economia, principalmente sobre a Argentina, no Jornal GGN, desde 2014. Cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina (Paraguai, Chile, Venezuela, Uruguai). Escreve crônicas para o GGN, desde 2014. Tem publicado um livro de poemas, “Um quarto que fala” (Urutau, 2018) e também a plaquete, “O livro dos outros – poemas dedicados à leitura” (Oficios Terrestres, 2021).

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