
Terras indígenas: “Garimpeiros, grileiros e madeireiros agora vão ficar muito mais incomodados. E precisam ser retirados para não voltar”
por Maíra Vasconcelos
Especial para o Jornal GGN
“Foram quatro anos de horror. E o exemplo maior disso, o mundo está vendo agora nesse genocídio que está sendo comprovado na terra Yanomâmi. Aquelas populações que estão aparecendo agora na televisão, na imprensa, aquilo são anos de abandono, de permissão, de acampamentos de garimpeiros”.
Em quase uma hora e meia de conversa com o indigenista e conselheiro da Fundação Darcy Ribeiro, Toni Lotar, ele contou com ânimo a possibilidade de retomada dos direitos dos povos indígenas, após quatro anos de política anti-indígena do governo Bolsonaro. Lotar usou a expressão, estão “saindo do inferno quase que para o paraíso”, com a histórica presença de representantes dos povos indígenas em órgãos do governo Federal, e formação inédita de um ministério voltado à articulação política em favor dos indígenas. “Não podia ser um cenário mais favorável a uma nova era de políticas públicas aos povos indígenas no Brasil”, disse. No entanto, Lotar pontuou, a cada nova possibilidade de “virada”, problemas históricos precisam ser enfrentados, como a expulsão de garimpeiros, grileiros e madeireiros, que atuam como máfias nas terras indígenas. Mas, para ele, agora esses grupos criminosos ficarão, no mínimo, “mais incomodados”, e poderá haver uma diminuição das atividades ilegais, pois, o incentivo político e institucionalizado que existia no governo Bolsonaro, está sendo substituído pela retomada dos direitos constitucionais indígenas.
“Tem que tirar esses 30 mil garimpeiros de lá (no caso de Roraima). Depois, tem que fazer um sistema de vigilância aérea, tem que entrar a Aeronáutica. Tem que fazer um sistema de contenção de barcos subindo dos rios, aí entra a Marinha. E um sistema de inteligência, é quando entra a Polícia Federal. Para depois que essa turma (garimpeiros, grileiros e madeireiros) for retirada, eles não voltarem mais”, esmiuçou Lotar, que também considera que as Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica) já estão voltando a cumprir, novamente, suas funções e ações.
De responsabilidade da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), que, pela primeira vez, é presidida por uma mulher indígena, Joênia Wapichana, de acordo com Lotar, indigenista desde 1975, espera-se a volta da demarcação e homologação das terras que já passaram pelo processo de demarcação, mas que no governo Bolsonaro estiveram interrompidas. “Vão ser retomadas as demarcações de terra. As terras que já estão demarcadas serão homologadas. Os invasores de terras indígenas, os garimpeiros, grileiros e madeireiros agora vão ficar muito mais incomodados, porque vão parar de contar com o apoio do governo Federal, como era o caso do Bolsonaro”.
A “indigenização” da Funai e a cota indígena nos concursos
O indigenista Toni Lotar, técnico em Indigenismo pela Funai, falou da necessidade de que o concurso público promovido pelo órgão conte com uma cota indígena, para que o trabalho de campo seja realizado por quem conhece aquela realidade. Além do mais, segundo Lotar, isso traz para a Funai servidores que desejam atuar pela causa indígena, e evitaria os pedidos de transferência para outros órgãos do Estado.
“Ela vai promover um concurso para preenchimento das vagas. A Funai tem cerca de 1 mil funcionários a menos do que deveria. Já saiu o primeiro edital, espero que neste edital, ela coloque uma cota indígena. Porque os concursos públicos são genéricos. Quando a pessoa vira servidor, ele pode pedir transferência para qualquer outro órgão público federal. Então, muitos concursados da Funai fizeram isso. Para trabalhar na Funai, sobretudo na ponta, tem que ter comprometimento com a causa indígena, porque não tem ar condicionado, não tem carro, não tem secretaria, vai pra área. É muito importante ter cota para indígena nesses concursos, porque vai trazer para a Funai, um órgão indigenista, os próprios indígenas que conhecem melhor do que ninguém a sua própria realidade e são pessoas que estão acostumadas a viver na área indígena, não vão pedir transferência para o BNDES, para o ministério da Cultura, eles vão ficar na Funai”, esmiuçou Lotar.
Ele comentou também a demissão de militares da Funai e que, com isso, Wapichana irá designar indígenas para as coordenações regionais, num processo de “indigenização” do órgão:
“Ela assume, a Joênia Wapichana, e no primeiro ato, já determinou na virada do governo a demissão de 43 coordenadores militares da Funai, que faziam parte desse esquema anti-indígena do Bolsonaro, “bota” militar lá. Ela já limpou, numa tacada só, num único decreto. Agora para preencher esses cargos, ela tem que ter um pouco mais de cuidado. E demitiu “numa tacada”, porque nenhum deles prestava, salvo alguma exceção totalmente fora da regra, mas, no geral, todos eles rezavam na cartilha do governo Bolsonaro. Ela vai reequipar a Funai, provavelmente, vários indígenas serão nomeados como coordenadores regionais. Então vai “indigenizar” a gestão de ponta da Funai, com pessoas que são do povo, que conhecem a realidade”.
Lotar acredita que, agora, “com a faca e o queijo na mão”, as organizações indígenas têm o desafio de montar boas equipes, aprender a “ser governo” e lidar com a cultura burocrática com a qual não possuem familiaridade.
“Vai ter um momento de adaptação. Porque eles nunca foram governo. Mas já vinham bem organizados. Muitos indígenas têm potencial mas nunca atuaram na gestão pública, que tem as suas particularidades, seus procedimentos burocráticos. E a cultura indigena não é burocrática, então tem um choque cultural. Mas que, antevejo, vai vir muita coisa boa. O movimento indígena que se organizou para atuar em um cenário adverso, agora está em um cenário totalmente favorável. É um momento muito especial. Cabe às lideranças indígenas saberem ocupar os cargos, montar boas equipes. De uma situação que era de um governo federal contra eles, promovendo políticas contra os povos indígenas, autorizando o agronegócio em terra indígena, agora eles estão com um ministério novo, comandado pela Sônia Guajajara, com a Funai presidida pela Joênia Wapichana, que é altamente qualificada. E também na Secretaria Especial da Saúde Indígena (SESAI), o Weibe Tapeba, que vem atuando na área de saúde indígena no Nordeste, principalmente no Ceará, que é a origem do povo dele. Então, as perspectivas são as melhores possíveis”.
Os crimes e os anti-indígenas
Conversamos com Toni Lotar no início do governo Bolsonaro, em uma entrevista publicada aqui no Jornal GGN, em formato ping-pong, onde ele citou alguns nomes que atuam, há décadas, contra os direitos indígenas e o meio ambiente. Agora, Lotar comentou que o ex-presidente da Funai, na gestão Bolsonaro, o delegado Marcelo Xavier, foi uma indicação do presidente da União Democrática Ruralista (UDR), Nabhan Garcia, “um notório miliciano ruralista”.
“Nabhan Garcia, como líder radical do agronegócio, ele fez a indicação do delegado Marcelo Xavier para a Funai, e, entre outros males, ele era seu cúmplice. Então, certamente, com a mudança no ministério da Agricultura, o Nabhan Garcia foi removido, não sei por onde anda, deve ter voltado para as milícias ruralistas do Mato Grosso do Sul, de onde é originário. Ele é um notório miliciano ruralista”.
Lotar também lamentou o fato de o ex-ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, ter sido eleito deputado federal, por São Paulo, nas últimas eleições de outubro de 2022. “O Ricardo Salles, lamentavelmente, foi eleito deputado federal por São Paulo. Imagine que absurdo cometido agora pelo povo, como que elege um criminoso ambiental desse para deputado federal, com mais votos do que Marina silva teve”.
Sobre o delegado e ex-presidente da Funai, Marcelo Xavier, Lotar conta que, além do processo aberto contra ele pelo movimento indígena, por crimes contra a humanidade, ele e sua equipe deixaram a Funai, “na calada”, antes de serem exonerados:
“Marcelo Xavier está sendo processado como presidente omisso e anti-indígena da Funai. Ele se auto demitiu da Funai quando a Joênia entrou (atual presidente do órgão), ele já não estava mais lá , nem ele nem os procuradores, nem todo o staff. Quando a Joênia entrou lá na Funai as salas estavam todas vazias, eles abandonaram os cargos porque sabiam que iam se demitidos, optaram por esvaziar as gavetas antes da chegada da Joênia. Ele está sendo processado, como o Bolsonaro, por crime contra a humanidade”.
Também, a ex-ministra da Mulher e dos Direitos Humanos, Damares Alves, está sendo processada: “ela também se recusou a cumprir responsabilidades ligadas aos direitos do povos indígenas, além de fomentar a evangelização dos povos indígenas, e outro processado é o ex-secretário de saúde indígena, o Robson Santos, que também é militar. O movimento indígena já entrou com ação de crime contra a humanidade contra eles. Eles sumiram, desapareceram do mapa, estão todos “na muda””, denunciou Lotar.
Maíra Vasconcelos, jornalista e poeta, é de Belo Horizonte e mora há alguns anos em Buenos Aires. Escreve sobre política argentina no Jornal GGN e cobriu eleições presidenciais na América Latina.
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