Bustani faz alerta sobre denúncias falsas quanto ao uso de armas químicas pela Síria

Renato Santana
Renato Santana é jornalista e escreve para o Jornal GGN desde maio de 2023. Tem passagem pelos portais Infoamazônia, Observatório da Mineração, Le Monde Diplomatique, Brasil de Fato, A Tribuna, além do jornal Porantim, sobre a questão indígena, entre outros. Em 2010, ganhou prêmio Vladimir Herzog por série de reportagens que investigou a atuação de grupos de extermínio em 2006, após ataques do PCC a postos policiais em São Paulo.
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Uma revisão do relatório oficial da OPAQ sobre a Síria foi realizada pelo Grupo Berlim 21, integrado pelo diplomata José Maurício Bustani

Centro de pesquisas sírio atacado pela OTAN, em 2019. Foto: Reuters

O diplomata brasileiro José Maurício Bustani, primeiro diretor-geral da Organização para a Proibição de Armas Químicas (OPAQ), fez um alerta global nesta terça-feira (19): a Síria pode ser vítima de denúncias falsas envolvendo o uso de armas químicas, repetindo o que ocorreu com o Iraque, em 2002.

Uma revisão do relatório oficial da Missão de Apuração de Fatos, FFM na sigla em inglês, enviada à Síria pela OPAQ, foi realizada pelo Grupo Berlim 21 (BG21), do qual Bustani faz parte. Essa revisão foi submetida nesta semana ao Parlamento Europeu e demonstra a preocupação do grupo com a utilização de organismos internacionais, que deveriam ser imparciais, para fins geopolíticos.  

Em 7 de abril de 2018, um suposto ataque químico com gás cloro aconteceu em Douma, perto de Damasco, na Síria, área conhecida como reduto de opositores ao governo de Bashar al-Assad. O governo sírio negou ter feito o ataque e acusou os “terroristas” do Jaish al-Islam como os responsáveis pela agressão. 

Conforme o BG21, documentos da OPAQ, vazados em 2019, indicam que as conclusões do especialista no incidente de Douma foram suprimidas e que o Relatório Final da FFM, produzido pela OPAQ, era marcadamente diferente do relatório original, sendo perigosamente parcial. 

Vários pesquisadores, jornalistas e diplomatas, caso de Bustani e do antigo secretário-geral adjunto das Nações Unidas, Hans von Sponeck, que também integra o BG21, tentaram levantar questões da transparência, do diálogo aberto e da responsabilização junto da OPAQ e dos órgãos relevantes da ONU.  

O que diz a revisão

A revisão aponta que todas as tentativas de integrantes do BG21 de sensibilizar a ONU ou a OPAQ sobre a gravidade do relatório terminaram em obstruções e difamações. Então o grupo reuniu os documentos vazados e a experiência de atuação nos organismos internacionais para formular a revisão. 

O BG 21 mostra como o relatório da OPAQ ignorou e distorceu completa e sistematicamente um vasto conjunto de provas relacionadas com toxicologia, análises químicas, depoimentos de testemunhas e análises balísticas. 

No que diz respeito à balística, as observações foram interpretadas através de suposições arbitrárias e muitas vezes contraditórias que desafiavam as leis básicas da física e da mecânica.

Por exemplo, em um local de Douma, um cilindro de cloro supostamente caiu na orientação vertical, atingiu um telhado construído com vergalhões de aço e concreto e depois parou sobre um buraco no telhado, explica trecho da revisão. 

O buraco onde o cilindro estava assentado tinha o dobro do diâmetro do cilindro, e o vergalhão de aço, embutido no telhado de concreto, se espalhava pelo teto da sala abaixo como as pétalas de uma flor. 

“Qualquer observador experiente teria reconhecido imediatamente que o alargamento do vergalhão de aço só poderia ter ocorrido devido a uma explosão de contato no telhado por algum tipo de munição explosiva”, explica a revisão.

Ela descreve detalhadamente o cronograma dos eventos, explica a complexidade e a manipulação dos vários relatórios da OPAQ, relata as diversas trocas de e-mails entre a alta administração e os especialistas técnicos que expressam graves preocupações. 

Detalha as questões técnicas, toxicológicas e balísticas específicas, anomalias e, finalmente, documenta as repetidas tentativas de que essas preocupações sejam reconhecidas e discutidas.

“O documento mostra que a ONU e a OPAQ construíram um registo de alegações investigativas sobre ataques com armas químicas que, se não forem corrigidos, prejudicarão seriamente o futuro do direito internacional e da Convenção Armas Químicas”,  escreveu no prefácio da revisão o professor do MIT, Theodore Postol. 

O incidente de Douma 

Estados Unidos, Grã Bretanha, Alemanha e França se apressaram em confirmar o uso de armas químicas por Bashar al-Assad, com gestual indicando a necessidade de uma intervenção militar, o que não ocorreu pelo fato da Rússia negar que seu aliado tivesse feito uso e declarar apoio ao país árabe.

Para retaliar o governo sírio, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) disparou mísseis contra alvos específicos em Damasco. No Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), novos embates foram travados a partir da versão envolvendo o uso de armas químicas pela Síria. 

No Irã, o ministro de relações exteriores afirmou que as informações sobre o ataque não eram baseadas em fatos reais e que serviam como “uma desculpa para organizar ofensivas militares contra a Síria”.  

Os Estados Unidos pediram à Rússia que retirem o apoio a Assad após o suposto ataque químico. O Departamento de Estado dos EUA disse que relatos de vítimas em massa de um suposto ataque de armas químicas em Duma foram “horripilantes” e que, se confirmados, “exigem uma resposta imediata da comunidade internacional”. 

Aqui se percebe a colisão dos interesses geopolíticos: Bashar al-Assad não é um aliado dos Estados Unidos, alinhando-se aos russos e demais países não ocidentais que se opõem à hegemonia da nação norte-americana e da Otan. A comunidade internacional estava diante da nova versão de episódios anteriores.  

Bustani, o Iraque e as armas químicas

Em 2002, menos de um ano depois dos ataques da Al-Qaeda às Torres Gêmeas, em Nova York, o governo George W. Bush alegou que o Iraque, presidido por Saddam Hussein, oferecia suporte a grupos terroristas e possuía armas químicas, motivos pelos quais se justificaria uma invasão militar ao país. 

Bustani era o diretor-geral da OPAQ desde 1997, ano de criação da organização. Em 2000, ele foi reeleito por unanimidade e teve sua gestão elogiada pelo então secretário de Estado americano, Colin Powell. Ocorre que Bustani discordou da Casa Branca. 

O diplomata brasileiro defendia a adesão do Iraque à organização como uma medida que abriria caminho para inspeções de armas no país. Mas os Estados Unidos disseram que as inspeções acabariam sendo lenientes demais.

Representantes dos Estados Unidos acusaram o brasileiro de má administração à frente da entidade. Diante de tamanha pressão, Bustani acabou afastado de seu cargo e em março de 2003 os Estados Unidos invadiram o Iraque – sem nunca comprovar que o país árabe mantinha arsenal de armas químicas. 

Mas especialistas defenderam a gestão de Bustani e acusaram os Estados Unidos de se opor à tentativa dele de ampliar o alcance da Opaq para incluir países como Iraque e Líbia, à época com regimes hostis ao governo americano.

Missão enviada à Síria 

Uma Missão de Apuração de Fatos foi enviada à Síria pela OPAQ para investigar o suposto uso de armas químicas e quais foram usadas no ataque que deixou 40 mortos. A conclusão oficial da missão é de que havia “motivos razoáveis” para o uso de armas químicas em Douma. 

Na ocasião, Ralf Trapp, consultor e membro de uma missão anterior de apuração, disse à agência de notícias AFP que “equipes da ONU, como a Opaq, confiam nas opiniões e no apoio do Departamento de Segurança da ONU e de seus contatos locais”.

Este é justamente um dos pontos questionados pela revisão, o tratamento e utilização das fontes para a conclusão, sem proteção ou desconsideradas por aquilo que declararam à Missão. 

No dia em que os inspectores regressavam da investigação em Douma, o então diretor-geral da OPAQ, Ahmet Üzümcü, disse ao Financial Times que “poderia demorar um mês até que a missão de averiguação de fatos da OPAQ publique o seu relatório sobre Douma”.  

Trinta dias é o prazo prescrito para finalizar um relatório sobre uma investigação sobre alegados usos de armas químicas. O Relatório Final da FFM sobre Douma, no entanto, só apareceu dez meses após a conclusão da investigação no local. 

Outro ponto é que o Relatório Intercalar Original identificou incongruências ou anomalias relativamente às circunstâncias que rodearam as mortes que levaram à conclusão de que o gás cloro do cilindro em um telhado não era a causa. 

Especificamente, notou-se que a rápida morte de civis que estavam perto de um ar mais limpo e a fuga, juntamente com a profusa descarga de espuma pela boca e nariz, cujo início foi, segundo algumas testemunhas, quase imediato, não eram consistentes com intoxicação por gás cloro. 

Esta conclusão foi apoiada pelos três especialistas em toxicologia/farmacologia na área de armas químicas que os investigadores da FFM viajaram para encontrar no início de junho de 2018. No entanto, não esteve presente no relatório final apresentado pela OPAQ.  

O que está em jogo na revisão

No caso da guerra civil na Síria, o mundo recuou, com razão, horrorizado face às inúmeras atrocidades contra os direitos humanos cometidas contra civis e em combate – especialmente aquelas associadas à utilização de armas químicas internacionalmente proibidas. 

Para os envolvidos neste conflito, estão associadas acusações legítimas de violações dos direitos humanos. Na revisão do BG21, este é um consenso destacado pelos autores. A questão é o que tange a investigação imparcial de violações à Convenção de Armas Químicas.   

“Infelizmente, o processo de atribuição de culpa por estas atrocidades tem sido complicado pelos objetivos políticos dos Estados Unidos, Grã Bretanha, França e Alemanha que querem Bashar al-Assad removido do poder”, escreveu no prefácio da revisão o professor do MIT, Theodore Postol.

Para os especialistas, a questão é se as aplicações do direito internacional estão livres de preconceitos e motivos políticos externos quando crimes de guerra estão sendo investigados. “Quando a imparcialidade das investigações é comprometida, o resultado só pode ser o enfraquecimento do direito internacional como meio de encontrar justiça”, escrevem.

O que é o BG21

Uma Declaração de Preocupação, assinada por pessoas conhecidas internacionalmente em seus ramos de atividade, foi publicada em 12 de março de 2021. Os objetivos centrais desta declaração norteiam o Grupo de Berlim, que visa “defender a verdade e restaurar a credibilidade da OPAQ”. 

O Berlim Group 21, em inglês, pretende garantir que a OPAQ seja uma entidade “independente, objetiva, cientificamente rigorosa e, mais importante ainda, evitar mais miséria para o povo sírio” e para todos aqueles que sofrem com a utilização de armas químicas em conflitos armados. 

Além de Bustani e Hans von Sponeck, fazem parte da direção do BG21 Albert G. Milbank, professor Emérito de Direito Internacional na Universidade de Princeton, com atuação como relator da ONU para a Palestina e especialista em desarmamento internacional, e Piers Robinson, professor em Política, Sociedade e Jornalismo Político da Universidade de Sheffield. 

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Renato Santana

Renato Santana é jornalista e escreve para o Jornal GGN desde maio de 2023. Tem passagem pelos portais Infoamazônia, Observatório da Mineração, Le Monde Diplomatique, Brasil de Fato, A Tribuna, além do jornal Porantim, sobre a questão indígena, entre outros. Em 2010, ganhou prêmio Vladimir Herzog por série de reportagens que investigou a atuação de grupos de extermínio em 2006, após ataques do PCC a postos policiais em São Paulo.

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