Cristianismo, acúmulo de riquezas e posteridade; por Antonio Uchoa Neto

"Pode-se dizer que ressurreição e imortalidade da alma eram as duas faces da mesma moeda: o inconformismo com a morte"

Biblioteca IBGE

Comentário ao post O Sentido da Cruz e o Espírito da História: Especulações Filosóficas sobre o Cristianismo, por Nathan Caixeta

por Antonio Uchoa Neto

“É possível traçar uma linha condutora entre a Cruz e os eventos contemporâneos, dos quais destaco, a concentração da riqueza, o narcisismo individualista, a revolução tecnológica e, especialmente, a união entre fé e razão?”

Prezado Nathan, a Cruz representa a linha condutora entre a vida, a morte, e a ressurreição; sendo esta última a pedra angular do Cristianismo. Para os gregos, que dispensavam o emprego ostensivo de símbolos, e buscavam diretamente na natureza o sobrenatural, a preocupação filosófica era com a imortalidade da alma. De uma forma simplista, e considerando a preponderância dessas duas cosmovisões na cultura ocidental, pode-se dizer que ressurreição e imortalidade da alma eram as duas faces da mesma moeda: o inconformismo com a morte.

Todos nós, creio eu, na infância, nos deixamos encantar (no sentido de nos enganar) com as histórias sobre os riquíssimos faraós do Egito antigo, que se faziam enterrar junto com seus fabulosos tesouros. Ora, sendo o tesouro físico a própria riqueza e seu símbolo – ao contrário do nosso mundo capitalista, onde a riqueza é fruto da exploração do trabalho humano, e o valor produzido é representado por dinheiro, outrora um metal, depois um papel, e, hoje, um sinal eletrônico – pode-se sem dificuldade enxergar que essas histórias não faziam nenhum sentido.

Como se sabe, quando o europeu descobriu o acesso às pirâmides, lá foram encontrados muito pouco, ou quase nada, desses fabulosos tesouros, o que foi explicado com outra lenda popular, de que os monumentos já haviam sido, ao longo dos séculos, saqueados. Verdade ou mentira, uma coisa foi, de fato, encontrada nas câmaras mortuárias: pequenas estatuetas de madeira, representando a criadagem dos defuntos lá enterrados.

Isso faz muito sentido; de fato, só a crença numa vida que prosseguiria lá, no outro lado do mistério, poderia carregar consigo uma necessidade de ordem tão prática – possuir servos, para que nem lá, na outra vida, um faraó, ou ricaço qualquer, não tivesse que despender esforços para as trivialidades do corpo, vestuário, alimentação, enfim, as vulgaridades do dia-a-dia.

Para quem não é faraó, ou ricaço, as estatuetas de madeira nada significam; mas, os tesouros fabulosos…

Tenho para mim que, à medida que a convicção da imortalidade, ou, mais precisamente, da ressurreição, entre os cristãos, ia perdendo força – lembremos que Paulo, em uma de suas epístolas, tratando da ressurreição, afirmou que aquela geração de que ele próprio fazia parte não passaria antes que aquelas coisas acontecessem, ou seja, gente subindo aos céus, e que, na alta Idade Média, diversos textos ainda começavam com a alocução ‘Ao aproximar-se a noite do mundo…’ ou algo semelhante – a convicção de que haveria um único sucedâneo para esta “Pavorosa Ilusão da Eternidade”, na expressão de Bocage, começava a tomar corpo e ocupar a mente do homem: a Posteridade. E esta trouxe consigo, o fator inicial, preponderante, dentre aqueles citados por Nathan Caixeta: a concentração da riqueza.

Quando Shakespeare – que não era nobre nem tinha posses – saiu de Stratford-on-Avon, seu objetivo era ganhar dinheiro para comprar a casa onde seus pais haviam morado; alcançado o montante necessário, por volta de 1606, ele retornou à terra natal, comprou o imóvel de volta, e lá viveu os últimos dez anos de sua vida. Entre uma coisa e outra, escreveu as 37 peças que o tornaram o maior vulto da Literatura ocidental. Que ideia possuía ele de Posteridade?

Mas um nobre da alta Idade Média, um faraó de seu tempo, já convencido de que nem a alma é imortal, nem seu corpo ressuscitará, pode muito bem ter deixado de lado essas ideias antiquadas em favor de algo bem mais concreto e real: a sua Descendência. Eis o verdadeiro sucedâneo da imortalidade: a Posteridade, através de sua descendência; é neles, nos meus filhos, que me tornarei imortal; para eles preciso deixar não ideias tolas de outro mundo, mas sim recursos, riqueza, para que ocupem lugar elevado no mundo, fazendo com que Eu, na verdade, possua esses recursos, essa riqueza, e ocupe esse lugar elevado.

Não sei se há linha condutora entre a Cruz e a concentração de riqueza (de que, em minha visão, decorrem os demais fatores citados, o narcisismo individualista, com sua vaidade desmedida, a revolução tecnológica que é a expressão social e política do poder dos indivíduos concentradores de riqueza, cuja única evolução possível para sobreviver é o aumento de poder.

Não vejo união possível entre Fé e Razão; a primeira, para se impor, tem que submeter, em maior ou menor grau, a segunda, de que resulta a supressão desta; e esta é, pura e simplesmente, a negação da primeira. Só há dialética possível quando ambos os fatores não se excluem mutuamente.

Em algum lugar do mundo, em algum momento, alguém julgou-se, possivelmente sem ser obrigado a isso, dono, ou proprietário de alguma coisa, que não podia compartilhar com ninguém. O fato de que outros, seus semelhantes e próximos, também necessitavam, dessa ‘alguma coisa’, não o fez retroceder.

A partir desse momento, a roda do mundo entrou em movimento.

PS – Só mesmo o GGN para abrir espaço para esse tipo de texto. Contribuo com as minhas especulações não acadêmicas. E espero que esse post tenha dezenas de comentários.
Aspiro, mais que espero.

Redação

9 Comentários

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  1. O que nasceu primeiro, a propriedade privada dos meios de produção ou a religião?
    Existem provas claras de que muito antes da revolução agrícola e portanto da introdução da propriedade privada nas relações humanas, haviam rituais funerários. Apressadamente muitos concluem que havia, portanto, religião. Entretanto, rituais funerários não são necessariamente, religião. Esta implica um corpo de crenças e prescrições ritualísticas que visam, sempre, por o indivíduo ou a coletividade em contato com poderes sobrenaturais, deuses, demônios, espíritos, etc. A existência de ritos funerários garante tão somente que os vivos prezavam seus mortos, não mais do que isso. Sequer assegura que esperassem deles qualquer interferência no mundo real.
    Eu acho – achismo mesmo – que desse respeito aos mortos evoluiu a religião. Indivíduos angustiados, que como muitos de nós, desabafavam suas angústias com seus mortos e desejavam isto ou aquilo, ao ver acontecer algo que não criam possível podem ter começado a atribuir poderes mágicos aos defuntos, e por aí nasceu a religião. Em princípio uma forma de a coletividade e os indivíduos aliviarem suas angústias existenciais, logo que começa a criar regras de vida se torna um instrumento de poder. E como tal se torna um instrumento das classes dominantes.
    A crença nos cânones religiosos é quase sempre forte, mesmo entre os mais ricos, em sociedades mais pobres, como as sociedades feudais. Mas a medida em que aumenta a riqueza das classes dominantes (o que a ela se substituem outras classes igualmente ricas), na proporção inversa diminui seu fervor religioso. É simples de entender: quanto mais pobre uma sociedade, mais seus membros vivem à mercê de eventos incontroláveis. Mas, em uma sociedade mais rica, os mais ricos são cada vez menos dependentes de eventos fora de seu controle para viver. E portanto são cada vez menos influenciados pelo pensamento mágico que baseia a religião.
    Portanto, não é a substituição da vida eterna pela posteridade que afasta os ricos da fé religiosa. É a percepção de que não precisam dela para alimentar suas esperanças, percepção esta que decorre de sua própria riqueza. Ademais, quanto mais rico, mais narcisista. E como conciliar um narcisismo para o qual o indivíduo se basta com a preocupação de se perpetuar através de outro?

  2. O amigo precisa entender que a Fé é a Razão podem muito bem andar juntas.
    Ou melhor:”A fé verdadeira é somente aquela que enfrenta a Razão face a face.”
    Já dizia Allan Kardec.

  3. Prezado Ricardo Godinho, em nenhum momento eu disse que o enriquecimento individual afasta as pessoas do sentimento religioso que eventualmente possuam, seja ele sincero ou mera conveniência. O que tentei fazer foi – e é um achismo, também, pois não sou acadêmico nem pesquisador – tentar fazer uma conexão com uma suposta alteração na mentalidade de pessoas que, se não abandonavam totalmente a fé em que foram criadas – inclusive no que diz respeito à ressurreição – buscavam adaptar o não cumprimento de expectativas tão ansiadamente acalentadas, mantendo-as vivas, sob uma outra roupagem. Certamente não há, a princípio, impedimento a que uma pessoa seja rica, e ao mesmo tempo, religiosa. Nesse caso, os cristãos ricos fazem, em semelhante situação, o que fazem os cristão pobres: não levam a Escritura ao pé da letra. Ou você conhece alguém que, fora da Santidade absoluta, ofereça a outra face após levar um tabefe?
    Mas, a parte as considerações de ordem puramente moral ou filosófica – por que estas são, de qualquer modo, indiferentes tanto a ricos (por necessidade de escolha) quanto a pobres (por ignorância ou ausência de raciocínio crítico), o que eu tinha em mente era o Poder – absoluto, durante muito tempo – da Igreja, ou seja, da Religião enquanto base não para o aperfeiçoamento moral ou busca da salvação, mas para o bem estar terreno. Enquanto o catolicismo tinha bem clara essa ideologia que resultou em acúmulo de riqueza e poder, com o resultado óbvio de empobrecer seus fiéis, o protestantismo apenas admitia que, sendo a salvação individual, qualquer um pode enriquecer o quanto quiser, desde que seja capaz e submeta-se, em espírito, ao Criador; mais uma vez, absolutamente nenhuma preocupação com os que não dispunham dos meios para tanto, seja por berço, seja por efeito do meio em que viviam. Isso para não falar nos nossos amigos pastores evangélicos, ou neopentecostais, que nome se queira dar a essa praga que segue aí, enriquecendo desbragadamente às custas da boa fé e ignorância das pessoas. Longe de mim questionar o sentimento religioso das pessoas.
    Quanto à propriedade, concordo, em geral, com a sua visão. Mas ainda gostaria de encontrar, em algum lugar, algum texto dedicado a esclarecer, mesmo que de forma hipotética, o momento aproximado em que o homem, ou o antropóide, descobriu haver uma relação entre a cópula e o nascimento de crianças. Creio que aí estaria o elo perdido que separou a vida puramente comunitária da vida com base na propriedade privada. Ou seja, o filho seria o estimulador da noção de propriedade, com o efeito de obter vantagens, ou ganhos, de qualquer natureza. Sabe-se que em sociedades primitivas a descendência era matrilinear, ou seja, a criança pertencia à mãe, que a paria. O episódio de Onã, no Gênesis, deixa claro que os semitas daquele tempo tinham plena consciência do papel fundamental desempenhado pelo pai. O que me leva a crer que tal consciência tenha surgido em tempos pré-escrita, o que dificulta todo e qualquer esclarecimento a esse respeito.
    Por fim, prezado amigo, não vejo a descendência, particularmente, como um obstáculo ou antídoto à vaidade humana, ou que a idéia da morte a anule, no homem, muito pelo contrário; vejo o desejo de proporcionar aos próprios descendentes meios materiais para uma vida farta uma confirmação – ou sublimação – dessa mesma vaidade. Estender os bons – ou, a depender do ânimo ou disposição dos herdeiros, maus – efeitos de suas ações em vida exprime, fortemente, uma vaidade hiperbólica, que transcende a própria vida e se estende sobre o mundo mesmo após a própria morte. Uma vida, creio eu, não é o bastante para a vaidade dos homens.

  4. Acredito que a convivência com a fortuna, com a abastança e com a riqueza, de um modo geral promoverá um alcance espiritual de fé, de humildade, de verdade e de significância religiosa menor, bem diferente e menos comovente do que o sentimento da fé legitima e desinteressada que é proferido pelo excluído, pelo súdito, pelo servo, pelo escravo e pelo povo simples humilde. Os poderosos abastados usam a estrutura do seu poder material contra o oculto e temeroso poder de humildades, de justiça e de amor ao próximo. Porém, eles sabem que se houver exagero poderá comprometer a sustentação da base religiosa pecadora e da base da pirâmide que sustenta a fortuna, o status e o poder. Então, eles adotam o morde e assopra, o puxa e estica e o tome chicote.
    O restante da história está aí, ao vivo, para todos assistirem.

  5. Prezado Antonio Uchoa, vejo que está sempre disposto a lapidar palavras, e com observações interessantes. Quando diz que “em algum lugar do mundo, em algum momento, alguém julgou-se, possivelmente sem ser obrigado a isso, dono, ou proprietário de alguma coisa, que não podia compartilhar com ninguém” me faz lembrar de cena de 2001, talvez um pouco exagerada, quando um antropóide descobre o “poder”. Não sei se podemos creditar essa face do comportamento humano a um clique aleatório. Talvez seja um processo evolutivo, quem sabe? Continue com as especulações não acadêmicas, sempre virão pensamentos que merecerão ser compartilhados.

  6. Prezado Kiril Araújo, me desculpe, mas só agora, 25/01, estou vendo seu comentário ao meu comentário, obrigado.
    Esse novo site do GGN está meio estranho, eu às vezes volto a um post em que fiz algum comentário, à procura de alguma interação, e o próprio comentário que eu havia deixado some. Estranho.
    Veja, tenho uma visão um pouco diferente sobre a cena do antropoide em 2001. O que ele descobre ali, e não por um clique aleatório, mas sob o influxo do monolito e do alinhamento do sol com a lua, não é o poder: é a técnica, a possibilidade de transformar a natureza para obter uma vantagem ou um ganho, ou seja, utilizar algo que tem uma função (um osso, cuja única função é sustentar o corpo dos animais vertebrados), para uma outra coisa, no caso, matar alguém. E a posse dessa técnica possibilita ao antropoide recuperar algo que ele havia perdido, a fonte de água.
    Olha a propriedade surgindo aí. O desejo de ser dono de alguma coisa.
    Mas claro, embora o resto seja história, isso não é ciência, é filosofia. Mas que é bastante provável que a descoberta de que é possível transformar a natureza, sem dúvida nenhuma, está na árvore genealógica do poder, disso eu não tenho dúvida.
    Um grande abraço!

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