O cristianismo compulsório de cada matando de 1500 a 2022.
por Sidnei Barreto Nogueira e Ellen de Lima Souza
Um vídeo que vem viralizando nas plataformas de tik tok com personagens negros todos armados cantando “Para atrás da Cruz, para atrás da Cruz eu profetizo que a Bahia é de Jesus” (refrão) intercalado por frases de extrema violência como “o inimigo eu não acho, mas Jesus chegou primeiro”; “Não tem Maria Padilha e nem Exu caveira Jesus manda lá na ilha”; “Não tem sete facadas e nem os orixás meu deus manda na timbalada e também no Ogunjá”, entre outras.
Trata-se de uma explícita ameaça aos povos de terreiro de Salvador, que historicamente vem resistindo aos processos impostos pela colonialidade do poder, é urgente que possamos pensar sobre a naturalidade com a qual jovens negros que se declaram evangélicos fazem esse tipo de produção e constroem uma narrativa de ódio.
A imposição do cristianismo como uma verdade universal e portanto absoluta, no Brasil é tão intensa que nem sempre paramos para pensar sobre o óbvio, por exemplo, a tela acima “A primeira missa no Brasil” curiosamente pintada na França por Victor Meirelles entre os anos de 1858 e 1860, teoricamente se baseou na carta de Pero Vaz de Caminha, escrita na Bahia logo após a invasão dos colonizadores. Portanto, em uma análise minimamente ética essa seria uma carta de confissão de um crime brutal que segue reverberando na sociedade brasileira e deveria ser utilizada para apoiar políticas públicas em favor dos povos originários, que aliás, continuam a perder suas terras.
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Assim, a hoje conhecida como Bahia de Todos os Santos, cuja capital é nomeada como São Salvador é registrada por Victor Meirelles desde a França. De todos os trechos do relato criminoso de Pero Vaz de Caminha ao Rei Dom Manuel além da miserável tentativa de dizer que os povos indígenas teriam participado atentamente da missa um trecho demarca a violência desde lá naturalizada “Neste dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra! Primeiramente dum grande monte, mui alto e redondo; e doutras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos: ao monte alto o capitão pôs nome – o Monte Pascoal e à terra – a Terra da Vera Cruz”. E começa tudo em nome de Cristo!
A despeito da imposição do cristianismo a re-existência negra recria um estilo africano pré colonial e canta e dança outra sociedade possível. Ressignifica “São Salvador” por uma possibilidade de “salvar da dor” que a colonização impõe diariamente a todos, tentando retirar a África dos negros, e como concordam as pesquisas da área por volta de 1830 tem início sob a liderança de três mulheres africanas, Iyá Detá, Iyá Akalá e Iyá Nassô, o Ilê Axé Iyá Nassô Oká, conhecido como Casa Branca do Engenho Velho , que por sinal dede 1986 é patrimônio histórico do Brasil hoje liderado pela yalorixá Neuza Conceição Cruz. O candomblé recria a noção de comunidade e estabelece novas configurações de família de se articula em torno de uma lógica que sempre apontou para a reparação e nunca a vingança.
Mas, se o cristianismo compulsório continua vigorando e assume inclusive bancadas evangélicas, impõe ao STF um ministro terrivelmente evangélico, a primeira dama entra em êxtase religioso e ao lado de uma ministra manifestam a glossolalia. Porque os jovens negros periféricos que se anunciam evangélicos ameaçam os adeptos das religiões de matriz africana? Por que há um movimento nacional de expulsar os cultos afro-brasileiros das periferias?
Na lógica exúlica, a nossa hipótese é que eles temem o tambor, os toques rasgam mais o peito do que balas, ainda haverá estatuas de Iemanjá em todas as orlas brasileiras, as vitrines ao final de cada ano estarão tomada de roupas brancas para que as pessoas atravessem o ano pedindo paz, as ervas e chás continuaram curando boa parte da população e os tambores atravessando almas e mundos que nem sempre cabem nos corpos físicos.
A reflexão que se impõe da primeira missa em 1500 até tik tok “atrás da cruz” de 2022 é que nem com cinco séculos de absoluta violência e discrepante relação de poder houve êxito na universalização do cristianismo, mesmo sendo maioria, eles seguem temendo os cultos afro-brasileiros, afinal, qual outro motivo para que eles continuassem armados? Enquanto isso a macumba de forma geral cresce em todo país mesmo como tamanha violência e intolerância religiosa que mostra a face mais perversa do racismo. Mas, seguiremos dançando, cantando, humanizando coletivamente nunca atrás da cruz, mas sempre em giro com todas as diferenças!
Prof. Dr. Sidnei Barreto Nogueira – professor semioticista vinculado ao Ilê Ara e babalorixá.
Profa. Dra. Ellen de Lima Souza – professora adjunta da Escola de Filosofia Letras e Ciências Humanas da UNIFESP e ekede.
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