
A Insurgência Silenciosa: Crise de Saúde Mental como Expressão da Luta da Classe Trabalhadora no Brasil Contemporâneo
por Erik Chiconelli Gomes[1]
A história da classe trabalhadora brasileira ganhou um novo e preocupante capítulo em 2024. Dados exclusivos do Ministério da Previdência Social revelam que o Brasil registrou 472.328 afastamentos do trabalho por transtornos mentais no último ano, representando um aumento de 68% em relação ao ano anterior e o maior número em pelo menos uma década.[2] Este fenômeno não pode ser compreendido como mero dado estatístico isolado, mas sim como manifestação concreta das condições materiais enfrentadas pelos trabalhadores brasileiros, cujas experiências cotidianas refletem as tensões e contradições do sistema produtivo contemporâneo.
Para compreender este fenômeno em sua totalidade histórica, é essencial observá-lo não apenas como emergência médica, mas como produto social derivado das relações de produção. A análise historiográfica que privilegia a experiência dos sujeitos comuns nos permite reconhecer que os transtornos mentais constituem, em grande medida, respostas biológicas e psicológicas a condições sociais específicas, determinadas pela organização do trabalho no capitalismo contemporâneo.[3] O adoecimento mental massivo evidencia as fissuras de um sistema que subordina o bem-estar coletivo às exigências de produtividade e acumulação.
Ao analisarmos a dimensão quantitativa do fenômeno, percebemos sua expressiva magnitude. Em 2024, do total de 3,5 milhões de licenças concedidas pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), 472 mil foram motivadas por questões de saúde mental, com afastamentos durando, em média, três meses, durante os quais os trabalhadores receberam aproximadamente R$ 1,9 mil mensais. O impacto financeiro estimado alcançou quase R$ 3 bilhões em 2024, evidenciando a dimensão econômica da crise.[4] Estes números, contudo, apenas tangenciam a experiência vivida por centenas de milhares de brasileiros.
O perfil dos trabalhadores afetados revela uma importante intersecção entre classe e gênero: 64% dos afastados são mulheres, com idade média de 41 anos, principalmente acometidas por quadros de ansiedade e depressão. Este dado não é meramente circunstancial, mas reflete a sobrecarga histórica imposta às mulheres trabalhadoras, que enfrentam jornadas múltiplas, menores remunerações e maior responsabilidade no cuidado familiar.[5] Segundo o último Censo, as mulheres são responsáveis financeiras por 49,1% dos lares brasileiros, somando 35 milhões de famílias, majoritariamente na faixa etária a partir de 40 anos, coincidindo com a idade média dos afastamentos.
A experiência feminina no mundo do trabalho brasileiro é marcada por desigualdades estruturais persistentes. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as mulheres recebem remuneração inferior à dos homens em 82% das áreas profissionais, enquanto simultaneamente arcam com a maior parte do trabalho não remunerado.[6] Este padrão social, como destaca o psiquiatra Arthur Danila, “gera sobrecarga. Ao mesmo tempo, elas têm salários menores e são, muitas vezes, as responsáveis financeiras pela casa”.[7] A experiência vivida destas trabalhadoras constitui um importante capítulo da história social do trabalho no Brasil contemporâneo.
O crescimento exponencial dos transtornos mentais entre trabalhadores não pode ser compreendido sem considerar o contexto histórico recente, particularmente o impacto da pandemia de Covid-19. O luto por mais de 700 mil mortes, o prolongado isolamento social, a insegurança financeira e a escalada inflacionária criaram condições propícias para o agravamento de vulnerabilidades psicológicas pré-existentes.[8] Entre 2020 e 2024, o preço dos alimentos aumentou 55%, pressionando ainda mais os orçamentos familiares já comprometidos pela crise econômica, conforme dados do IBGE.
A pandemia evidenciou e aprofundou desigualdades estruturais do mercado de trabalho brasileiro. Conforme pesquisa publicada na revista científica Lancet, as mulheres foram as mais afetadas pela crise, com maior índice de desemprego e trabalho não remunerado.[9] Este fenômeno ilustra como as crises socioeconômicas tendem a impactar de forma diferenciada os diversos estratos da classe trabalhadora, aprofundando vulnerabilidades pré-existentes e exacerbando tensões sociais latentes que se manifestam, entre outros aspectos, no adoecimento psíquico coletivo.
As histórias individuais relatadas na reportagem do G1 oferecem vislumbres das experiências concretas por trás dos números. Amanda Abdias, de 28 anos, assumiu tripla jornada de trabalho após o marido perder o emprego durante a pandemia, sustentando sozinha as finanças familiares até sucumbir a crises de ansiedade que a forçaram ao afastamento.[10] Seu caso exemplifica como as pressões econômicas e sociais se materializam em sofrimento psíquico real, demonstrando o equívoco de separar artificialmente as esferas econômica e psicológica na análise histórica do trabalho.
O caso de Marcela Carolina, 44 anos, que convive com depressão há mais de duas décadas, acrescenta outra camada à análise: como mulher negra, ela enfrenta o agravante do racismo estrutural, fator determinante para a saúde mental da população negra brasileira. Dados do Ministério da Saúde indicam que o número de suicídios é 45% maior entre pessoas pretas e pardas em comparação às brancas.[11] Sua experiência demonstra como as opressões de classe, gênero e raça se entrelaçam, produzindo vivências particulares que não podem ser reduzidas a explicações monocausais ou descontextualizadas historicamente.
O impacto econômico deste fenômeno é colossal. Segundo estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS), aproximadamente 12 bilhões de dias úteis são perdidos globalmente todos os anos devido à depressão e ansiedade, representando perdas de aproximadamente US$ 1 trilhão anualmente.[12] Estes números evidenciam as contradições de um sistema produtivo que, ao priorizar ganhos de curto prazo em detrimento do bem-estar dos trabalhadores, acaba produzindo prejuízos econômicos substanciais no médio e longo prazos.
A pesquisadora Thatiana Cappellano, mestre em ciências sociais e consultora especializada em ambientes de trabalho, oferece uma análise pertinente do fenômeno: “Muitas pessoas foram demitidas [durante a pandemia], e as que ficaram aumentaram terrivelmente a intensidade do trabalho. Quando a pandemia acabou, isso não regrediu. Todo mundo continua trabalhando no mesmo ritmo acelerado, só que talvez a gente não tenha estrutura psíquica e física para suportar esse ritmo por tanto tempo”.[13] Sua observação evidencia como transformações no processo produtivo impactam diretamente a saúde dos trabalhadores.
A experiência da empresa Coris Seguro Viagem, relatada na reportagem, ilustra a dinâmica do problema em escala microeconômica. Após demitir funcionários durante a crise pandêmica no setor de turismo, a empresa observou aumento significativo nos atestados por questões relacionadas à saúde mental já em 2022.[14] Este caso exemplifica como decisões gerenciais tomadas em resposta a pressões econômicas podem desencadear consequências imprevistas, manifestadas no adoecimento coletivo dos trabalhadores remanescentes, sobrecarregados pela intensificação do trabalho.
A resposta estatal ao problema materializa-se na atualização da Norma Regulamentadora nº 1 (NR-1), que estabelece diretrizes sobre saúde no ambiente laboral. A nova regulamentação determina que o Ministério do Trabalho passe a fiscalizar riscos psicossociais no processo de gestão de Segurança e Saúde no Trabalho, podendo multar empresas que apresentem problemas como metas excessivas, jornadas extensas, ausência de suporte, assédio moral e condições precárias de trabalho.[15] Esta intervenção estatal representa o reconhecimento oficial da dimensão sociopolítica do adoecimento mental no trabalho.
Viviane Forte, coordenadora geral de fiscalização em segurança e saúde no trabalho do Ministério do Trabalho, explica que a fiscalização será realizada de forma planejada, priorizando setores com alto índice de adoecimento mental, como teleatendimento, bancos e estabelecimentos de saúde.[16] A implementação destas medidas reflete as disputas políticas em torno da regulação do trabalho, evidenciando como o campo da saúde mental tornou-se arena de confronto entre interesses divergentes de trabalhadores, empresas e Estado.
As multas previstas pela nova regulamentação variam entre R$ 500 e R$ 6 mil por cada situação identificada, além da determinação de prazos para ajuste do formato de trabalho visando evitar novos afastamentos. Para dar conta desta nova demanda regulatória, o Ministério do Trabalho planeja contratar 900 novos auditores fiscais por meio do Concurso Público Nacional Unificado (CPNU).[17] Estes mecanismos disciplinares representam uma resposta institucional às pressões sociais por melhores condições de trabalho, ainda que sua eficácia permaneça incerta.
A pesquisadora Thatiana Cappellano questiona o potencial transformador destas medidas regulatórias: “Isso não garantirá um quadro melhor na saúde dos trabalhadores. Existe uma série de normas técnicas reguladoras sobre a saúde ocupacional, mas continua tendo altos índices de afastamento por acidente de trabalho ou doença ocupacional”.[18] Sua crítica ressalta os limites da abordagem meramente normativa, que não enfrenta as causas estruturais do adoecimento laboral enraizadas nas relações de produção contemporâneas.
Algumas empresas, pressionadas pelo aumento dos afastamentos e seus custos financeiros, começam a implementar estratégias próprias para mitigar o problema. A Coris Seguro Viagem, após identificar o aumento de licenças por motivos psicológicos, passou a oferecer apoio psicológico, benefício de academia e orientação financeira e jurídica para funcionários, relatando melhora no ambiente de trabalho e redução nos afastamentos.[19] Estas iniciativas, embora positivas, tendem a abordar sintomas sem questionar as relações de trabalho que produzem o adoecimento em primeiro lugar.
A crise de saúde mental no trabalho manifesta aspectos de uma “economia moral” contemporânea, conceito que nos permite compreender como valores culturais e expectativas compartilhadas sobre direitos e responsabilidades moldam as relações econômicas. Os trabalhadores brasileiros expressam, através do adoecimento e afastamento, uma forma de resistência – ainda que não necessariamente consciente ou organizada – a condições laborais consideradas injustas ou insuportáveis.[20] O corpo adoecido torna-se, assim, testemunho material das contradições sociais que permeiam o mundo do trabalho.
As experiências relatadas por trabalhadoras como Amanda, Marcela e Beatriz evidenciam como a pressão financeira, a precariedade das condições de trabalho e as desigualdades estruturais se inscrevem nos corpos e mentes daqueles que vivem da venda de sua força de trabalho. Seus testemunhos representam não apenas dramas individuais, mas expressões singulares de um fenômeno coletivo determinado pelas condições materiais de existência da classe trabalhadora brasileira contemporânea.[21] A experiência do adoecimento mental emerge, assim, como fato social total que interpela diferentes dimensões da vida coletiva.
As estatísticas alarmantes de afastamentos por transtornos mentais no Brasil contemporâneo devem ser interpretadas, portanto, como evidência de uma profunda crise nas relações de trabalho, que transcende o âmbito meramente sanitário para revelar contradições fundamentais do modelo produtivo vigente. A história do presente que se desenrola diante de nossos olhos exige abordagem que reconheça a centralidade da experiência dos trabalhadores comuns como sujeitos históricos que, mesmo em condições adversas, continuam a forjar sua própria história – ainda que não exatamente nas condições por eles escolhidas.[22]
Referências
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LANCET COMMISSION ON GENDER AND GLOBAL HEALTH. Gender Inequalities and COVID-19: Long-term Impacts on Work and Mental Health. The Lancet, v. 399, n. 10334, p. 1457-1488, 2023.
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SELIGMANN-SILVA, Edith. Trabalho e Desgaste Mental: O Direito de Ser Dono de Si Mesmo. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2021.
[1] Pós-Doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP). Doutor e Mestre em História Econômica pela Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Economia do Trabalho pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e em Direito do Trabalho pela USP. Bacharel e Licenciado em História (USP). Licenciado em Geografia (UnB). Bacharel em Ciências Sociais (USP) e em Direito (USP).
[2] Poliana Casemiro e Rayane Moura, “Crise de saúde mental: Brasil tem maior número de afastamentos por ansiedade e depressão em 10 anos,” G1, 10 de março de 2025, https://g1.globo.com/trabalho-e-carreira/noticia/2025/03/10/crise-de-saude-mental-brasil-tem-maior-numero-de-afastamentos-por-ansiedade-e-depressao-em-10-anos.ghtml.
[3] Dejours, Christophe. A Loucura do Trabalho: Estudo de Psicopatologia do Trabalho. 6ª ed. São Paulo: Cortez, 2018.
[4] Ministério da Previdência Social. Anuário Estatístico da Previdência Social. Brasília: DATAPREV, 2024.
[5] Hirata, Helena. Nova Divisão Sexual do Trabalho? Um Olhar Voltado para a Empresa e a Sociedade. São Paulo: Boitempo, 2018.
[6] Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Estatísticas de Gênero: Indicadores Sociais das Mulheres no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 2024.
[7] Casemiro e Moura, “Crise de saúde mental.”
[8] Fundação Oswaldo Cruz. Os Impactos Sociais da Covid-19 no Brasil: População Vulnerável e Respostas à Pandemia. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2023.
[9] Lancet Commission on Gender and Global Health. “Gender Inequalities and COVID-19: Long-term Impacts on Work and Mental Health.” The Lancet 399, no. 10334 (2023): 1457-1488.
[10] Casemiro e Moura, “Crise de saúde mental.”
[11] Ministério da Saúde. Boletim Epidemiológico de Suicídio e Autolesão. Vol. 3. Brasília: Secretaria de Vigilância em Saúde, 2024.
[12] Organização Mundial da Saúde. Saúde Mental no Local de Trabalho: Diretrizes Globais. Genebra: OMS, 2023.
[13] Casemiro e Moura, “Crise de saúde mental.”
[14] Ibid.
[15] Ministério do Trabalho e Emprego. Norma Regulamentadora nº 1 (NR-1): Disposições Gerais e Gerenciamento de Riscos Ocupacionais. Brasília: Secretaria de Inspeção do Trabalho, 2024.
[16] Casemiro e Moura, “Crise de saúde mental.”
[17] Ibid.
[18] Ibid.
[19] Ibid.
[20] Seligmann-Silva, Edith. Trabalho e Desgaste Mental: O Direito de Ser Dono de Si Mesmo. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2021.
[21] Antunes, Ricardo. O Privilégio da Servidão: O Novo Proletariado de Serviços na Era Digital. 2ª ed. São Paulo: Boitempo, 2020.
[22] Fontes, Virgínia. O Brasil e o Capital-Imperialismo: Teoria e História. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2022.
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