Holocausto à Brasileira – A Vida Nua em Barbacena

lançamento do livro ” Holocausto Brasileiro”, na Comissão Estadual da Verdade

Assembleia Legislativa de São Paulo, sexta-feira, 09 de Agosto de 2013, 13h00: outra imperdível Audiência Pública realizada pela Comissão Estadual da Verdade, presidida pelo Deputado Adriano Diogo.  Desta vez, tratou-se do lançamento do novo livro de Daniela Arbex, Holocausto Brasileiro – Genocídio:  60 mil Mortos no Maior Hospício no Brasil.  Na mesa junto com ela, figuras de peso:  Desembargador Antônio Carlos Malheiros,  Guilherme Veloso, Padre Julio Lancellotti, Dr. Paulo Fadigas, Maria Orlene Daré, Daniela Skromov e Juliana Cardoso.  Na plateia, profissionais da área da saúde mental e afins, militantes políticos e um grupo de moradores de rua interessados em pensar a questão das internações compulsórias.

 

Daniela contou de modo muito vívido que a ideia do livro surgiu a partir de uma entrevista realizada com o então vereador e psiquiatra José Laerte, de Juiz de Fora, MG, que lhe mostrou Colônia, um livro publicado pelo Governo de Minas Gerais em 2008.  Nele, haviam fotos tiradas em 1961 pelo fotógrafo da Revista Cruzeiro Luís Alfredo, quando acompanhou José Franco para uma série de reportagens no “Hospital Psiquiátrico Colônia”, em Barbacena, MG.  Daniela percebeu de imediato que havia ali uma história a ser contada; era preciso não apenas restituir nome e história aos rostos sofridos e perdidos dos internos daquelas fotos, como também fazer com que nós, que os rotulamos de loucos e os banimos do mundo social, nos confrontássemos com a loucura própria a toda racionalidade acrítica, que teima em desconhecer sua insuficiência frente ao real. 

 

Por meio do trabalho de Daniela, o olhar vazio dos sujeitos perpetuados naquelas imagens readquire vivacidade e nos interpela, incitando-nos a enfrentar nosso quinhão de responsabilidade frente às atrocidades ali cometidas.  Afinal, o abuso físico, psíquico e moral dos sujeitos ali confinados, levando ao agravamento e à cronificação de suas condições iniciais, se perpetuou por décadas.  A autora enumera que foram coniventes com essa prática 28 presidentes do Estado, interventores federais e governadores, além dos 10 diretores que comandaram diretamente a instituição.  Os que protestaram perderam cargos, prestigio e poder; alguns sofreram processos no CRM.  No melhor dos casos ouviram promessas de melhorias, logo engavetadas.  A ditadura instaurada em 1964 contribuiu para o ocultamento e perpetuação daquela cruel realidade.

 

“Holocausto” descreve bem o caráter do projeto ideológico que fundamentava aquela prática nefasta, recoberta por uma racionalidade perversa que teve êxito, por certo tempo, em recobrir e confundir o mau cheiro, a degradação, o abuso e o descaso cometido contra aquelas pessoas consideradas “Unter”. Ironicamente, tal qual os habitantes dos campos nazistas, os internos do Colônia eram enviados para lá por trens, os “trens de doido”, como eram chamados regionalmente, a partir de expressão criada por Guimarães Rosa.  Ao chegar, perdiam seus bens, seus nomes, seus vínculos, sua voz e sua dignidade.

 

A morte simbólica se dava na ocasião da internação/condenação, de modo que a morte física mal era notada, chegando a 16 óbitos por dia. Ela decorria de maus tratos, eletrochoques indiscriminados, inanição, frio e descuido. Os pacientes eram então enterrados em covas rasas no cemitério contíguo ao complexo hospitalar, sendo por vezes desenterradas por cães, que então desfilavam pelas ruas de Barbacena com seus troféus na boca.  Entre 1968 e 1980 essa fábrica de mortes se deu conta do valor de mercado dos cadáveres dos sujeitos que, quando vivos, nada valiam; 1823 corpos foram vendidos para suprir 17 faculdades de Medicina em todo o país. Conseguimos, desta maneira, suplantar o nonsense da racionalidade nazista.

 

As mulheres sofriam violência sexual e maus tratos. As gestantes adotaram uma medida tão marcante quanto desesperada; para proteger seus bebês, elas passaram a esfregar fezes em suas barrigas para tornarem-se repugnantes. Ao nascer, ao menos 30 bebês foram sequestrados e “adotados” por “famílias de bem”.

 

No hospital haviam também crianças, transferidas em 1976 do Hospital de Neuropsiquiatria Infantil, em Oliveiras, MG, que ficavam ali largadas à própria sorte, por vezes protegidas por alguns internos ou funcionários, sem qualquer projeto terapêutico ou acesso à educação formal e informal. 

 

A falta de critério diagnóstico – documentada nos prontuários – é correlato direto do número absurdo de internações. Foram enviados para lá epiléticos, esposas indesejáveis, homossexuais, alcoólicos, solteiras grávidas ou que perderam a virgindade, órfãos, delinquentes, um caso de “tristeza”, pessoas em disputa de bens, deficientes e pessoas sem documentos, que se juntavam aos portadores de transtornos mentais. Salta assim aos olhos o projeto eugênico que inspirava aquela prática; o intuito não era tratar e sim expurgar a sociedade, afastando quem obstruía, colocava as normas em questão ou demandava trabalho. Evidenciando uma vez mais o preconceito racial em nossa sociedade, os internos eram, em sua maioria, negros e pardos. E lá ficavam, por décadas.

 

Os integrantes da mesa enfatizaram que Holocausto Brasileiro não deve ser tomado como o relato de um episódio isolado.  O livro traz à luz o modelo manicomial que ali adquiriu expressão máxima e que persiste sob novas roupagens. A vistoria nacional realizada em 2004 pelo Conselho Federal de Psicologia em parceria com o Conselho Federal da OAB contabilizou 28 instituições com internos em condições degradantes, altos índices de óbitos, cárceres e instrumentos de coerção e tortura. Em nova vistoria realizada em 2011 constatou-se a permanência de maus tratos e violação dos direitos humanos tanto em hospitais quanto em Comunidades Terapêuticas.

 

O “Hospital Psiquiátrico Colônia” manteve sua prática alienante e degradante até o início da década de 1980.  A redemocratização gradual do país levantou a cortina de ferro que o protegia, indignando a opinião pública, que exigiu mudanças efetivas. Os sobreviventes que tinham condições foram aos poucos transferidos para Residências Terapêuticas; outros em estado crônico permanecem asilados sob a guarda do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena.

 

Daniela Arbex nos apresenta as histórias dos sujeitos que foram banidos do campo social pelo autoritarismo do Estado instrumentado por certa racionalidade médica.  Era preciso que estas histórias, contadas pelos próprios sujeitos, ecoassem em uma Audiência Pública, num gesto simbólico de restituição de cidadania. Com este ato, a autora e a Comissão Estadual da Verdade não apenas ajudaram a reescrever parte da História do Brasil, como também realizaram um devido ato reparador.

 

Lógica Manicomial e Reforma Psiquiátrica

 

A figura mais ilustre a emprestar seu prestígio e força política na denúncia do “Hospital Psiquiátrico Colônia” foi Franco Basaglia.  O psiquiatra italiano, teórico da Reforma Psiquiátrica que levou à abertura de todos os manicômios daquele país em 1973, veio ao Brasil em 1979 para uma série de palestras.  O psiquiatra mineiro Antônio Soares Simone o convidou para visitar uma série de hospitais públicos daquele Estado; entre eles, o “Colônia”. No final de sua visita, Basaglia convocou uma coletiva de imprensa e denunciou as condições desumanas do hospital, comparando-o a uma campo nazista.  Esta entrevista teve forte repercussão nacional e internacional e não pode ser abafada.  Mesmo assim, Simone sofreu processo dos hospitais visitados e correu o risco de ter seu diploma cassado pelo CRM. 

 

A repercussão desta denúncia aumentou a pressão sobre o poder público e ficou mais difícil impedir novas visitações, possibilitando as reportagens de Hiram Firmino no “Estado de Minas” e o filme Em Nome da Razão, de Helvécio Ratton (ambos de 1979). Estes trabalhos deram condições políticas para a Luta Antimanicomial e para a organização da Reforma Psiquiátrica brasileira, que definiu novas diretrizes para a Saúde Mental, superando o modelo manicomial que perdurava desde a era Vargas.  Essa Reforma começou a se instituir no inicio da década de 1980 e tornou-se Projeto de Lei 3657 em 1989, proposta pelo Deputado Federal de Minas Gerais, Paulo Delgado (PT). A questão do transtorno mental passou a ser pensada não apenas do ponto de vista médico mas também sob a ótica dos direitos humanos, tema central nas discussões do país que escrevia então a sua nova Constituição.  A Reforma Psiquiátrica brasileira, que inspirou as diretrizes fortemente libertárias e igualitárias do SUS, é componente importante do esforço de redemocratização do país.

 

A Reforma preconiza que o tratamento do sofrimento psíquico e da dependência química devem contar com toda uma rede de atenção, que envolve profissionais de diversas áreas como a Psicologia, a Psiquiatria, Assistência Social e Terapia Ocupacional, entre outros, que devem discutir interdisciplinarmente o diagnóstico, a terapêutica e as estratégias para melhor atender o caso. O apoio, o diálogo e o acolhimento dos familiares são imprescindíveis para que o sujeito mantenha seus vínculos e interesses no meio social. As internações devem ser curtas e realizadas em hospitais gerais apenas nos períodos de crise e quando há risco de vida.  Há inúmeros dispositivos previstos para atender esta população (CAPS, CAPS-AD 24hs, CAPSi, Consultórios de Rua, leitos hospitalares para internações breves, entre outros) que visam manter ou recuperar os vínculos do sujeito com a família e o meio social, fatores indispensáveis para a terapêutica e para a construção da cidadania.  São dispositivos que visam tratar sem excluir, preservando a cidadania e os direitos dos portadores de transtorno mental.

 

As dificuldades na implantação e na consolidação deste programa vem sendo capitalizadas, no entanto, para justificar retrocessos e o retorno das práticas asilares. Este é o espírito da campanha midiática lançada recentemente com grande alarde com o mote “internação compulsória”. Trata-se de uma campanha que procura convencer pela mistificação, dando ao crack o estatuto de risco epidêmico e utilizando-se do medo e da angústia suscitados na população para justificar a internação como solução nova e eficaz.  Procura-se assim eclipsar todo o debate das décadas de 80-90, que levou à concepção das diretrizes universalistas do SUS, apresentando-as como inalcançáveis, mal fundamentadas ou mesmo “românticas”.  Campanhas deste tipo marcam o retorno repaginado do pensamento manicomial e exalam os mesmos ares eugênicos, fomentando o estigma e a ruptura dos laços sociais, acirrando a violência e a intolerância que já perpassam nossa sociedade. Muda a nomenclatura, mudam as instituições, mas retorna a mesma lógica excludente e manicomial que desqualifica o dependente químico e o portador de transtorno mental, afastando-os da comunidade e esgarçando seus vínculos já precários.

 

Vida Nua no Colônia

 

É preciso pensar a realidade do “Colônia” e de tantas outras instituições similares em sua dimensão política.  A análise daquela instituição não deve se restringir aos parâmetros técnicos, administrativos e econômicos que lhe deram sua configuração específica mas remeter-se à dimensão ética e política que a tornou possível.  É preciso pensar o “Colônia” como realidade biopolítica.

 

O conceito de biopolítica foi inicialmente proposto em 1977 por Michel Foucault em A História de Sexualidade. Em, Giorgio Agamben retoma essa proposição, realizando sua genealogia e remontando sua origem às formas de organização do poder soberano na Antiguidade.  Para ele, a história política do Ocidente é marcada pela distinção feita pelos gregos entre duas formas de existência: a zoe, a vida nua, que se referia ao fato simples da existência dos deuses, animais e homens, e a bios, a vida qualificada dos sujeitos da linguagem que se organizavam politicamente.  A esfera do poder soberano e da existência jurídica dizia respeito apenas à viabilização e regulação da bios (vida qualificada), mantendo clara a distinção entre a esfera pública e a organização doméstica, que incluía o cuidado com o corpo, a organização da vida cotidiana e a hierarquia familiar.

 

O direito romano arcaico manteve esta distinção mas previu um ato jurídico no qual a lei passava a incidir sobre a vida nua.  Isto ocorria no banimento – a pena prevista para certos crimes – na qual o réu perdia a dignidade jurídica, a cidadania e a vida qualificada (bios).  O banido se tornava “homo sacer” – aquele que podia ser morto impunemente mas não sacrificado, já que excluídos tanto da cidadania humana como da divina.  Isto não significa que eles passavam a viver em um (impossível) estado natural; a suspensão da lei não cria uma exterioridade absoluta em relação a ela, mas um limiar ou zona de indistinção no qual “exclusão e inclusão, exterior e interior, bios e zoe, direito e fato, entram em uma zona de indistinção irredutível” (AGAMBEN, 1998:9). Desse modo, a relação original da lei com a vida (zoe) não é sua aplicação, mas seu abandono (AGAMBEN, 1998:29).  O poder passa a incidir sobre a vida nua pela abertura deste espaço limiar entre fato e lei, onde não se pode mais distinguir interior e exterior da ordem jurídica.

 

Banir é o mesmo que decretar um ato de exceção pois implica na possibilidade legal do poder de suspender a ordem jurídica para enfrentar determinadas situações.  Agamben situa a origem da biopolítica neste paradoxo do poder soberano, que é ao mesmo tempo a garantia da lei e seu derivado, ou seja, que se submete à lei mas pode suspendê-la quando necessário. É por esta fresta que a zoe ao poucos se inscreve no âmbito do poder; os atos de exceção abrem limiares pelo qual o que está dentro é excluído e que está fora é incluído.  Zoe e bios, vida nua e vida qualificada vão se tornando indistintas.

 

A inclusão da vida nua na cena politica teve como ponto de inflexão o advento das democracias modernas a partir da Revolução Francesa, que colocou no centro do debate políticos o tema dos Direitos do Homem. Este momento, que gerou avanços em termos de igualdade, liberdade e justiça social também foi responsável pela inscrição crescente da vida no âmbito do Estado, propiciando ao poder soberano um novo ponto de ancoragem em substituição ao que perdia:

 

É quase como se, a partir de determinado momento, todo evento politicamente decisivo tivesse dois lados: os espaços, as liberdades e os direitos conquistados pelos indivíduos em seus conflitos com os poderes centrais sempre prepararam, simultaneamente, a inscrição tácita mas crescente das vidas individuais no âmbito da ordem do Estado, oferecendo assim uma nova e mais terrível fundação para o mesmo poder soberano do qual desejavam libertar-se.”* (AGAMBEN, 1998: 121).

 

Na modernidade, esta politização crescente da vida levou à construção dos Estados de Bem-Estar Social das democracias europeias contemporâneas mas também possibilitou os campos de concentração nazistas; afinal, o poder que decide sobre o valor da vida, decide também quando ela deixa de valer e pode ser eliminada sem que se cometa assassinato (AGAMBEN, 1998:139). A efetivação deste imenso projeto eugênico, entre tantos outros desde o século XIX, indica que na atualidade, não apenas o manejo da vida (do indivíduo, da população) se tornou o tema político central – como já antecipara Foucault – como também que exceção e regra, homo sacer e cidadão, fato e lei, vida privada e existência política, se tornaram indistintos. (AGAMBEN, 1998:170) Para Agamben, os campos podem ser considerados o paradigma do espaço político moderno (AGAMBEN, 1998:p.171) pois são a materialização do espaço biopolítico em sua forma mais pura e absoluta; neles, o poder incide sobre a vida sem qualquer mediação.

 

A identificação do “Colônia” com um campo de concentração nazista, feita por Basaglia em sua visita em 1979, revela aqui todo seu alcance.  Sua semelhança não se esgota na condições degradantes e cruéis dos internos; os dois espaços são estruturalmente idênticos:

 

(…) se a essência do campo consiste na materialização do estado de exceção e a subsequente criação de um espaço no qual a vida nua e a ordem jurídica entram em um limiar de indistinção, então temos de admitir que nos encontramos virtualmente na presença do campo toda vez que tal estrutura é criada, independentemente dos tipos de crime que ali são cometidos e de sua denominação e topografia específica”* (AGAMBEN, 1998:174)

 

Os muros do “Colônia” delimitaram um espaço de exceção no qual os novos banidos da cidade podiam ser mortos e não sacrificados.  Daí se depreende que o descaso com a vida e a violação recorrente dos direitos humanos dos internos, assim como em outras instituições manicomiais, não é acidental.  Ela decorre da própria lógica do biopoder que hierarquiza vidas, decidindo quais são irrelevantes.  Só restava aos internos contar com a empatia e a compaixão dos trabalhadores que ainda eram capazes de vê-los ou o refúgio na própria loucura.

 

Hoje vivemos a expansão dos limites de decisão do poder soberano sobre a vida, que está na mais “íntima simbiose não apenas com o jurista mas também com o médico, o cientista, o especialista e o padre”. (AGAMBEN 1998:122). A biopolítica normatiza nossas vidas indicando como devemos cuidar e regular nossos corpos e mentes, educar nossos filhos, sofrer, procriar e morrer.  Submetemo-nos à todo tipo de ingerência e normatização, que se confundem com formas de zelo e prevenção. Esta normatização da vida fomenta a proliferação de ideologias dessubjetivantes, como as que pretendem reduzir as escolhas fundamentais do sujeito ao hardware genético e as terapêuticas à prescrições medicamentosas. Esta redução do campo mental ao campo biomédico promete expurgar do mundo humano todo mistério e risco e o sujeito, vendo-se como efeito de determinações naturais, abre mão de sua autonomia, sempre incerta e angustiante.  Com isto ele se isenta, e isenta o campo social, de responderem sobre as formas de sofrimento da atualidade. Observa-se a mistificação das ameaças e dos dispositivos para enfrenta-las, fomentando na mesma medida o desalento e a esperança em sua superação pelo domínio técnico. Há apelos contínuos para que suportemos restrições à liberdade e à privacidade em nome da proteção, com o solapamento crescente da distinção entre vida publica e privada. Proliferam discursos que vinculam a preservação da paz à aceitação universal de determinado way of life,  sendo a guerra o mal necessário para corrigir formas de vida “atrasadas”.  A todo momento, são criados novos enclaves de exceção para armazenar e matar os desviantes: campos de refugiados, de concentração, de extermínio, instituições corretivas e manicomiais. A biopolítica é imediatamente uma tanatopolítica (AGAMBEN, 1998:122).

 

O intenso debate no interior do campo da Saúde Mental entre adeptos das abordagens subjetivantes, humanistas e inclusivas, em oposição aos defensores das terapêuticas medicamentosas e asilares, não se limita à diferenças técnicas mas dizem respeito à diferentes escolhas éticas e políticas no interior do campo biopolítico. O campo da saúde se tornou o espaço onde se dão os embates políticos mais decisivos na atualidade.  No campo da saúde mental setores religiosos, médicos, jurídicos e econômicos competem com profissionais da área para impor seus modelos junto ao poder. Aqueles que defendem as abordagens humanistas – que tem como compromisso ético a defesa e fomento da bios – precisam realizar alianças consistentes com profissionais de áreas afins, tais como a jurídica e a assistencial, que seja rigorosamente pautada pela defesa dos direitos humanos, de forma a fazer valer todas as intermediações possíveis entre o poder e a vida nua.

 

O Brasil é um país que se constituiu à base de um imenso contingente de homines sacri – os escravos – e seus descendentes ainda precisam lutar para fazer valer a cidadania plena a que tem direito. Somos uma sociedade profundamente injusta que sempre respondeu com opressão às reivindicações sociais das mulheres, negros, indígenas, homossexuais e outras minorias, mantendo a marginalização.  Muitos destes marginalizados habitaram o “Colônia” e outros tantos são enviados a cada dia aos novos campos que insistimos em criar. Nas últimas décadas houve a transição do poder patriarcal para a biopolítica, que trouxe para este novo espaço político as lutas e as contradições não superadas do modelo anterior. É preciso resistir à repetição sem fim desta lógica excludente, pois só há cidadania se ela for para todos – enquanto houver campo, estaremos todos vivendo num estado no qual a exceção se fez regra e a distinção entre cidadãos e banidos depende apenas da decisão do soberano e seus especialistas.

 

*As citações de Giorgio Agamben resultam de tradução livre a partir do inglês.

 

 

Bibliografia:

 

AGAMBEN, Giorgio (1995). Homo Sacer: Sovereign Power and Bare Life – Stanford: Stanford University Press, 1998.

 

ARBEX, Daniela., (2013). Holocausto Brasileiro São Paulo:  3ª Ed., Geração Editorial, 2013.

 

FOUCAULT, Michel(1977). História da Sexualidade I: A Vontade de Saber. Rio de Janeiro:  Graal, 1977.

 

 

Segue abaixo links de interesse:

 

http://www.crpsp.org.br/portal/midia/fiquedeolho_ver.aspx?id=653

 

http://www.ccs.saude.gov.br/vpc/reforma.html

 

http://osm.org.br/osm/comissao-de-direitos-humanos-do-cfp-participa-de-inspecao-em-hospitais-psiquiatricos-de-sorocaba-sp/

 

 

Vera Warchavchik é psicanalista, integrante do OIA – Observatório de Saúde Mental, Drogas e Direitos Humanos, membro do Departamento Formação em Psicanálise e docente do Curso Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae

Redação

4 Comentários

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  1. Palavras erradas

    É absurdo utilizar o termo genocídio para acontecimentos como o do hospício de Barbacena. Portadores de deficiência mental não formam um grupo religioso. racial, étnico ou nacional. Isto sem dizer que para a sua consumação é preciso que os atos sejam deliberadamente praticados com o intuito de exterminar as vítimas.

    Utilizar a palavra genocídio para rotular atos de maus tratos, descaso, insensibilidade e desumanidade dos responsáveis em situações como essa enfraquece o termo. Deixem-no para ser utilizado em casos nos quais as condutas dos agentes sejam literalmente genocidas, sob pena de ocorrer o enfraquecimento do repúdio, se e quando acontecerem novamente situações semelhantes às práticas nazistas ou episódios como no Sudão ou em Ruanda.

     

    1. Como pode achar que crimes

      Como pode achar que crimes desta natureza não podem ser tratados como genocídio, como se fosse um crime menor? São crimes repugnantes que devem ser investigados sim e estes criminosos deveriam ser investigados e punidos com rigor de corte marcial. Não podemos nos conformar com crimes desta natureza como se fossem crimes menores.

      1. Porque existe um dicionário

        Porque existe um dicionário que define a palavra genocídio.

        É uma palavra muito especial que não pode ser utilizada assim a seu bel prazer. 

        Na segunda guerra mundial morreram 25 milhões de russos e a palavra genocídio nunca foi utilidada. Sabe porque? Porque não foi genocídio, …porque existe uma definião para a palavra que não se enquadrava no que aconteceu alí naquele momento histórico.

        Já os 6 milhões de judeus mortos foi um genocídio.

         

        Eu acredito que a autora tenha utilizado esta palavra para causar sensacionalismo e assim obter vantagens indevidas para sua história.

        Isso não quer dizer que a história não seja importante ou que tenha sido mal contata mas esta palavra específica não faz parte da história e sim da estória.

  2. Vera, prazer ler você aqui no

    Vera, prazer ler você aqui no GGN.  Desculpa mas não concordo Jorge……Entendo quando vc posta o significado de  genocídio mas, indo um pouco além…podemos entender genocídio como um  assassinato  em massa de determinada Etnia….Uma limpeza étnica….onde  a etnia, o grupo, no caso, seriam os doentes mentais… Um lugar onde morreriam 16 pessoas por dia, resultado dos maus tratos, confinamento etc….acho que se encaixa perfeitamente sim. .. retiravam da sociedade, pessoas incapazes  e as deixavam a sua própria sorte…..E a sorte, no caso em tela,  seria o resultado morte….pois viver desta forma, é humanamente impossível.  

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