Cultura do justiçamento legitima violência policial, por Marcelo Freixo

Jornal GGN – Em sua coluna na Folha de S. Paulo, o deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL-RJ) relata as atrocidades cometidas por policiais de uma UPP contra um grupo de jovens em Santa Teresa, no Rio de Janeiro, na manhã de natal. Os jovens foram agredidos, tiveram seus corpos queimados e foram obrigados a fazer sexo oral uns nos outros. 

Para Freixo, não é possível ver o crime como um evento isolado, “fruto da maldade dos policiais que o cometeram”. O deputado acredita que a cultura do justiçamento incentiva e legitima ações violentas, e a sociedade tolera e muitas vezes aplaude ilegalidades cometidas por policiais. Leia mais abaixo:

Da Folha

Donos da carne

Marcelo Freixo

A manhã de Natal foi como uma Sexta-feira da Paixão para um grupo de seis amigos em Santa Teresa, no Rio de Janeiro.

Eles voltavam para casa de uma festa na favela Santo Amaro quando foram abordados por um grupo de policiais da UPP Coroa, Fallet e Fogueteiro. Na rua Prefeito João Felipe, sofreram sua via crucis.

Os jovens foram agredidos, tiveram seus corpos queimados com isqueiro e faca quente, foram obrigados a fazer sexo oral uns nos outros e ainda tiveram seus pertences roubados. No dia em que se comemora o nascimento de Cristo, eles sentiram a crueldade do nosso espírito romano.

Certa vez uma jornalista me fez uma pergunta que pode parecer tola à primeira vista, mas não é: o que leva um policial a praticar uma atrocidade dessa?

Quem achou o questionamento pueril provavelmente responderia que o crime é fruto da maldade dos policiais que o cometeram. Como se ele pudesse ser explicado somente do ponto de vista do indivíduo.

Não é bem assim. Tratar o problema como uma manifestação individual nos leva a ver o crime como um evento isolado, mero desvio, o que nos impede de entender a complexidade da violência do Estado.

Os governos inclusive jogam politicamente com essa crença para se eximir da responsabilidade sobre os delitos praticados por agentes da política de segurança conduzida por eles.

Ao mencionar o nosso espírito romano, faço uma provocação sobre o papel que a cultura do justiçamento exerce no incentivo e legitimação de práticas violentas.

Toleramos, quando não aplaudimos, ilegalidades cometidas por policiais desde que elas se dirijam àqueles que nos inspiram medo ou menosprezo, seja por os considerarmos inferiores, bárbaros ou simplesmente por serem criaturas muito distantes da nossa realidade, quase incompreensíveis.

Ao não reconhecer em alguém a dignidade e humanidade que atribuo a mim e aos meus, ao não tratá-lo como um igual em direitos, rompo eticamente com ele e o grupo a que pertence.

Essa ruptura não é arbitrária. Ela é produzida pelas injustiças e contradições da sociedade que construímos. Não por acaso, as vítimas de Santa Teresa, como tantas outras, são moradoras de favela.

Volto à pergunta: por que policiais torturaram os rapazes? Ora, por que não o fariam? Se damos aos agentes de segurança o poder de decidir sobre a vida e a morte em nossos tribunais de rua, por que eles não exerceriam o arbítrio sobre os corpos? Se dispõem da vida, usufruirão da carne.

E a carne mais barata do mercado é a carne negra, pobre, exposta nas periferias ao sadismo público. Como dizia o filósofo Michel Foucault, o controle social dos indivíduos é exercido principalmente sobre seus corpos. 

Redação

9 Comentários

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  1. Violência policial: Política de Estado e de Governos,

    A violência de classes no Brasil é um fenômeno transclassista. Não há nenhuma contradição na afirmação.

    A legitimação da violência empregada sistematicamente pelo Estado, simbólica ou fisicamente, contra os mais pobres é aceita e praticada de cima a baixo na pirâmide social, por motivos diferentes (é claro), e tem larga repercussão em nosso cotidiano.

    Na favela é lógica da sobrevivência e dos interesses de classe dentro da própria classe.

    No asfalto, é a lógica do combate a pobreza eliminando os pobres.

    Fundada em 1808 (no RJ) como guarda pretoriana da recém-chegada Corte Portuguesa, que se horrorizou com tantos negros andando pelas ruas, e seu potencial explosivo, diretamente proporcional a violência escravagista, nem a Polícia, nem o Estado e tampouco a sociedade, livraram-se dos cacoetes daquela época.

    Trocamos as senzalas pelos quartinhos de empregada, o chicote pelo salário de fome, o tronco pelas cadeias e pior: Ao menos enquanto eram coisas, os negros eram mais preservados.

    Na lógica da modernização incivilizada, quando deixou de ser ativo (escravo), virou descartável.

    Nos EUA, a institucionalização da violência estatal se dá no aumento brutal da população carcerária, onde os indesejáveis foram segregados a ordem de 340.000 (1980) para 2.000.000 (2000).

    Aqui, mal copiando, encarceramos muitos, mas a sobra a gente elimina (70% dos 50 mil mortos/ano por PAF*).

     

    (*) Projetis de arma de fogo.

    1. Crime e luta de classes

      Desde o fracasso da luta armada, que não teve o apoio dos trabalhadores, tem sido observada essa propensão em dar uma leitura de luta de classes ao fenômeno da criminalidade. Trata-se de uma conspiração da malvada elite para eliminar pobres e negros, dizem. Só falta explicar porque a maioria dos linchadores também são pobres das periferias, porque a maioria dos policiais que batem em pobres e negros também são pobres e negros…

      A violência, no Brasil, é fenômeno quase totalmente circunscrito às periferias, as classes alta e média são ordeiras e avessas à violência. Pobres e negros são diariamente chacinados por outros pobres e negros em guerras entre quadrilhas, eles não são mortos por membros das classes altas; ainda que episódios isolados possam acontecer por obra de “justiceiros”, tais episódios são nada se comparado ao que acontece nas periferias, a diferença é que a mídia dá destaque e vem a Sherazade falar besteira. Quem conhece as perifeiras sabe que a violência, ali, permeia todas as relações sociais, entre familiares, vizinhos, colegas de escola, namorados, etc. O garoto lá começa a vida apanhando dos pais, depois vai apanhar na escola, depois briga com o vizinho, e termina apanhando da polícia; a probabilidade dele um dia apanhar de um garotão da classe média é a mesma de cair um meteoro sobre sua cabeça.

      Em tempo: o brutal aumento da população carcerária nos EUA foi acompanhado por uma brutal diminuição dos índices de criminalidade, sobretudo em grandes cidades que poucas décadas atrás eram notoriamente violentas, como Nova York. Por que não seguimos o exemplo que dá certo?

      1. Caro Pedro,
        Na pressa de

        Caro Pedro,

        Na pressa de expor seus “argumentos” faltou-lhe o cuidado necessário de ler o comentário todo. Isso revela um desrespeito à interlocução, mas vamos à vaca fria, porque te responder só faz sentido para falar “através de você”, e não para você:

        A explicação para o fato da violência ser empregada pelos pobres está no texto e no meu comentário, quando dissemos que a violência é fenômeno transclassista (de todas as classes), que a expressam por vários motivos e interesses, o que, via de regra, acaba por dar o “mandato” violento aos policiais para agir como agem.

        Outro erro crasso: Restringir a violência às classes pobres, essa nem merece resposta, mas eu insisto:

        A violência doméstica é fato que atinge mulheres de TODAS as classes, embora a hipocrisia e os aparatos de dissimulação funcionem melhor na riqueza, porque no morro, parede com parede de barraco, a “privacidade da violência” é impraticável

        Outra coisa óbvia, sendo o tráfico de drogas uma atividade de escala global e com sofisticação de ferramentas de transferências de valores, lavagem, e logística (aviões, helicópteros, veículos, barcos, etc), imaginar que as classes altas e médias estejam alheias a esse processo é tolice das grossas. Assim como imaginar que os barões da droga (como aquele moço mineiro do helicóptero) sejam  menos culpados pela violência que o “fantasma do morro” que atua como seu preposto final.

        A violência (inclusive sexual) contra crianças não é circunscrita a periferia. Sabemos até que a “santidade” das Igrejas Católicas abrigam esse flagelo.

        Por último: Não houve diminuição brutal correspondente dos índices de criminalidade aos de encarceramento. Isso é uma afirmação falsa, assim como é falsa a noção que as execuções inibem crimes violentos.

        De 1980 até 2000, os EUA cresceram de 348.000(repito) para 2.000.000. Não há decréscimo correspondente nos crimes violentos, até porque, a esmagadora maioria dos presos é de pequenos traficantes que foram presos por pequenas ofensas não-violentas.

        Os índices de homicídios na maioria dos casos continuou estável, e sem justificar tamanho aumento de prisões.

        Ou seja, prender virou um negócio (lá boa parte do sistema é privado) economicamente e politicamente lucrativo, porque dá ao governante (como aqui) o discurso da “dureza contra o crime”, para agradar tolos como você.

        Ainda assim, mesmo que abriguemos sua tese (a de que mais prisões levam a menos crimes) é preciso contextualizar os EUA e o Brasil, um arremedo mal-feito das teses porcalhonas do sisteme jurídico-penal estadunidense.

        O que melhora(diminui) os índices de criminalidade é um conjunto complexo de variáveis, e nunca apenas uma delas (sistema penitenciário) pode ser levado como fator preponderante.

        O crime é multifacetado, transclassista e multiconsequencial, logo, imaginar dicotomias ou “velhas novidades simplórias” não ajuda, e é o que tem sido feito, inclusive pelo PT, para minha decepção.

        Basta dizer que a então pacífica Detroit tem índices de homicídio doloso/mil habitantes/ano semelhantes aos das capitais brasileiras, e essa deterioração se deu desde o declínio da GM, FORD e do parque automobolístico até então lá sediado.

        No Brasil, a explosão de segregação nas prisões só criou facções altamente especializadas e enaraizadas no sistema penal-policial-judiciário, que comandam ações de dentro para fora.

         

        1. Dizer isso é ser redundante

          Dizer que a violência é fenômeno transclassista é ser redundante: qualquer um sabe que há violência em todas as classes sociais. O que é pertinente, para quem realmente deseja compreender o fenômeno, é medir o grau de violência em cada classe social. E qualquer pessoa com um mínimo de vivência sabe que a violência está muito mais impregnada no dia-a-dia de uma periferia do que em um condomínio de classe alta. O fato de existirem grandes empresários do crime não permite concluir nada: esses grandes chefões quase sempre vieram das classes baixas e enriqueceram com a atividade criminosa, sem contudo assimilar os usos e costumes da classe à qual ascenderam.

          Desconheço estatísticas globais quanto à criminalidade nos EUA, mas conheço bem os exemplos das grandes cidades onde foi foram aplicadas as políticas conhecidas como “tolerância zero”: em todas elas houve uma significativa redução da criminalidade, como prova a própria divulgação do conceito de tolerância zero. Prendendo-se pequenos traficantes, os grande traficantes ficam sem mão-de-obra. Entretanto, concordo com você quando afirma que o fenômeno do crime é complexo que envolve muitas variáveis, e atacar apenas uma delas não resolve o problema. O que você sugere, então, para combater o crime?

  2. Após Sílvio Santos, aos

    Após Sílvio Santos, aos domingos, vem o progrma de Cabrini. No último, o assunto foi exatamente sobre os justiceiros. O repórter, inclusive, entrevistas os justiceiros, jovens saradões, que praticaram aquela coisa horrível contra o ladrãozinho, depois amarrado ao poste, motivo para Sheherazade, do mesmo SBT de Cabrini, dizer que quem era contra que levasse o jovem pra casa. É assim que agem as televisões brasileiras: morde e assopra. O programa de Cabrini, tão sensacionalista como tantos das televisões abertas, perde toda a credibilidade ao dar voz a uma gangue de justiceiros, que deveriam estar presos por acharem que podem, sim, assumir o lugar das autoridades policias. Eles agem entre as praias de Botafogo e Flamengo, intimidando os mendigos, obrigados a provarem que são pessoas de paz. Não tive estômago pra ver toda a reportagem. 

    No outro domingo, foi a vez de entrevistar bispo Macedo. Pra quem sabe das coisas, entende que o ladrão Macedo, que não rouba apenas bens materias, mas também a alma dos seus fieis, anda de mãos dada com o dono do SBT. Sabemos que eles estão afinados, um pouco pela família de Sílvio – toda ela evangélica -, e também por estarem sinalizando algum negócio empresarial. 

    Toda a entrevista do bispo de bosta foi manipulada, programada, talvez até paga. E, pra variar, o que se vê é um verdadeiro imbecil falando de Bíblia e Deus, sem o menor conhecimento, porque ele é, sem dúvida, um baita semi-analfa, incapaz de ler uma manchete grande de jornal. Interessante vê-lo dizer que foi funcionário da LOTERJ, tendo ascendido ao cargo de tesoureiro. Imagine! O mesmo que entregar o galinheiro à raposa. Esse é o currículo do sujeito. Lá pelas tantas, ele culpa sua prisão à igreja católica e à Globo. Claro! Quem mandou chutarem a imagem da N. S. Aparecida pro mundo todo ver? A Globo, que tem arquivo guardado pra ninguém botar defeito, fez a sua parte: apresentou um vídeo, até hoje rodando na Internet, intitulado BISPO MACEDO ENSINANDO OS PASTORES A ROUBAR. Tem até outros muit instigantes. Por exemplo: a filha de Macedo fazendo xacota de uma fiel; ou, Macedo dizendo que toma cerveja, toma vinho, embora seja isso proibido aos fieis de suas igrejas. 

    Que nojo!

  3. Algumas besteiras e algumas coisas certas

    O artigo repete certos esquematismos, como a insistência de dar uma leitura de luta de classes e racismo ao fenômeno da criminalidade, mas também podem ser lidas algumas coisas pertinentes nos comentários. Uma delas é quanto à dicotomia policial X soldado. São coisas distintas, realmente, mas que motivo há para estranhar que a formação do policial seja semelhante à do soldado, se os bandidos dos morros usam armamento pesado, metralhadoras, lançadores de foguetes capazes de derrubar helicópteros, usam táticas militares e até chamam os membros da quadrilha de soldados?

    Se a polícia for desmilitarizada, como querem alguns sonhadores, que outra solução haverá para enfrentar esse aparato todo dos criminosos dos morros, abastecidos com armamento de guerra? Chamar o exército, claro! E aí nem se poderá reclamar do número de mortos, pois soldado do exército é treinado para matar, e não para prender.

    Mas alguém aí tocou em um ponto interessante: o policial bate, tortura e mata por pura frustração, pois sabe que o bandidinho preso, se depender da frouxa legislação brasileira, logo estará de volta às ruas, com certeza doido para se vingar de quem o prendeu. Se o policial soubesse que o preso que ele entrega à delegacia vai ficar um tempo razoável atrás das grades, ele apenas cumpriria o seu dever burocraticamente, sem exageros, como qualquer funcionário público. Muita gente culpa a polícia por tudo o que há de errado no combate ao crime, mas se esquecem que a polícia é mal equipada, mal treinada, mal paga e tem que fazer milagres. A verdadeira raiz do problema não está na polícia, mas na legislação penal, que é frouxa, com penas brandas e muitos recursos. É a legislação penal que tem que ser reformada, de modo a aumentar as penas. Quando isso for feito, verão como a violência policial vai diminuir consideravelmente.

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