FENED - Federação Nacional das e dos Estudantes de Direito
A Federação Nacional de Estudantes de Direito - FENED é a entidade central do Movimento Estudantil de Direito e visa representar e organizar as/os estudantes de Direito do Brasil.
[email protected]

Segurança pública: um olhar para além do punitivismo e do populismo penal, por Tatiana Badaró e Pedro Mendes

Esse contexto, associado ao sensacionalismo punitivista, cega a população para os verdadeiros inimigos do povo

(Fernando Frazão/Agência Brasil)

da FENED – Federação Nacional das e dos Estudantes de Direito

Segurança pública: um olhar para além do punitivismo e do populismo penal

por Tatiana Badaró e Pedro Mendes

É notório o problema crônico da segurança pública no país e, consequentemente, a necessidade de compreender a segurança pública para além dos momentos agudos em que o estado de anomia social perene transborda e atinge a classe média brasileira. Isso torna evidente a importância de entender que a população periférica convive cotidianamente com o crime organizado, devendo-se destacar que a grande maioria da população se encontra nestas áreas, e, além disso, os agentes de estado que representam o militarismo e a intervenção bélica no quadro de segurança pública possuem o treinamento e conduta que reproduzem o paradigma de criminalização da pobreza e dos grupos marginalizados.

Os contornos desse processo configuram as políticas de segurança pública no Brasil, portanto, normalizando a resposta de intervenção física, muitas vezes brutal, direcionado a indivíduos que cometem crimes patrimoniais, tendo resposta assimétrica, já que inúmeras vezes são punidos com a pena da própria vida. Diante disso, certamente nos cabe questionar “qual o bem a ser tutelado como prioridade do poder público: a vida ou o patrimônio?”.

E, caso seja considerado o patrimônio como o principal direito tutelado pela mão interventora do Estado, a qual chamamos de segurança pública, há de se perguntar se são as pessoas das periferias que cometem os crimes patrimoniais mais graves, ou se esses são cometidos por indivíduos de colarinho branco.

Com efeito, conforme defendem Alessandro Baratta e Francisco Bissoli Filho através de uma perspectiva que busca analisar aspectos teóricos sobre os princípios do direito penal mínimo, a resposta a esse questionamento no âmbito da discussão sobre a efetividade da  “justiça penal’’ deve entender os direitos humanos enquanto princípio que impõe limites à lei penal. Deste modo, ao relacionarmos os indicadores que demonstram o pertencimento da “clientela’’ do sistema penal a classes sociais “mais baixas’’, por exemplo, podemos não somente depreender que o funcionamento desse sistema reflete e produz situações de desigualdades presentes em uma sociedade, como também podemos compreender a origem estrutural da seletividade penal.

A supracitada seletividade penal opera no âmago do status quo e coloca o povo negro e  periférico como inimigo público, em detrimento da realidade violenta de uma sociedade estruturada por princípios coloniais; atrelados à burocracia europeia, corrupção e abuso empresarial do trabalho.

Todo esse contexto, associado ao sensacionalismo punitivista, cega a população para os verdadeiros inimigos do povo, produzindo, assim, um povo que entende a si mesmo como inimigo. Em consequência, a solução adotada é o massacre da própria comunidade  – genocídio produzido pela segurança pública -, refletido no populismo penal que move políticos de esquerda e direita a assumirem um tom absolutamente punitivista na propositura de políticas de segurança pública.

Em adição, cabe considerar que a questão da segurança pública no Brasil é um tema complexo, merecendo a análise sob a perspectiva crítica de intelectuais como Florestan Fernandes. Nas últimas décadas, a crescente violência em cidades como Salvador-BA tornou-se um problema que exige uma compreensão mais profunda das raízes do problema, considerando fatores como a desigualdade social e o tráfico de drogas.

Ecoando esta perspectiva, Munanga, respeitado antropólogo e professor, discute o aumento da violência no Brasil  ao salientar que a segregação racial ainda persiste em nossa sociedade, com comunidades negras sendo as mais afetadas pela violência. Isso não é coincidência; é o resultado de uma história de discriminação e exclusão que tem impactos duradouros na segurança pública.

A chamada “guerra ao tráfico” é exemplo notório dessa problemática. Enquanto o tráfico de drogas é, de fato, uma questão séria que envolve saúde pública e desigualdade social, a abordagem centrada no combate militarizado tem frequentemente implicado em violações dos direitos humanos e no agravamento da violência. Em vez de abordar as causas subjacentes do tráfico, como a falta de oportunidades econômicas e a educação precária, opta-se por perpetuar o ciclo de violência a fim de satisfazer a um desejo punitivista com resultados eleitoreiros.

A abordagem em debate revela a realidade perturbadora de como essa política se traduz em um genocídio negro. A política antidrogas tem sido historicamente aplicada de maneira desproporcional sobre comunidades negras, sobretudo homens negros e periféricos, resultando em altas taxas de prisões, encarceramento em massa e mortes que afetam de maneira esmagadora este grupo social.

Em contraste com tudo que foi exposto e se testemunha socialmente, a boa aplicação do direito exige que todas as políticas sejam implementadas de forma a garantir igualdade e não discriminação, independentemente da raça, gênero ou classe. No entanto, a “guerra ao tráfico” é um exemplo de como as políticas de segurança pública frequentemente perpetuam o racismo sistêmico. Essa abordagem resulta em prisões arbitrárias, perfilamento racial aos moldes do darwinismo social eugênico, uso excessivo da força e, como dito, impacto desigual nas comunidades negras.

Para combater esse genocídio negro, é essencial que o direito tenha, antes de tudo, um viés antidiscriminatório; o que envolve a revisão crítica das políticas antidrogas, a implementação de medidas que reduzam a criminalização de usuários não violentos, a promoção de reformas no sistema de justiça criminal e a criação de oportunidades educacionais e econômicas nas comunidades marginalizadas.

Pensando sobre a crescente violência em Salvador e em todo o Brasil, é crucial analisar o contexto sociopolítico e econômico. A falta de acesso a oportunidades educacionais e emprego digno, juntamente com a desigualdade de renda, contribui para o ambiente propício à criminalidade.

Em 2023, a situação da segurança pública em Salvador continua a escalar de modo exponencial, com um cenário de estatísticas que demanda análise crítica, a demonstrar que a cidade enfrenta questões de violência e criminalidade que exigem uma abordagem cuidadosa, com foco na atuação policial.

Salvador e RMS já registraram 39 chacinas em 2023, com 159 mortes em 2023, conforme indica matéria do Correio da Bahia. As estatísticas de criminalidade são preocupantes, com índices de homicídios e crimes violentos que ainda demandam atenção significativa. No entanto, é essencial analisar esses números com uma compreensão mais ampla do contexto. É crucial reconhecer que as causas da violência em Salvador, assim como em outras cidades, são multifacetadas e incluem fatores como desigualdade econômica, acesso limitado à educação e ao emprego, além de problemas históricos de segregação racial e desigualdades sociais.

A atuação policial é uma parte fundamental dessa equação. A abordagem das forças de segurança em Salvador deve ser examinada quanto à sua eficácia na redução da criminalidade, bem como à proteção dos direitos e da integridade da população. Isso requer uma análise crítica das práticas policiais, incluindo o uso de força, abuso de poder e respeito aos direitos humanos.

Para começar a pensar medidas de diminuição do genocídio que hoje caracteriza a ação policial na Bahia é fundamental que as políticas de segurança pública no Estado sejam orientadas por uma abordagem (livre de preconceitos) preconceituosa e que não esteja voltada à produção da morte do seu povo. Isso envolve investimentos em prevenção da criminalidade, com a criação de oportunidades econômicas, programas educacionais e políticas sociais que ataquem as causas subjacentes da violência. Além disso, é crucial que haja uma revisão das práticas policiais, garantindo que estejam alinhadas com os princípios de direitos humanos e igualdade.

O problema agudo da segurança pública na Bahia, que atualmente tem se expressado no envolvimento de  facções criminosas em conflitos que ocorreram recentemente, em Salvador, no Bairro da Federação, na região do Alto das Pombas, e no bairro Calabar, embora tenham sido posteriormente suprimidos pela ação da segurança pública, reflete a existência de organizações criminosas, cujo comando funciona até mesmo dentro de presídios, cuja centralidade estrutural advém de estados como Rio de Janeiro e São Paulo. E tudo isso demonstra a fragilidade do encarceramento em massa no tocante à redução da criminalidade.

Assim, em que pese deva-se atribuir ao Governo da Bahia a responsabilidade quanto ao comando da atuação policial no âmbito regional, faz-se importante ainda uma análise que considere a necessidade de uma atuação coordenada, com repercussão nacional, que envolva alternativas ao problema crônico da segurança pública para além das disposições que estão ao alcance da atuação burocrática de autoridades políticas específicas.

E sendo assim, a formulação de uma política nacional de segurança pública que tenha por objetivo – além da proteção ao patrimônio – a  proteção do direito à vida e a promoção do direito à cidadania, torna-se questão central dessa problemática. Em síntese, portanto, o enfrentamento ao genocídio negro e às praticas discriminatórias que interferem na eficácia das políticas de segurança pública é um processo fundamental para a garantia da igualdade de direitos que deve caracterizar uma sociedade democrática.

Referências

BARATTA, Alessandro; BISSOLI FILHO, Francisco. Princípios do Direito Penal Mínimo. Santa Catarina: Habitus, 2019.

CORREIO DA BAHIA. Salvador e RMS já registram 39 chacinas em 2023. Disponível em https://www.correio24horas.com.br/minha-bahia/salvador-e-rms-ja-registram-39-chacinas-em-2023-com-159-mortes-1023. Acesso em 17 de out 2023.

DIAS MACHADO, Carlos Eduardo. Juventude negra e segurança pública. Portal Geledés. Disponível em  https://www.geledes.org.br/juventude-negra-e-seguranca-publica Acesso em 19 de out 2023.

ESTADO DE MINAS. IBGE: ¾ da população urbana não tem boas condiçoes de vida nas cidades. Disponível em https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2017/12/20/interna_nacional,925872/ibge-3-4-da-populacao-urbana-nao-tem-boas-condicoes-de-vida-nas-cidad.shtml Acesso em 19 d eout 2023.

FERNANDES, Florestan. Sociedade de classes e subdesenvolvimento. São Paulo: Global, 2008.

FOLHA DE SÃO PAULO. Segurança pública e genocídio negro no Brasil. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2019/05/seguranca-publica-e-genocidio-negro-no-brasil.shtml Acesso em 19 de out 2023.

FÓRUM. Quase um terço dos brasileiros vive nas periferias urbanas. Disponível em https://revistaforum.com.br/brasil/2014/1/21/quase-um-tero-dos-brasileiros-vive-nas-periferias-urbanas-8444.html Acesso em 17 de out 2023.

G1 BAHIA. Com moradores deixando casas, tiroteios entre facções, mortes e confronto policial, bairros de Salvador são marcados pela violência. Disponível em https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2023/09/07/com-moradores-deixando-casas-tiroteios-entre-faccoes-mortes-e-confronto-policial-bairros-de-salvador-sao-marcados-pela-violencia.ghtml Acesso em 19 de out 2023.

MARTINS DIAS, Gleidson Renato. Da necessidade de um novo paradigma para a segurança pública. Disponível em https://www.geledes.org.br/da-necessidade-de-um-novo-paradigma-para-a-seguranca-publica-no-brasil/.

MUNANGA, Kabengele. Negritude: usos e sentidos. 2a ed. São Paulo: Ática, 1998.


Tatiana Badaró – Ativista Social. Pós-doutora em Educação (UFBA) em cotutoria com Sociologia Criminal (Alberta University). Doutora em Educação (UFBA). Mestre em Desenvolvimento Humano e Responsabilidade Social (FVC). Consultora de estratégias em casos de abusos em meios religiosos. Voluntária na 1ª Promotoria de Direitos Humanos do MPBA. Graduanda em Direito (UFBA). Diretora da Coordenação Jurídica da Clínica de Direitos Humanos da UFBA (CDHUFBA). Fundadora e Diretora Geral do Observatório Brasileiro de Influência Indevida, Movimentos Extremistas e Cultos (FACED/UFBA). Membro do Comitê Científico e de Pesquisa da International Cultic Studies Association (ICSA). Revisora do International Journal of Coercion, Abuse, and Manipulation (IJCAM).

Pedro Mendes – Militante do Movimento Negro Unificado (MNU). Diretor de Direitos Humanos da União dos Estudantes da Bahia (UEB). Coordenador de Assistência Estudantil do Diretório Central de Estudantes da UFBA (DCE-UFBA). Graduando em Direito (UFBA). Integrante da Clínica de Direitos Humanos da UFBA (CDHUFBA). Membro colaborador da Comissão de Promoção da Igualdade Racial da OAB/BA (CPIR-OAB).

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador