Estatuto da Segurança Privada – um primeiro olhar crítico
por Élder Ximenes Filho e Pedro Chê
O Policiais Antifascismo e o Coletivo por Um Ministério Público Transformador são entidades sem fins lucrativos, de âmbito nacional, que reúnem profissionais das duas carreiras com preocupações humanistas, progressistas e alinhadas aos valores e garantias da Constituição Federal. São antipunitivistas e garantistas dos Direitos Humanos. Buscam, em suas atuações políticas e técnicas, mostrar rumos e alternativas aos discursos e práticas violentas e meramente reativas nas políticas de segurança – as quais mantém o status quo em nossa sociedade amedrontada e manipulada.
Com isto em mente, juntamo-nos para fazer um breve comentário1 sobre o novo Estatuto da Segurança Privada – com destaque para alguns riscos para os quais devem atentar a sociedade e os agentes públicos.
A nova Lei 14.967, publicada em 09 de setembro deste ano vem regular muito amplamente a atividade econômica da Segurança Privada, passados quase quarenta anos da anterior Lei 7.102/1983. Vale lembrar que o inicial Projeto cuidava apenas do piso salarial da categoria dos trabalhadores em segurança privada, sendo, ao final das discussões, substituído pela atual versão, que obteve ampla maioria na votação congressual. Há um interesse político claro em tratar de uma vasta categoria profissional em crescimento, bem como da multibilionária atividade empresarial. Conforme a Federação Nacional das Empresas de Segurança e Transporte (Fenavist) o setor movimentou em 2021 o montante de R$ 171 bilhões. Em 2022 as despesas chegaram a 1,7% do PIB, contando apenas o que pessoas jurídicas gastam diretamente com segurança, segundo reportagem do Estadão2. Segundo o Anuário Brasileiro em Segurança Pública3, em 2022 eram 1.096.398 seguranças e vigilantes – quase uma vez e meia o número de trabalhadores na segurança pública (policiais) e cinco vezes o número de militares da ativa no exército4.
O gigantismo econômico precisa ser analisado sob uma correta óptica. Por mais relevante que seja, a atividade de segurança não redunda em aumento da produção nacional. As riquezas são protegidas, não criadas. Se por um lado já compromete uma fatia importante do orçamento das famílias e das empresas, também emprega outros tantos brasileiros e brasileiras. Ocorre que, estrategicamente, a luta da sociedade organizada, em médio-longo prazo, deve ser pela melhoria da segurança pública. Isto causará a diminuição da importância deste setor e o deslocamento da respectiva mão de obra para setores mais condizentes com o nosso desenvolvimento nacional e social. Obviamente isto vai contra os interesses econômicos imediatos do empresariado que expandem seus negócios ao passo que o país vá se tornando mais inseguro.
O novo texto unifica parcialmente diversos dispositivos que já dispunham indiretamente sobre a atividade e altera outras normas independentes, por exemplo: o Estatuto do Desarmamento, as Leis do Cofins e do PIS/PASEP, normas trabalhistas, a Lei para repressão uniforme aos crimes de repercussão interestadual e internacional (atribuição da Polícia Federal investigar os casos que envolverem firmas de segurança e transporte de valores). Foi alterado também o próprio Código Penal, com aumento de penas para os crimes contra o patrimônio que envolvam serviços de segurança privada, como furtos ou roubos contra transportadoras ou bancos e contra as próprias empresas de segurança, por exemplo (art. 183-A). Chama a atenção que as elevações de penas chegam até o dobro, o que deve ser visto com atenção, para não incentivar o punitivismo populista descolado das constatações científicas e da prática jurídica: o principal não é o tamanho da pena, mas a eficiência nas investigações e a prevenção em geral, pela integração de todas as políticas públicas que conduzem a uma sociedade mais solidária e com alternativas de futuro para a juventude.
Como na Lei anterior, além da vigilância, a principal ênfase está na proteção de empresas de transporte de valores e de instituições financeiras (bancos) – cuja segurança passa a ser “matéria de interesse nacional” (art. 1º, parágrafo único). Aparentemente foi um exagero do legislador, com laivos moralistas e alarmistas. Identifica-se aqui uma possível composição entre uma política securitária e uma tendência ao direito penal máximo. De todo modo, serve para ressaltar a importância de uma atividade que é visada pelas organizações criminosas em âmbito nacional – cujo enfrentamento precisa ocorrer com coordenação a partir do plano federal.
No caso da vigilância, ampliam-se os campos de atuação autorizados, especificando novos nichos de mercado (tipos diferentes de vigilância conforme a atividade, inclusive eventos públicos) ou simplesmente regulando atividades exercidas clandestinamente. Neste último ponto, teoricamente pode incentivar a criação de novas empresas de segurança de menor porte, por exemplo, em municípios menores ou em grandes condomínios (art 2º), em lugar da contratação informal de “vigias” ou “inspetores de quarteirão”.
Uma omissão gravíssima da Lei foi não buscar enfrentar o problema da notória e maciça presença de policiais da ativa como empregados ou proprietários de fato. Mecanismos específicos de controle, inclusive com cruzamento de dados seriam muito úteis.
O já citado Anuário Brasileiro de Segurança Pública5 reconhece que:
A complacência histórica com o bico policial acabou por convertê-lo em uma política informal de compensação aos baixos salários pagos a muitos profissionais de segurança pública. A reversão desta situação depende de políticas de valorização das carreiras dos agentes de segurança pública; da alteração das escalas de trabalho que criam condições propícias para o segundo emprego.
Some-se a também notória constatação de que milícias infiltradas de policiais da ativa habitualmente praticam extorsões de comerciantes nas comunidades brasileiras – exatamente o mesmo nicho econômico da atividade da segurança privada lícita. A fiscalização precisa ser constante e eficiente para evitar a fraudulenta “legalização” de atividades do crime organizado.
Um ponto positivo foi que a norma atual não apenas elevou as sanções (multas) às empresas que descumpram os requisitos de funcionamento, mas fortalece a fiscalização, que continua a cargo da Polícia Federal. Foram criados novos mecanismos e formalidades para fiscalização e, principalmente, supervisão. Isto incentiva a profissionalização do setor e sua credibilidade. Um dos requisitos necessários é a comprovação da origem lícita do capital investido (art. 19, inc. V). Este último ponto atende à legislação que combate o crime organizado, terrorismo e tráfico de entorpecentes buscando-lhes o que mais importa: os ativos financeiros.
O art. 3º, de modo louvável, fala que a atividade deverá obedecer os “princípios da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e do interesse público e as disposições que regulam as relações de trabalho.”
Também positiva foi a previsão de garantias para os profissionais trabalhadores no setor, no âmbito trabalhista. Foram melhor regulados pontos como: carga horária e descansos entre turnos, treinamento e reciclagens, infraestrutura necessária e equipamentos (inclusive com uso de tecnologia), trabalho em áreas de risco e número mínimo de profissionais nos blindados e nas agências bancárias, além de planos viáveis de segurança (arts. 6º, 33 e 35).
A formação dos profissionais deve obedecer um currículo básico nos cursos de formação, aperfeiçoamento e atualização dos profissionais de segurança privada, necessariamente contemplando princípios éticos, técnicos e legais (art. 40, XIII). Deve prever, entre outros, conteúdos sobre: uso progressivo da força e do armamento, noções de Direitos Humanos e preservação da vida e da integridade. A educação específica e a constante reciclagem profissional é básica para evitar a repetição de episódios lamentáveis em nosso passado recente, como o ocorrido num supermercado de Porto Alegre em 19 de novembro de 2020, quando um segurança matou um cliente em frente às câmeras.
Mas nem tudo é positivo ou claro, sendo necessário exame mais aprofundado e, principalmente, o acompanhamento de sua execução – com o especial protagonismo da Polícia Federal.
A redução na informalidade do setor depende de outros fatores, como a fiscalização efetiva – pois a experiência demonstra que as empresas não aderem facilmente a tais regulamentos, sendo seus lobbies exatamente pela redução dos direitos trabalhistas. Vale lembrar como a atividade de monitoramento remoto por sistemas de segurança já é utilizada em milhares de condomínios residenciais brasileiros.
A nova lei é mais técnica e moderna em sua redação formal. Passou a abordar temas antes inexistentes, como sistemas de monitoramento eletrônico (câmeras, sensores, alarmes) e segurança cibernética. Todavia, a tecnologia abriu espaço para um possível retrocesso: a Lei previu a possibilidade de empresas privadas realizarem transporte e monitoramento de presos atornozelados. Isto foi corretamente vetado pela Presidência da República, por dificultar o controle pelo Judiciário e pelas Secretarias de Estado, além de obviamente conflitar com os princípios da execução penal como Política essencialmente Pública. Igualmente, embora não veiculado na mensagem de veto, previne-se o conflito de interesses de empresários que ganhariam mais dinheiro quanto maior fosse o encarceramento ou a aplicação de medidas alternativas como as “tornozeleiras eletrônicas”. Um conflito de interesses, mesmo que indireto e um prato cheio para o punitivismo de plantão.
Seria uma situação indesejada, pelos malefícios constatados em países como os Estados Unidos da América do Norte, onde abundam os presídios privados. Por fim, forneceria dados sensíveis sobre a população carcerária e egressa, que só devem interessar ao Estado. Este e outros vetos podem ser derrubados pelo Congresso – devendo haver mobilização da sociedade organizada e dos partidos políticos para sua manutenção e também do veto que garante a participação de capital estrangeiro, como comentaremos adiante.
A nova Lei também previu (art. 5º, V) a atuação na “segurança em unidades de conservação”. Aqui é importante atentar para a diferença entre fiscalização (exercida pelos Órgãos ambientais, com auxílio das polícias) para a segurança privada. A nova lei não traz proteção adicional ao meio ambiente, mas trata da proteção da propriedade privada submetida a restrições de ordem ambiental. Na prática, é possível um grande latifundiário contratar ou criar sua empresa de segurança armada com a finalidade precípua de enfrentar possíveis ocupações de terras (produtivas ou não, passíveis de reforma agrária ou não). Aqui vale a preocupação da repetição do fenômeno constatado no governo anterior: a proliferação de “Clubes de Tiro” em áreas rurais com histórico de conflitos fundiários6 – servindo de fachada para paióis de munição e armamentos por parte das equipes de “jagunços modernos” a serviço dos grandes proprietários.
Uma constatação alarmante, que lança sombra sobre a capacidade atual de fiscalização de tais firmas é o exemplo exatamente dos CACs. Cabe ao Exército Brasileiro o “registro e a concessão de porte de trânsito de arma de fogo para Colecionadores, Atiradores e Caçadores”, conforme o Estatuto do Desarmamento. Todavia, o Tribunal de Contas da União (TCU) constatou uma série de fragilidades e inconsistências no desempenho desta missão7, inclusive faltando “dados confiáveis relacionados à quantidade de vistorias e fiscalizações de CACs e de entidades de tiro”. Esta atividade está em vias de ser repassada para a Polícia Federal. Acontece que, em recente entrevista para a Veja8, o atual Diretor-Geral da Polícia Federal advertiu que, sem recursos, não será possível desempenhar a tarefa – pedindo incremento orçamentário na ordem de 500 milhões. Ora, ante esta sobrecarga, o que será então da missão de fiscalizar as firmas de segurança?
No geral, as discussões no Congresso, inclusive Pareceres, demonstram que a preocupação principal foi atender ao mercado crescente, muito mais do que preconizar alguma integração com a Política de Segurança Pública – que precisa ser tratada com ampla prioridade. A razão de ser da crescente demanda por segurança privada é a insegurança crescente da população e das empresas, denotando a falta de investimento ou o mau direcionamento das Políticas Públicas voltadas a reprimir a criminalidade organizada e prevenir a renovação de seus quadros. Sobre este último ponto, apenas investimentos contínuos na melhoria da qualidade de vida (segurança alimentar, habitação digna, educação e transporte) pode garantir que a juventude não veja na adesão ao crime uma alternativa de vida.
Logo, são campos aparentemente complementares, mas ideologicamente opostos: o setor empresarial da segurança privada lucra mais quanto pior for a atuação estatal. A experiência secular do Capitalismo demonstra a tendência à concentração da riqueza. Quando um grupo econômico cresce em demasia, seu poder econômico traduz-se em poder de pressão política e acaba moldando a legislação para beneficiar-se e até a facilitar a concentração de mercado, até chegar ao monopólio, em detrimento da população. Assim, foi acertado o veto presidencial ao artigo que impedia a participação de capital estrangeiro, o que tenderia a aumentar aquela concentração nas mãos das grandes empresas.
Um ponto negativo é que o art. 46 previu valores máximos de multas às empresas de segurança ou às instituições financeiras em valores de, respectivamente, 45 mil e 90 mil reais – o que é irrisório se comparado aos capitais das grandes firmas de segurança ou de qualquer banco. Louvável, diga-se, é a agravante no caso da infração conter elementos de preconceito de raça, cor, sexo ou qualquer tipo de discriminação – o que se integra ao subsistema de combate ao racismo e preconceitos que garantem efetividade ao art. 3º da Constituição: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:… IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”
Fica, ao final, a advertência: apesar dos avanços formais e do incentivo à atividade econômica regular, é preciso atenção e mobilização da sociedade civil organizada. Como no caso dos presídios, que são vistos como “minas de ouro” pelo empresariado, na área da Segurança preventiva também pode ocorrer uma progressiva substituição do público pelo privado, sob o argumento falacioso (ou provocado) do sucateamento de um para benefício do outro. Neste caso, todos perdemos e não importa que lei esteja em vigor.
Este artigo não manifesta necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.
Élder Ximenes Filho (integrante do Coletivo TRANSFORMA MP) e
Pedro Chê (integrante do Policiais ANTIFASCIASMO/RN)
Notas————————
1. Existem diversos vídeos de cursinhos e coaches de concursos listando formalmente cada alteração alterações, ponto a ponto, mas sem qualquer análise sistêmica.
2. https://www.estadao.com.br/economia/empresas-gastam-bilhoes-protecao-violencia/#:~:text=O%20setor%20de%20seguran%C3%A7a%20privada,F%C3%B3rum%20Brasileiro%20de%20Seguran%C3%A7a%20P%C3%BAblica.
3. https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/07/18-anuario-2022-a-seguranca-privada-nao-controlada.pdf
4. Segundo o Decreto N.º 11.884,de 18 de janeiro de 2024, que distribui o efetivo de Oficiais e Praças do Exército em tempo de paz para 2024.
5. https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/07/18-anuario-2022-a-seguranca-privada-nao-controlada.pdf – parte final.
6. https://www.intercept.com.br/2022/11/16/clubes-de-tiro-cercam-indigenas-e-municiam-agromilicias-na-amazonia/
7. Acórdão 949/2024 – Plenário, processo TC 007.869/2023-1, sessão em 15/5/2024
8. https://veja.abril.com.br/coluna/radar/o-alerta-do-diretor-da-pf-sobre-a-futura-fiscalizacao-de-armas-de-cacs
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