O incêndio na fábrica Triangle Shirtwaist, “Fire in my mouth” e o trabalho nas oficinas de costura em São Paulo, por Eliane Lucina

No entanto, o problema é também recorrente no meio urbano, incluindo grandes metrópoles, como São Paulo, onde são frequentes os casos de trabalho escravo em oficinas de costura.

Tarsila do Amaral

do Coletivo Transforma MP

O incêndio na fábrica Triangle Shirtwaist, “Fire in my mouth” e o trabalho nas oficinas de costura em São Paulo

por Eliane Lucina

O incêndio na fábrica Triangle Shirtwaist, em Nova York, há 110 anos (25 de março de 1911), foi uma grande tragédia – causando a morte de mais de uma centena de trabalhadoras e trabalhadores (129 mulheres e 23 homens), que morreram queimados, sufocados ou porque se jogaram das janelas do edifício em chamas.

A empresa possuía, na época, cerca de 600 empregados: a maioria constituída por jovens imigrantes italianas, ucranianas, russas, palestinas, romenas e irlandesas, que laboravam em jornadas exaustivas, cortando e costurando roupas, em troca de salários ínfimos.

As costureiras que perderam suas vidas no acidente tinham idades entre 16 e 23 anos. Trabalhadoras acorrentadas às máquinas de costura e às mesas de cortes de tecidos, onde foram encontradas fundidas após o incêndio.

Inspirada e sensibilizada por essa história trágica, a compositora estadunidense Julia Wolfe (Filadélfia, 1958), criou o oratório “Fire in my mouth” (2019) – para a Filarmônica de Nova York.

No programa da obra, Wolfe explica: “Teço fragmentos de história oral, ruídos dos sons das fábricas, canções folclóricas iídiches, falas de protestos e histórias de perda e sofrimento. […] Segui a história dessas mulheres que se levantaram para exigir uma existência mais humana”.

Conversei com Irineu Franco Perpétuo[1], crítico musical, sobre “Fire in my mouth” e o trabalho de Julia Wolfe.

Quais seriam as principais características do trabalho de Julia Wolfe (e sobretudo, da obra “Fire in my mouth”)?

“Fire in my mouth” pode ser classificada como um oratório contemporâneo. Historicamente, o oratório é um gênero relacionado à ópera, que costuma ter presença coral marcante, e ser mais estático, mais “parado” do que a ópera. No passado, oratórios usavam linguagem musical próxima à da ópera, mas tinham temas sacros, e não eram encenados. Com o passar do tempo, as fronteiras entre os gêneros foram se diluindo. Uma característica marcante de “Fire in my mouth”, sem o qual a obra não pode ser avaliada, é seu engajamento político. Se, no século XVIII, um oratório de Handel abordaria um tema bíblico, “Fire my mouth” aborda um tema da história norte-americana. Assim como nos oratórios bíblicos, “Fire in my mouth” não é imparcial, e induz a identificação do ouvinte com um dos lados da história. Se por vezes os ouvintes se queixam de obras contemporâneas por uma linguagem supostamente “hermética” e distanciada do ouvinte, a ideia aqui é bem outra. Uma música catártica e de comunicação imediata.

Wolfe conta, em entrevistas, sobre a procura por determinada tesoura que emitisse uma sonoridade específica (para ser utilizada em “Fire in my mouth”) — como você avaliaria o desempenho do, digamos, instrumento Tesoura, na obra? Funciona, dentro da proposta estética da compositora?

Com os recursos técnicos de hoje, Julia Wolfe, obviamente, não precisaria ir atrás de uma tesoura específica para produzir a sonoridade requerida. Ela poderia produzir o som dessa tesoura sinteticamente, em estúdio, ou gravar o som de uma tesoura e reproduzir a gravação na performance ao vivo. Mas optou por ir atrás de uma tesoura específica, o que me parece incorporar a própria busca do instrumento ao ato da performance. Buscar artefatos não-convencionais para produzirem sons específicos é um recurso bastante antigo na música de concerto. O caso dela me faz pensar nas bigornas que Wagner insere em “O Ouro do Reno”, para evocar o trabalho mineiro dos nibelungos. A invenção das técnicas de estúdio possibilitou que muitas dessas sonoridades passassem a ser produzidas eletronicamente. Mas também teve uma consequência curiosa: através das técnicas expandidas (ou seja, de um uso nada convencional dos instrumentos), compositores começaram a tentar reproduzir acusticamente o tipo de sonoridade passível de ser obtida em estúdio. Eu diria que Julia Wolfe vai por este lado.

De qual forma Julia Wolfe está inserida no contexto da música erudita contemporânea?

Julia Wolfe é uma representante desse estilo internacional norte-americano conhecido como minimalismo, e cujos nomes mais conhecidos são Philip Glass, Steve Reich e John Adams. Podemos ver o minimalismo como uma reação à música atonal que predominava no cenário internacional contemporâneo do pós-guerra. Trata-se de música bastante tonal, repetitiva, e que incorpora elementos melódicos e tímbricos do pop. É música de comunicação imediata com o ouvinte.

Voltando ao mundo contemporâneo do trabalho, recente pesquisa realizada e publicada no site da ONG Repórter Brasil, no dia 30 de setembro de 2020, no programa “Escravo nem pensar!”,  apresentou dados sobre o perfil de 1.889 mulheres vítimas de trabalho escravo e regatadas no país entre 2003 e 2018 – e trouxe, além do contexto geográfico, a questão por gênero, racial e de escolaridade.

Cerca de 62% das mulheres submetidas ao trabalho escravo são analfabetas ou não concluíram o quinto ano do Ensino Fundamental. Na questão racial, dados da pesquisa apontam que, dentre as mulheres resgatadas, mais de 50% são negras, sendo 42% pardas e 11% pretas. E o meio rural concentra mais de 80% dos casos, desde o corte de cana-de-açúcar e a produção de carvão até o trabalho doméstico nas frentes de trabalho no campo.

 No entanto, o problema é também recorrente no meio urbano, incluindo grandes metrópoles, como São Paulo, onde são frequentes os casos de trabalho escravo em oficinas de costura. Do total de 1.889 trabalhadoras resgatadas no país, 178 (7,8%) eram costureiras (que ocupam a terceira posição dentre aquelas profissões com maior número de mulheres resgatadas).

A proporção de mulheres resgatadas no estado de São Paulo é bem superior à verificada em outros estados da federação. E na capital, essa proporção é ainda maior – dado que se explica pela grande presença de mulheres nas oficinas de costura. O estado de São Paulo é, ainda, um dos cinco principais locais de origem das trabalhadoras resgatadas.

Na São Paulo contemporânea, as inúmeras oficinas de costura continuam a explorar trabalhadoras e trabalhadores imigrantes, na sua maioria jovens e do gênero feminino; que laboram em condições precárias e em jornadas extenuantes, mediante baixa remuneração. Não muito diferente das condições da fábrica da Triangle Shirtwaist. Ou seja: de 1911 para cá, muita coisa mudou – e pouca coisa mudou.

Eliane Lucina – Procuradora do Ministério Público do Trabalho e integrante do Coletivo Transforma MP


[1] Irineu Franco Perpétuo é crítico musical, colaborador da Revista Concerto, e tradutor; verteu para o português autores como Púchkin, Bulgákov, Dostoiévski, Turguêniev, Tolstói e Vassili Grossman.

Redação

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador