O tema 1046 da repercussão geral e a reserva de vagas para pessoas com deficiência no mercado de trabalho

Embora não fosse esse o resultado esperado, é preciso celebrar a ressalva em relação às políticas públicas de inclusão das pessoas com deficiência

O TEMA 1046 DA REPERCUSSÃO GERAL E A RESERVA DE VAGAS PARA PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NO MERCADO DE TRABALHO   

por Ana Cláudia Mendes de Figueiredo[1] 

O Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu ontem, quinta-feira (1/6), o julgamento do recurso extraordinário com agravo (ARE) 1121633, em que se se debatia a validade de acordos ou convenções coletivas que restringem ou afastam direitos trabalhistas assegurados em lei. Esse debate foi incluído no Tema 1046 da Repercussão Geral, a qual impõe aos julgamentos de ações judiciais que tratem da mesma questão a adoção do mesmo entendimento firmado pelo STF.

A Suprema Corte acolheu os argumentos expostos no recurso da Mineração Serra Grande S.A., julgando válida a norma coletiva que previa o transporte para o local de trabalho e a supressão do pagamento das horas de percurso. Ao fundamentar seu voto, o Relator, Ministro Gilmar Mendes, reconheceu a constitucionalidade de acordos e convenções coletivas[2] que limitam ou retiram direitos trabalhistas, desde que não estejam assegurados na Constituição.

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Ao final do julgamento foi fixada, por maioria, vencidos o Ministro Edson Fachin e a Ministra Rosa Weber, a tese que prevaleceu no Tema 1046 da Repercussão Geral:

“São constitucionais os acordos e as convenções coletivos que, ao considerarem a adequação setorial negociada, pactuam limitações ou afastamentos de direitos trabalhistas, independentemente da explicitação especificada de vantagens compensatórias, desde que respeitados os direitos absolutamente indisponíveis.”

Assim, as previsões em acordos e convenções coletivas podem afastar direitos    trabalhistas assegurados legalmente, desde que não sejam direitos indisponíveis. Segundo o Ministro Gilmar Mendes, são indisponíveis os direitos estabelecidos em normas constitucionais, em normas de tratados e convenções internacionais incorporados ao direito brasileiro e em normas que, mesmo não sendo constitucionais, estabelecem garantias mínimas de cidadania aos trabalhadores, como por exemplo assinatura da carteira de trabalho, pagamento de salário mínimo, repouso semanal remunerado,  dispositivos antidiscriminatórios, normas de saúde e segurança de trabalho e  liberdade de trabalho.  

O receio do movimento de pessoas com deficiência em relação a esse julgamento era o de que o reconhecimento da prevalência do negociado sobre o legislado afastasse obrigações legais importantes para essa população, como a reserva de 2% a 5% das vagas em empresas com 100 ou mais empregados para pessoas com deficiência (Lei nº 8.213/91, art. 91) e, por conseguinte, a contratação de aprendizes com deficiência em empresas de médio e grande porte (CLT, art. 429).  Foram noticiadas, por exemplo, intenções de alguns empregadores e sindicatos de empregadores, de inclusão de cláusulas nas normas coletivas que autorizassem a exclusão de determinadas ocupações da base de cálculo para definição da cota de aprendizes, prevista no art. 429 da CLT, e da cota para pessoas com deficiência, prevista na Lei nº 8.213/91, denominada Lei de Cotas[3].

A maioria dos Ministros do STF decidiu, contudo, limitar expressamente o âmbito de incidência do Tema 1046, para excluir desse os direitos garantidos em leis específicas voltadas à inclusão de pessoas com deficiência e jovens e adolescentes no mercado de trabalho. Nesse sentido foi o voto do Ministro Gilmar Mendes, relator do ARE 1121633, endossado pelos demais Ministros:

“(…) Por outro lado, considero oportuno assentar que a discussão travada nos presentes autos não abrange a validade de políticas públicas de inclusão de pessoa com deficiência e dos jovens e adolescentes no mercado de trabalho, que são definidas em legislação específica. Por essa razão, na data de 31 de maio de 2022, proferi decisões nos presentes autos, por meio das quais tornei sem efeito determinações anteriores que suspendiam o andamento de processos nos quais se discutiam a aplicação legal de cota destinada à aprendizagem profissional de jovens por parte de empresas de segurança, nos termos do Decreto nº 5.598/2005 (revogado pelo Decreto nº 9.579/2018, que consolidou atos normativos editados pelo Poder Executivo sobre essa temática) (…)”.

O Ministro André Mendonça ressaltou acompanhar a ressalva feita pelo Relator, em relação ao resguardo dos direitos assegurados às pessoas com deficiência, por meio de políticas públicas destinadas à inclusão e garantia dos direitos à profissionalização, ao trabalho e à dignidade dessa população.

A concordância com a prevalência das cláusulas negociadas coletivamente sobre as disposições legais, independentemente da especificação das vantagens compensatórias, legitima o afastamento, sem qualquer contrapartida por parte das empresas, de direitos sociais não assegurados constitucionalmente. Isso porque a fragilidade dos sindicatos de trabalhadores acarreta uma inequívoca desigualdade entre as partes das normas coletivas, especialmente em um cenário de instabilidade da economia e de elevado desemprego como o que país enfrenta. A decisão legitima, ainda, em última análise, o propósito explícito de supressão de direitos trabalhistas da parte de vários sindicatos de empregadores e setores econômicos, que não têm qualquer compromisso com o patamar civilizatório mínimo de direitos fundamentais trabalhistas.

Embora não fosse esse o resultado que a maioria dos trabalhadores, com e sem deficiência esperava – visto que admitir acordos que reduzem ou suprimem direitos sem vantagem compensatória explícita é sempre um retrocesso social –, precisamos celebrar pelo menos a ressalva em relação às políticas públicas de inclusão das pessoas com deficiência, como a denominada Lei de Cotas, que saiu intacta de mais uma ameaça de ser esvaziada. 

Certamente contribuiu para esse posicionamento, importa registrar, o amplo movimento em prol da defesa do artigo 91 dessa Lei e do artigo 429 da CLT, realizado pela Auditoria Fiscal do Trabalho, Coordenadoria Nacional de Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente do Ministério Público do Trabalho (Coordinfância/MPT), Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), organizações da sociedade civil, fóruns, redes, coletivos, comissões, conselhos e também por ativistas, parlamentares e pelas próprias pessoas com deficiência.

Neste tempo de tantas desconstruções em termos de direitos sociais, o simples fato de não ter havido retrocesso em relação aos direitos previstos nesses dispositivos,  que asseguram o direito ao trabalho e à aprendizagem a milhares de pessoas com deficiência, já é motivo de contentamento.


[1] Advogada. Coordenadora Geral da Autodefensoria da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down (FBASD), idealizadora da Rede Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Rede-In), ex-assessora de Ministra(o) no Supremo Tribunal Federal e no Tribunal Superior do Trabalho e ex-conselheira no Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência – Conade.

[2]  Acordos e convenções coletivas são firmados, respectivamente,  entre sindicatos de empregados e empresas e entre sindicatos de empregados e de empregadores.

[3] Nota da Rede Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência  (Rede-In)  sobre o Tema 1.046 http://ampid.org.br/site2020/wp-content/uploads/2022/05/Nota_aos_Ministros_STF_Tema_1046_-final-1.pdf

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Redação

1 Comentário

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  1. Os retrocessos já aconteceram, o Golpe já foi dado e a M. é muita.
    As cotas 50% não são sequer cumpridas, Na inclusão intra empresa Pcd é de um ser exótico na função mais barata é de alta rotatividade. Na pandemia quem mais foram afetados no mercado de trabalho foram PCDs. Essa medida está em consonância com intenções Neoliberais e Fascistas, “com o Supremo com tudo” ….

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