O combate ao crime organizado nas demandas judiciais de saúde

            A denúncia recente de fraude em cirurgias para implantação de próteses ortopédicas, jocosamente apelidada de “Máfia Mais Próteses”, é mais um dentre inúmeros escândalos na saúde pública ao longo de décadas.

            Reproduzimos abaixo trecho de relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) datado de 2013, que faz um alerta:

 

 “o Estado do Rio Grande do Sul lidera o ranking nacional de judicialização da saúde pública, com 74 mil processos e 1.900 novas ações ajuizadas todos os meses. “Dentre as demandas, é cada vez maior o número de ações impetradas visando ao fornecimento de remédios gratuitos. Por trás desse número expressivo, existiriam redes mafiosas que promovem o uso irracional de medicamentos. “Nunca se tomou tanto medicamento desnecessário e em doses tão exageradas”, afirmou o assessor técnico da área de Saúde da [Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul] FAMURS, Leonildo Mariani, com base em dados da Organização Mundial da Saúde;

                   de acordo com um estudo da Procuradoria Geral do Estado (PGE), 44% dos 128 mil atendimentos prestados pelo SUS no RS foram realizados por força de decisão judicial. Entre os efeitos negativos da judicialização da saúde está o aumento dos gastos públicos. Foi citado como exemplo o município de Júlio de Castilhos, onde 300 ações representaram um custo de R$ 40 mil para a prefeitura. Com o mesmo valor, o município poderia oferecer remédios para 14 mil pacientes por meio da Farmácia Popular;

                   outro exemplo emblemático se refere a um único remédio contra artrose que representou um gasto de R$ 2,4 milhões para o governo gaúcho, que foi citado pelo Procurador da PGE Lourenço Orlandini, segundo o qual “o juiz acaba liberando um medicamento sem eficácia comprovada e fora da lista oficial”. Outra informação agrava ainda mais esse cenário: em outros casos, constatou-se que, após a compra, os remédios não são distribuídos por falta de procura dos pacientes [grifo nosso]. Em julho deste ano, o governo já contabilizava 28 mil caixas em estoque;

                   o alto índice de processos seria resultado da ação de organizações criminosas, compostas por médicos, advogados, empresários e até pacientes. “Há laboratórios que pressionam os pacientes a entrar na justiça para buscar um medicamento”, alertou o Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado Pedro Poli;

                   segundo o Desembargador do Tribunal de Justiça Rogério Leal, essas organizações constituem uma máfia da saúde pública, verbis:

                   “Criam-se demandas artificiais de medicamentos por meio de ações judiciais para que determinadas pessoas repassem esses medicamentos para uma rede de distribuição de produtos fármacos no mercado negro.”

                   a judicialização envolve outras áreas relevantes, como acesso a internações, cirurgias e consultas.(…)

                   essa matéria vem causando preocupação em nível nacional, tanto que o Conselho Nacional de Justiça, por meio da Resolução CNJ nº 107/2010, criou o Fórum Nacional do Judiciário para monitorar as demandas de assistência à saúde. No âmbito desse Fórum, foram instituídos Comitês Executivos Estaduais, constituídos por membros das Justiças Federal e Estadual, dos Ministérios Públicos Federal e Estadual e das Defensorias Públicas Federal e Estadual, por gestores da área da Saúde e por representantes dos prestadores de serviços públicos e privados e da sociedade civil;

            no Rio Grande do Sul foi firmado acordo de cooperação técnica pela Defensoria Pública do Estado, pelo Ministério Público Estadual, pela Secretaria de Saúde do Estado, pelo Tribunal de Justiça do Estado, pela Procuradoria Regional da União – 4ª Região, pela Procuradoria Geral do Estado, pela Federação das Associações de Municípios do Estado e pelo Conselho Regional de Medicina do Estado. O referido acordo visou estabelecer medidas que deem efetividade aos ditames constitucionais, por meio da adoção de metodologia de planejamento e gestão sistêmicas com foco na saúde.”

 

Consultas processuais nos sites dos Tribunais de Justiça comprovam a existência de milhares de ações em primeira e segunda instância para obrigar Estados e Municípios a fornecerem – geralmente em caráter de urgência – medicamentos, suplementos nutricionais, próteses, cadeiras de rodas e equipamentos médicos, ou a realizarem exames diagnósticos e cirurgias de média e alta complexidade, além de internações em leitos de UTI privados até surgir vaga num hospital do SUS.

O que pouca gente fica sabendo é o desfecho de muitas dessas ações. Como “quem pode manda e quem tem juízo obedece”, a secretaria de saúde – não raro após espernear na esfera administrativa e ter todos os recursos negados pela Justiça – cumpre a sentença judicial, até sob pena de multa pecuniária ou prisão do titular da pasta. Adquire com dinheiro do povo o remédio ou outro item solicitado na ação. Porém, muitos doentes e familiares nem vão buscar o produto, que acaba encalhado num almoxarifado, e sequer respondem às convocações do serviço social. Procurados, alguns vizinhos até informam que a família do paciente se mudou para outro estado ou sumiu.

No site do TCU estão publicados diversos documentos de auditoria apontando falhas no gerenciamento da assistência farmacêutica no SUS, tais como falta de informatização e mau planejamento do tipo e quantidade dos remédios a serem adquiridos pelo estado ou município. Abundam casos em que os auditores identificam brechas para desvio de recursos públicos ou seu desperdício com medicamentos cuja validade expira antes que sejam usados.

Infelizmente ainda há médicos e cirurgiões dentistas que trabalham no SUS e trocam receitas de clínicas privadas por receituário do serviço público. Angariam a simpatia da clientela dando-lhe o direito de pedir à secretaria de saúde o fornecimento gratuito de remédio que sequer consta das listas oficiais, baseadas nos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas do Ministério da Saúde. Diante da negativa da secretaria, o paciente ingressa com ação judicial. Claro que há profissionais não fazem isso de má fé, mas porque não têm o hábito de estudar e receitam os remédios que os propagandistas de indústrias farmacêuticas levam ao seu conhecimento, sem nem lerem a bula do que estão receitando.

Num Brasil que não aguenta esperar mais para ter um SUS de qualidade e discute como melhorar o financiamento do Sistema, é essencial aumentar a eficiência da gestão de saúde nos estados e municípios e intensificar os mecanismos de controle, através dos Tribunais de Contas e do Departamento Nacional de Auditoria do SUS (Denasus).

A colaboração da população, denunciando fraudes ao Ministério Público, à polícia e às ouvidorias das três esferas de governo, é peça chave nesse processo.

Aos profissionais de saúde cabe se conscientizarem e reciclarem os conhecimentos científicos antes de prescrever medicamentos. A pressão da indústria farmacêutica induz os profissionais a receitarem mais do que o necessário, e a propaganda de remédios na mídia incentiva os pacientes a pedirem para tomar remédios de que ouviram falar. Mas o saber científico, a honestidade intelectual e o bom senso do médico é que sempre devem prevalecer.

Racionalizar a oferta de medicamentos e a realização de exames e tratamentos no SUS não apenas economiza recursos públicos, mas também reduz o risco de efeitos colaterais e complicações que podem causar a morte ou sequelas permanentes no paciente. E a vida humana não tem preço.

O que todos queremos é que a apuração da responsabilidade e consequente punição exemplar da máfia das próteses ortopédicas sejam o capítulo final da corrupção e de outras ações criminosas na saúde pública. Que comece agora a indispensável era do Mais Ética.

Aracy P. S. Balbani é médica. CRM-SP 81.725

Redação

9 Comentários

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  1. A desonestidade está em nosso DNA

    A desonestidade prospera desde a invasão dos portugueses das terras de nosso país. Infelizmente!

    1. O PI G cria o ¨escãndalo¨ e

      O PI G cria o ¨escãndalo¨ e vocês acreditam.   É  posssível haver algo que  repórter descobriria em uma semana de pssquisa sem que a PF mais gabaritada da face da terra não soubesse de nada? 

  2. millor chamava essa turma aí

    millor chamava essa turma aí de máfia de branco.

    alguns dizem que essa máfia agiria como uma

    empreiteira desas envolvidas no lavajato.

    mas a grande mídia, que defende essas grandes empresas

    multinacionais farmaceuticas que dominam e abastecem 

     os médicos de presentes e outras cositas más, faz uma denúncia

    mas na sequencia para de falar sobre o assunto.

    e o conselho federal de mediciana, personificado por aquele do bigodinho

    hitlerista, não diz nada,faz cara de paisagem.

    1. Peninha

      Tadinha da médica e pobrezinhos dos funcionários do TCU que escreveram o tal relatório. Honestidade parece que não dá ibope, né?

  3. Acho que este texto, mesmo
    Acho que este texto, mesmo sendo lido como a irresponsabilidade de alguns grupos diante do dinheiro público, deixa o brinde seguinte: a judicialização, e não a ‘custumerização’ destas práticas deixa de fora e exposto, o aparentemente sofisticado – mas na verdade pueril – braço do Judiciário brasileiro.

    Aonde exatamente? Nestas liminares quem sabe ‘inaudita altera parte’, onde a apreciação lógica do discurso do procurador da parte necessitada, prescinde de uma exame mais acurado das razões de ordem médica. Nunca ou quase nunca, entendemos, chamadas à processo.

    Na linha do enunciado lógico servir para desocupar as gavetas do Judiciário, numa administração do justo sem a profundidade requerida, atualmente, pela sociedade.

  4. O comportamento da classe médica

    É compreensível o comportamento da classe médica e suas entidades representativas quanto ao programa Mais Médico, quando analisamos o cenário a seguir.

    Aterei a alguns pormenores da indústria farmacêutica, OPMEs e de diagnósticos, operadoras de plano de saúde e prestadores de serviços, inserindo nesse contexto a classe médica.

    A indústria farmacêutica e de diagnósticos exercem influencia direta nos currículos e na formação dos médicos brasileiros. Vejam o que diz o médico britânico e Prêmio Nobel, Richard J. Roberts sobre o papel da indústria de fármacos. http://www.noticiasnaturais.com/2013/06/nobel-de-medicina-a-cura-de- doencas-nao-e-lucrativa-para-a-industria-farmaceutica/

    OPMEs – Órteses, Próteses e Materiais Especiais, que a muito se transformou na “cocaine da medicina“ (jargão médico), e que a mídia chama de ‘Máfia das próteses’, têm cada vez mais, comprometido os custos da assistência à saúde. Modus operandi: Todos os fabricantes investem em profissionais das diversas especialidades que demandam aplicação de OPMEs, direcionando-os para, congressos, cursos de especialização, mestrados, doutorados, 100% bancando pelos fabricantes. Essa graduação de “favores” está relacionada às metas que o médico atinge. Afora esses “favores” o representante da industria, que é quem tem o contato comercial com o médico, define uma tabela de comissões, também a partir de metas. Nesses casos, os pagamentos são feitos atraves de caixa 2,3,4,5, etc… Durante a vigência da CPMF, esses pagamentos eram realizados em especie, para evitar rastreamento do dinheiro. Posteriormente, passaram a fazer contratos de consultoria, para esquentar o money. “Jahia” me esquecendo, existe algo bastante grave nesse questão de atingir metas, que a tal da “cirurgia branca” (jargão médico), que nada mais é do que induzir o impaciente a aceitar a realização de um procedimento cirurgico sem que haja indicação para tal.

    É inegável o avanço e a importância da indústria de diagnósticos para a medicina, no entanto, irei me ater a chamar atenção para uma leitura em que a referida indústria se encaixa no mesmo modus operandi das indústrias farmacêutica e a de OPMEs. Nesse caso o papel do médico é fundamental para definir a TIR. Tenho vários exemplos em que essa taxa de retorno se dá em até 01 (hum) ano. Algo inimaginável em 99% das atividades empresariais.

    Aqueles que se propõem a discutir a questão da saúde pública de maneira séria, sem viés partidário ou mesmo interesses ocultos ou pessoais, não pode dar crédito apenas aquilo que a grande mídia costumeiramente faz, sem buscar o fio da meada, apenas lançando matérias sensacionalistas, para ter audiência. É preciso desnudar esse cenário acima, e mais, entender como funciona o mercado de saúde suplementar no Brasil. Como se dá a concentração, centralização e internacionalização das operadoras líderes. Tanto as operadoras que atual de maneira verticalizada, como os grandes prestadores de serviços, “NÃO” tem o menor interesse que o SUS seja viabilizado, até porque, são elas que subtraem grande volume de recursos do setor público de saúde.

    A Saúde deve ser organizada na perspectiva do interesse público, cabendo a sociedade impedir que a assistência à saúde seja convertida em um bem de consumo como outro qualquer

    Infelizmente, por não ser o local mais adequado para pormenorizar fatos, deixo esse pequena contribuição para reflexão, manifestando que essas afirmações não são meramente achisticas, mas sim, de quem esteve dirigente na área de saúde privada por longo período.

    Sugestão de leitura: SUS: o desafio de ser único de Carlos Octávio Ocké-Reis e o artigo SUS para a classe média, em: http://oglobo.globo.com/opiniao/sus-para- classe-media-14982407 

     

    1. O mais caro nem sempre é melhor

      É fato que operadoras de planos de saúde e alguns profissionais ligados a elas fazem o que podem para boicotar o SUS, assim como inimigos íntimos que trabalham no próprio sistema público. Padronizar (adotar o uso) de remédios, materiais e próteses num sistema de saúde ou hospital público ou privado geralmente envolve grandes interesses comerciais, claro. Por isso um consenso científico e a exigência de assinatura, pelos profissionais e gestores envolvidos,  num documento oficial de compromisso com isenção de conflito de interesses – e a posterior auditoria ou fiscalização externa,  é essencial.

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