A guerra às drogas mata mais do que as próprias drogas

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Por Leonardo Isaac Yarochewsky

No Justificando

O julgamento do RE635659 no Supremo Tribunal Federal que trata da descriminalização do porte para uso de drogas – crime previsto no artigo 28 da Lei 11.343/2006 – vem sendo acompanhado pela comunidade jurídica e pela sociedade com todo interesse – por diversas razões, as quais, inclusive, extrapolam a seara jurídica. 

O ministro Gilmar Mendes (relator do RE), em seu extenso e profundo voto, declarou que: “a criminalização da posse de drogas para uso pessoal conduz à ofensa à privacidade e à intimidade do usuário. Está-se a desrespeitar a decisão da pessoa de colocar em risco a própria saúde”. Ainda, de acordo com o voto do eminente Relator, “Na prática, porém, apesar do abrandamento das consequências penais da posse de drogas para consumo pessoal, a mera previsão da conduta como infração de natureza penal tem resultado em crescente estigmatização, neutralizando, com isso, os objetivos expressamente definidos no sistema nacional de políticas sobre drogas em relação a usuários e dependentes, em sintonia com políticas de redução de danos e de prevenção de riscos já bastante difundidas no plano internacional”.

Após o ministro Relator votar pela descriminalização do porte para uso de drogas o julgamento foi suspenso com pedido de vista do ministro Edson Fachin, que devolveu o processo no último dia 31.

A descriminalização para o uso de drogas é na verdade um acanhado passo na complexa questão da legalização das drogas. Ressalvando o fato de que entendemos, na linha lúcida defendida por Maria Lúcia Karam[1], que é necessário descriminalizar não só o uso, mas também o tráfico de drogas. Prevalecendo a criminalização do tráfico de drogas, somos compelidos a reconhecer que a Lei 11.343/2006 é inadequada, omissa e falha quando criminaliza o tráfico.

O próprio ministro Gilmar Mendes em seu voto reconhece que “a Lei 11.343/2006 conferiu tratamento distinto aos diferentes graus de envolvimento na cadeia do tráfico (art. 33, §4º), mas não foi objetiva em relação à distinção entre usuário e traficante. Na maioria dos casos, todos acabam classificados simplesmente como traficantes”. Principalmente, se levarmos em consideração o caráter seletivo do sistema penal. A maioria dos condenados pelo crime de tráfico é formada por pobres, negros, jovens, semianalfabetos, ou seja, os mais vulneráveis na sociedade.

Na “guerra às drogas” a seletividade do sistema penal se mostra mais evidente. Assim, necessário destacar que o que é considerado tráfico para alguns, no caso os mais vulneráveis e etiquetados pelo sistema penal, para outros é considerado porte de drogas. Como bem destacou Jacqueline Sinhoretto, em estudo sobre o mapa do encarceramento, “há uma aplicação desigual das regras e procedimentos judiciais”. Como, por exemplo, no momento em que o policial escolhe quem deve ou não revistar. Ou a maneira como trata uma pessoa flagrada portando uma determinada quantidade de entorpecentes. De tal modo, assevera a pesquisadora, que “a quantidade pode ser a mesma. Determinadas pessoas podem ser acusadas por porte e outras, por tráfico”.

A seletividade do sistema penal, aliada à ausência de critérios confiáveis para diferenciar o tráfico do uso de drogas, tem levado a população mais vulnerável e os marginalizados ao cárcere. Os “suspeitos”, os “perigosos” e, portanto, os “inimigos”, são os sem poderes, sem emprego, sem teto, sem escolaridade…

“Só pra mostrar aos outros quase pretos

(e são quase todos pretos)

E aos quase brancos pobres como pretos

Como é que pretos, pobres e mulatos

E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados…”
(Caetano Veloso)

Quando afirmamos, apesar do substancioso voto do ministro Gilmar Mendes, que o reconhecimento da inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343/2006 pelas razões expostas, com toda cultura e propriedade pelo ministro relator do RE635659, é tão somente um pequenino passo no longo caminho que ainda devemos percorrer para diminuir os males causados pela famigerada “guerra às drogas,” é porque mais do que nunca urge – enquanto não se opte pela descriminalização também do tráfico de drogas – que sejam tomadas medidas políticas (criminais[2] e de saúde pública) que visem reduzir os danos causados[3] e minimizem as distorções geradas pela própria lei e pelo sistema penal.

Enquanto não ocorre a desejável descriminalização do uso e do tráfico de drogas não é mais possível que usuários sejam tratados como “traficantes”. “Traficantes” pobres, pretos, favelados. Aqueles que quando não são presos, morrem antes dos 25 anos em supostos “confrontos” com a polícia. O nosso traficante é subdesenvolvido como é o nosso país. O nosso traficante não usa gravata e não frequenta as colunas sociais. O nosso traficante vive na Rocinha, no Jacarezinho ou no Alemão, afinal em Ipanema ou no Leblon existem no máximo adolescentes viciados merecedores de tratamento.  Esses são os nossos traficantes, caçados pela polícia e procurados pela imprensa sensacionalista para serem exibidos a uma sociedade hipócrita sedenta pelo sangue do “inimigo”.

A insegurança jurídica decorrente da deficiência e omissão da Lei 11.343/2006 no que diz respeito à diferenciação do uso e do tráfico de drogas tem levado a polícia, o Ministério Público e o Poder Judiciário a atitudes arbitrárias e a decisões absurdas, sem qualquer critério jurídico/científico na classificação dos delitos (uso ou tráfico) gerando injustiças inomináveis e irreparáveis.

Neste particular, vale reproduzir uma das conclusões do estudo sobre a atuação da justiça criminal do Rio de Janeiro e de Brasília no crime de tráfico de drogas, transcrito pelo ministro Gilmar Mendes em seu já referido voto:

“Conforme confirmado na análise qualitativa de sentenças, os policiais são os responsáveis pela montagem das provas a serem apresentadas nos processos, e quase nunca são questionados em juízo. São eles as únicas testemunhas dos fatos delituosos arroladas na denúncia. Por outro lado, os juízes, deforma quase idêntica, citam julgados para fundamentar a sentença no sentido de prevalecer a palavra do policial para embasar a condenação do acusado. O baixo número de absolvições em primeira instância também comprova essa tese. (…) Sob esse aspecto [seletividade do sistema penal], o formato da lei penal parece contribuir para tal ocorrência, quando estabelece tipos abertos e penas desproporcionais, pois concede amplos poderes ao policial, tanto para optar entre a tipificação do uso e do tráfico, como ao não diferenciar entre as diversas categorias de comerciantes de drogas”. (Tráfico e Constituição: um estudo sobre a atuação da justiça criminal do Rio de Janeiro e de Brasília no crime de tráfico de drogas. Revista Jurídica, Brasília, v. 11, n. 94, 1-29, jun/set 2009, publicação quadrimestral da Presidência da República).

Por tudo, é imperioso que a questão das drogas seja tratada livre de qualquer moralismo e preconceito. Como já salientou Maria Lúcia Karam, a “guerra às drogas” mata mais do que as próprias drogas. Mata e encarcera jovens, pobres, favelados e negros. Na última década tem encarcerado, também, as mulheres. Mulheres vulneráveis e mulheres de vulneráveis.

Enquanto não tratarmos a questão das drogas longe das amarras do poder punitivo, da influência perniciosa da mídia, da impostura de políticos e da hipocrisia de pais de família, e enquanto não separarmos o joio do trigo, vamos fingir que vivemos em um Estado democrático de direito.

Jesus explicou a parábola citada na epígrafe deste artigo, dizendo que: “o campo é o mundo” (Mateus 13:38). No mundo, os servos Dele convivem com os pecadores. Ele orou sobre os apóstolos: “Não peço que os tires do mundo, e sim que os guardes do mal. Eles não são do mundo, como também eu não sou” (João 17:15-16).

Belo Horizonte, setembro de 2015.

Leonardo Isaac Yarochewsky é Advogado Criminalista e Professor de Direito Penal da PUCMinas.
REFERÊNCIAS
[1]De acordo com Maria Lúcia Karam “já é tempo de legalizar e consequentemente regular a produção, o comércio e o consumo de todas as drogas, instituindo-se formas de controle racionais, verdadeiramente compromissadas com a promoção da saúde, respeitosas da dignidade e do bem-estar de todos os indivíduos, livres de guerras e de quaisquer outras intervenções do sistema penal”.  KARAM, Maria Lúcia. Legalização das drogas. São Paulo: Estúdio Editores.com, 2015 (Coleção para entender direito).
[2] Como bem assevera Juarez Cirino dos Santos “No Brasil e nos países periféricos, a política criminal do Estado não inclui políticas públicas de emprego, salário digno, escolarização, moradia, saúde e outras medidas complementares, como programas oficiais capazes de alterar ou de reduzir as condições sociais adversas da população marginalizada do mercado de trabalho e dos direitos de cidadania, definíveis como determinações estruturais do crime e da criminalidade; por isso, o que deveria ser uma política criminal positiva do Estado existe, de fato, como mera política penal negativa instituída pelo Código Penal e leis complementares: a definição de crimes, a aplicação de penas e a execução penal, como níveis sucessivos da política penal do Estado, representam a única resposta oficial para a questão criminal”. CIRINO Dos SANTOS, Juarez. Direito penal: parte geral. 6 ed. Curitiva: ICPC, 2014.
[3] “A prevenção e a minimização dos danos causados por drogas constitui em muitos países um objetivo de política de saúde. Entre as mais importantes medidas nessa área encontram-se a terapia da substituição baseada em opioides, bem como programas de trocas de agulhas e seringas, que visam diminuir o número de óbitos por overdose e conter a propagação de doenças infecciosas”. KARSAI, Krisztina. As questões fundamentais de uma legislação penal sobre drogas. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo. Ano 19, vol. 92,  set-out de 2011.

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

2 Comentários

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  1. Esquecimento

    O Gilmar por certo se esqueceu de salientar o papel civilizatório da Inglaterra no episódio conhecido como Guerra do Ópio, quando a China foi obrigada a liberar o uso de drogas, depois de vencida pelas armas. Também não se lembrou de enaltecer os traficantes, que deixarão a vida de crimes e passarão a jogar amarelinha com as crianças – o que é uma ocupação lícita.

  2. Quem já liberou

    A maioria dos países que já liberou as drogas, se arrependeu, e muitos voltaram atrás. A China, no século XIX tinha liberado o consumo de ópio, e no fim, 33% dos chineses se tornaram viciados em ópio, a droga destruiu de tal forma o país que o país declarou guerra aos traficantes (ingleses), foi a famosa guerra do ópio.

    Hoje a China se livrou dos ingleses, proibiu o trafico com penas severissimas, (que inclusiva foram copiadas por países como a Indonésia) e ninguém quer saber mais de drogas por lá.

    O efieto de drogas pesadas, não é como as drogas leves, quem opina sobre liberar, não sabe do que fala. Só quem já viveu de perto o drama tem condições de opinar a respeito.

    Aqui no Brasil, onde as leis são meio fracas por si mesmo, se fossem liberadas as drogas, o efeito seria muito mais devastador ainda. Quem mais sofre não é o viciado, mas os que vivem em volta dele, familiares, empresas que não podem mais contar com o viciado, enfim, a sociedade inteira.

    O que seria correto seriam penas alternativas, para aquele que realmente deseje se livrar do vicio ou do trafico, para diminuir a lotação nas cadeias. Mas liberar, definitivamente, não seria o caminho.

     

    “So quem já viveu de perto um drama deveria opinar a respeito de determinado assunto”.

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