Para entender melhor as duas fases da crise na Ucrânia

Otan e Ucrânia: do oba! oba! ao epa! epa!

Oba! oba!

Nos últimos dias de 1989, antes mesmo de que assentasse a poeira do muro de Berlim e que a “perestroika” de Gorbachov acabasse de apodrecer, quando reacionários e liberais do mundo inteiro comemoravam, eufóricos, o desmantelamento do bloco soviético e a ruptura, em favor do bloco capitalista, do equilíbrio estratégico US/URSS, tropas de choque aerotransportadas do Pentágono invadiram o Panamá para derrubar e prender o presidente Noriega. Operação com pelo menos dois objetivos sórdidos: “queimar arquivo” (Noriega conhecia a fundo as torpezas da CIA, com a qual havia colaborado em fase anterior de sua carreira) e quebrar a espinha dorsal do Exército panamenho, ainda impregnado do espírito anti-imperialista que lhe legara o coronel Torrijos. Os invasores mataram alguns milhares de panamenhos e ocuparam o país até colocar no governo um de seus fâmulos locais. Noticiado com a habitual “compreensão” pela imprensa a serviço do capital, o estupro colonial foi facilmente deglutido pelos meios políticos liberais, “esquecidos” da missão “defensiva” em nome da qual a Otan tinha sido criada no início da guerra fria.

Durante os anos seguintes, sobretudo quando a dupla de celerados G. W. Bush e T. Blair pontificou em seu comando, o cartel industrial-militar imperialista assumiu a função de exército colonial multinacional, despejando suas armas de destruição maciça, sob os pretextos mais hipócritas, num número crescente de países periféricos: Iraque, Sérvia, Afeganistão e Líbia. Foram muitas as semelhanças entre a invasão da Líbia em 2011 e a do Iraque em 2003. Ambos eram governados por um regime laico, oriundo da luta anti-imperialista das nações árabes; ambos tinham forte produção de petróleo de muito boa qualidade e mantinham, dentro dos limites das fortes pressões impostas pelo imperialismo, uma política externa independente. Ambos, enfim enfrentavam uma oposição heterogênea, em que pontificavam provocadores diretamente a soldo dos “serviços especiais” (Cia e sucursais europeias), liberais de direita pro-imperialistas e fundamentalistas islâmicos de extrema-direita.

A novidade na invasão e saqueio da Líbia foi a participação predominante da França na “zona de exclusão aérea”, seguida pelos “bombardeios humanitários” que decidiram o confronto. O assassinato de Khadafi pelos esbirros locais da Otan foi uma queima de arquivo e de credor: o presidente Sarkozy devia muito dinheiro ao governante líbio.

Epa! epa!

Estão terminando, se é que já não terminaram, os anos de euforia dos liberal-imperialistas, dos fascistas e dos social-democratas perante o desmantelamento da URSS. Foi-se o tempo em que os sabujos do plantel mediático extasiavam-se constatando que “a OTAN é dona do mundo”. Reconstruindo o Estado russo, prostituído pelo ladrão Yeltsin (cuja viúva adquiriu um dos mais caros e suntuosos palácios da Côte d’Azur), reaproximando-se da China e levando adiante uma política anti hegemônica, Putin tirou seu país da miserável situação em que o deixara o ébrio comandante da contra revolução de 1991 e mudou a relação de forças no planeta. 

A primeira invertida que a Otan levou ocorreu na Síria. A política externa independente mantida pelo governo de Bachar Al Assad, concretizada em alianças com a Rússia e o Irã e em firme apoio ao movimento patriótico Hezbollah, vanguarda da luta contra o facho-sionismo, tornava-o um alvo muito importante para a ofensiva neocolonial da Otan. A tolerância religiosa e o combate à opressão das mulheres valeu-lhe, ademais o ódio obscurantista dos sheiks feudais da Arábia Saudita e dos Emirados petroleiros. Como na Líbia, o romântico clichê mediático “primavera árabe” serviu de embalagem ideológica para a desestabilização da Síria. Vagas sucessivas de mercenários e de fanáticos do chamado Exército sírio livre, sigla que abriga terroristas profissionais financiados pelos sheiks da Arábia Saudita e dos Emirados petroleiros, apoiados pela Turquia e pela Otan, semearam o terror no país, num interminável cortejo de destruições, execuções punitivas e outros atos da pior barbárie (como o registrado no horrível vídeo que os próprios fanáticos divulgaram, comendo as entranhas de um prisioneiro).

Após quatorze meses de operações mortíferas que dizimaram a população e estraçalharam boa parte do país (a começar dos centros urbanos mais importantes), a agressão neocolonial se intensificou em meados de julho 2012, quando a Otan lançou a operação «Vulcão de Damasco e terremoto da Síria». Uma nova vaga de invasores, composta de algumas dezenas de milhares de mercenários e de fanáticos sunitas ligados à tenebrosa al-Qaeda (agindo de mãos dadas com a CIA, como já o tinham feito três décadas antes na guerra santa contra os soviéticos no Afeganistão), entraram na Síria via Jordânia, após liquidaram grupos isolados de policiais e de militares e se apoderarem de vários postos de fronteira. O objetivo era tomar Damasco de assalto. Na manhã do dia 18, eles destruíram a sede do Conselho de Segurança Nacional e mataram três generais: Daud Rajha, ministro da Defesa, Assef Chawkat, ministro adjunto, e Hassan Turkmani, secretário da presidência da República. Em apoio à ofensiva terrorista, o governo estadunidense e seus satélites usaram a sempre maleável ONU para ameaçar neutralizar com “bombardeios humanitários” a superioridade aérea do governo sírio. Mas chocaram-se com um firme veto da Rússia, secundada pela China. A ofensiva foi contida. A guerra continuou e já entra em seu quarto ano. Mas pela primeira vez, desde 1990, a ofensiva imperialista e as sedições por ela apoiadas foram detidas.

Ao ajudar o golpe fascista e pro-imperialista de 21 de fevereiro de 2014, na Ucrânia, que depôs o presidente Viktor Yanukovych porque ele se recusou a assinar um pacto de vassalagem com a União Europeia, os chefes da Otan pensaram dar uma lição à Rússia e reafirmar sua hegemonia planetária, que tinha sido contida pelo veto na ONU aos “bombardeios humanitários” sobre a Síria.  Logo ao assumir o governo, a direita golpista revogou a lei que reconhecia o russo como língua oficial em regiões onde ele predominava. No Parlamento ucraniano, deputados contrários ao golpe foram espancados. De todo o Ocidente cristão e plutocrático, do “king of drones” Obama ao social-colonialista Hollande, vieram aplausos aos golpistas de Kiev.

Mas o coro do oba!oba! não durou muito. Na Crimeia e no leste da Ucrânia, a grande maioria do povo, politicamente antifascista e culturalmente ligada à Rússia, mobilizou-se pela autonomia. Em 16 de março, os cidadãos da Crimeia aprovaram em referendum, por 96,8% dos votos, separar-se da Ucrânia e unir-se à Federação Russa. A ofensiva neocolonial da Otan foi de novo detida. Furibundos, os “media ”liberal-imperialistas, competindo para ver quem melhor diaboliza o país que um dia foi dos Soviets, só se referem à “anexação” da Crimeia, modo torpemente mentiroso de descrever os fatos.

Os sabujos da periferia, rosnando à voz do dono (“his master’s voice”), também destilaram sua quota de veneno antirusso. O Estado de São Paulo de 10-5-2014 classificou de “provocação” a presença de Putin em Sebastopol na comemoração do 69º aniversário da vitória final sobre o nazismo. Para não perder muito tempo com porcaria ideológica, seria fácil constatar a indecente duplicidade do jornal do clã Mesquita: ele ataca o governo russo por ter apoiado, sem derramar uma gota de sangue, a autodeterminação da Crimeia, mas justifica até os mais mortíferos ataques imperialistas. Em 22-12-1989, aquele jornal, num editorial intitulado “Em defesa de um modo de vida” (p. 3) não somente defende a covarde e sangrenta agressão das tropas estadunidenses ao Panamá, mas com desenvoltura que surpreende mesmo quem conhece sua veneração pelo Pentágono, Casa Branca, Wall Street, Tio Sam etc. critica a OEA porque esta condenou a invasão. Se tivessem um mínimo de honestidade intelectual, antes de vociferar contra os governos que enfrentam a Otan, lembrariam do que disse o editorialista hipócrita sobre a invasão do Panamá: “A legalidade da ação ordenada pelo presidente Bush funda-se na própria existência do Estado”, que “tem o dever de defender a vida de seus súditos no exterior […]. A vida de cidadãos norte-americanos[…] estava em risco no Panamá de Noriega”. Não se tem notícia de que algum gringo tenha sido molestado por Noriega; só está confirmado que milhares de panamenhos  foram massacrados pelas bombas do Tio Sam. Ao passo que na Ucrânia a perseguição aos russos levou ao pavoroso massacre do dia 2 de maio em Odessa. Se estivesse buscando pretextos para resolver pela força o confronto com os golpistas ucranianos, o governo russo não teria deixado passar esta ocasião.

Redação

3 Comentários

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  1. Espanto

     Caro Nassif, o que impressiona é a posição da Polônia, país vítma da carnificina nazista, que perdeu a dolorosa lembrança ao apoiar um golpe fascista na Ucrania.

    1. A Polônia sempre foi inimiga

      A Polônia sempre foi inimiga histórica tanto da Russia como da Alemanha, sempre se aliando a Inglaterra e França, e hoje faz parte da OTAN. Então, nada de estranhar, muito pelo contrário.

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