Cada um no seu quadrado, por Glauber Braga

Diferentemente do que afirma Sérgio Moro, em artigo publicado hoje no Estadão, o legislador é soberano, incumbindo-lhe adaptar e adequar a legislação brasileira à realidade, que em tempos de pandemia se apresenta cada vez mais dinâmica.

Cada um no seu quadrado 

por Glauber Braga

Diferentemente do que afirma Sérgio Moro, em artigo publicado hoje no Estadão, o legislador é soberano, incumbindo-lhe adaptar e adequar a legislação brasileira à realidade, que em tempos de pandemia se apresenta cada vez mais dinâmica. Evidente que a análise pontual da necessidade ou desnecessidade de uma prisão é do Poder Judiciário, ao qual, todavia, cabe emitir decisões balizadas na lei. A lei pode e deve reconhecer o impacto real e potencial da pandemia no sistema carcerário brasileiro. Fazendo-o, pode e deve construir critérios que prestigiem a racionalidade na ocupação do cárcere, sempre na perspectiva de evitar mortes dentro de sistema e o impacto que isso poder gerar nos equipamentos públicos de saúde.

O artigo desenha um falso cenário de normalidade. Cita abstratamente quantitativo de servidores e volumes de recursos, ignorando que as cadeias brasileiras sejam um estado de coisas inconstitucional, conforme declaração expressa do próprio Supremo Tribunal Federal (ADPF 347). Isso significa dizer que o órgão de cúpula do Poder Judiciário brasileiro reconheceu, relativamente às nossas prisões, estado de violações generalizadas de direitos fundamentais e reiterada inércia estatal. A decretação de tal estado de coisas implicou a determinação de medidas estruturais flexíveis a serem manejadas e monitoradas pela Corte, com o auxílio dos demais poderes, órgãos e pessoas afetadas. O Ministro, ao invés de fazer a defesa pública do hiperencarceramento, deveria dedicar esforços a atender o que preconizou o STF.

A permanência indefinida das pessoas nas prisões não é medida eficaz no controle da pandemia. Seria, com alguma dificuldade, se fosse possível colocá-los em situação de isolamento absoluto, sem contato com agentes penitenciários, servidores ou advogados por longo período de tempo. Não se cogita disso. É certo dizer, portanto, tal e qual ocorreu com a tuberculose e outras doenças infecto contagiosas graves, que o covid-19 chegará – se é que ainda não chegou – às cadeias brasileiras, onde encontrará ambiente fértil à sua propagação: corpos frágeis e amontoados em espaços precários, compartilhamento de itens básicos de higiene, alimentação deficiente e padrões sanitários sofríveis.

Coincidência ou não, as decisões do ex-juiz Sérgio Moro produziram resultados sempre compatíveis com suas posições ideológicas e favorecedores de um projeto político ao qual viria a se incorporar. Como desvelou a Vaza-Jato e a sucessão de acontecimentos, tanta parcialidade e suspeição desembocaram na eleição de Bolsonaro. Deste projeto não se descolará por guardar discordâncias pontuais acerca da condução da crise, ou da “gripe”. Indiferente à tragédia carcerária brasileira, o Ministro, quando não está escondido, insiste no compartilhamento de informações igualmente parciais e suspeitas sobre as realidades nacional e internacional. Caso típico de cegueira deliberada. É insultuosa a comparação do Brasil com a Itália, França ou qualquer outro país com sistema de justiça semelhante. A uma porque Itália e França ocupam, respectivamente, a 32ª e 27ª posição no ranking mundial de encarceramento (números absolutos). Possuem 105 presos a cada 100 mil habitantes, enquanto o Brasil possui 366. A duas porque, e aqui a incompletude da informação é grotesca e cruel, ambos os países adotaram medidas enérgicas de redução dos níveis de aprisionamento e assistência aos custodiados.

Vejamos, apenas exemplificativamente, o caso francês. No contexto da luta contra o coronavírus, a Ministra da Justiça francesa, Nicole Belloubet, vem adotando providências a fim de evitar uma crise de saúde e segurança na prisão. Ela abriu o caminho para a libertação antecipada de prisioneiros doentes e outros no final de sua sentença. Estabeleceu ao menos três medidas: liberdade aos presos que sofrem de doenças que os tornam mais vulneráveis ao vírus, aos presos em fim de cumprimento de pena e a não execução de penas curtas. Estima-se que com essas medidas a França liberte 6.000 presos. Proporcionalmente, seria como se o Brasil libertasse 80.000 presos.

Não existe comparação cabível. O esforço argumentativo do Ministro da Justiça, colocado a serviço de seus propósitos político-eleitoreiros, não resolve o problema do sistema prisional brasileiro neste momento de pandemia. Sua retórica inútil e alegórica, a repetir os padrões das sentenças e decisões que o elevaram à condição de empregado de Bolsonaro, escondem um de nossos mais graves problemas, perigosamente negligenciado pelo governo que integra. Cabe ao Parlamento brasileiro, repito, soberanamente, legislar sobre medidas que contenham os efeitos da pandemia no sistema carcerário nacional. Nesse sentido, eu e a Deputada Federal Talíria Petrone (PSOL-RJ) apresentamos o projeto de lei nº 978/2020, dispondo sobre medidas emergenciais a respeito da população brasileira privada de liberdade (adultos e adolescentes). Cabe ao Ministro da Justiça, por sua vez, a execução das políticas públicas definidas. Cada um no seu quadrado.

Glauber Braga é deputado federal pelo Psol

Redação

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