Ruralistas, podem guardar os fuzis, os fundos vêm aí, por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

O fato é que o mercado financeiro não sabe lidar com o novo. Para ele, tudo se resume na versão dinheiro do capital.

Agência Brasil

Ruralistas, podem guardar os fuzis, os fundos vêm aí

por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

Entre os vícios mais incapacitantes dos economistas, não ver o Homem como ser pensante é o pior. Os integrantes da Escola Austríaca pretendem teorizar sobre os anseios individuais e como isso impede que políticas econômicas funcionem. Eles o fazem de forma tão panfletária que o resultado é o a anarco-capitalismo, uma contradição em essência. Parece mais plausível que os que militam do lado monetário reagem instintivamente a apenas duas variáveis, risco e perspectiva de ganhos financeiros. Enquanto isso, os que militam no lado real precisam pensar o tempo todo e criar métodos de driblar as duas variáveis impostas pelo outro lado. É desse conflito, descrito na matéria anterior, que nasce a destruição criativa de Schumpeter. Considerando o mercado financeiro como interface entre o monetário e o real, estudando os mecanismos evolucionários dos dois lados, não seria absurdo dizer o que do que um lado constrói, o outro lado se apodera e esteriliza. A série de quatro matérias[1] publicadas entre agosto e setembro deste ano, nesta coluna, mostra como o mercado financeiro abocanhou as vantagens competitivas de nossa agricultura, esterilizando a criatividade e limitando-nos às commodities.

O fato é que o mercado financeiro não sabe lidar com o novo. Para ele, tudo se resume na versão dinheiro do capital.

A cédula de produto rural nasceu de uma necessidade real e foi praticada por anos, até que a lei 8929/1994 regulamentou o papel. Ele era total e radicalmente ligado à produção em seu sentido físico. Uma CPR de soja vinha do fato de um produtor rural produzir soja e uma indústria precisar de soja. O produtor precisava de insumos para produzir soja, a indústria os produzia, ou adquiria no mercado, fornecia ao produtor que retribuía o adiantamento entregando soja. A indústria não queria dinheiro do produtor, queria soja. Foi então que, na ânsia de trabalhar com capital de terceiros, a indústria começou a operar com esses papéis no mercado futuro, captando recursos e protegendo-se de variações de preços, para adquirir os tais insumos necessários à produção de soja. Os mecanismos foram evoluindo e os bancos passavam ao largo dessas operações, até que seu volume fez crescer os olhos dos seus dirigentes e, pela lei 10200/2001, criou-se a CPR financeira, que traduzia todo o mecanismo descrito no parágrafo anterior em dinheiro, com todos os vícios a isso inerentes. Antes de os bancos entrarem no jogo, o prêmio dependia da necessidade de capital de cada produtor, aliada à carência que aquela indústria pudesse ter de matéria-prima. A partir do momento em que os bancos lançaram suas garras sobre a operação, passaram a vigorar as duas únicas variáveis que o mercado financeiro conhece. Resumindo, a CPR financeira não passa de uma nota promissória lastreada em produto. Até para tratamentos médicos emitiram-se CPRF.

A lei 13.986/2019, conhecida como Lei do Agro, jogou uma pá de cal sobre o caráter físico da CPR, transformando-a em Cédula de Produto Rural com Liquidação Financeira. Ela, além de não se limitar a produtores rurais e cooperativas, incluindo agora quaisquer pessoas físicas ou jurídicas que tenham atividade ligada ao agronegócio ou florestal, passou a aceitar inúmeros outros tipos de alienação, seja de bens móveis ou imóveis. O que se chamou de afetação parcial da propriedade rural dá o direito de, em inadimplência, o credor registrar a propriedade em seu nome, sem os trâmites que as hipotecas sempre impuseram. Até correção cambial passou-se a permitir, retirando qualquer vestígio do papel que fez a pujança do agronegócio brasileiro. Se esse novo documento de crédito tornou a operação mais palatável às instituições financeiras, o risco para os produtores rurais decuplicou-se. Ele pode perder, com o bater de um carimbo, tudo o que levou a vida inteira para amealhar.

Ocorre que bancos não são, nem querem ser, produtores rurais. Assim que essas terras caírem-lhes nas mãos, vão para um fundo imobiliário, disciplinado pela lei 14140/2021, que permite transformar em quotas do fiagro (Fundo Imobiliário do Agronegócio), o que antes era dor de cabeça. Empresas especializadas, possivelmente estrangeiras, vão administrar essas terras em nome dos fundos. É uma forma marota de desnacionalizar o agronegócio, também o território nacional. Por isso, podemos dizer: “Ruralistas! Não tenham medo do MST. Podem guardar os fuzis, que os fundos vêm aí”.


[1] Eis os links: https://jornalggn.com.br/destaque-secundario/entre-milho-e-soja-onde-vai-parar-o-brasil-i-por-luiz-alberto-melchert-de-carvalho-e-silva/, https://www.ceilandiaemalerta.com.br/2021/08/31/entre-milho-e-soja-onde-vai-parar-o-brasil-2-4-por-luiz-alberto-melchert-de-carvalho-e-silva/, https://jornalggn.com.br/entenda/entre-milho-e-soja-onde-vai-parar-o-brasil-3-4-por-luiz-alberto-melchert-de-carvalho-e-silva/, https://jornalggn.com.br/entenda/entre-milho-e-soja-onde-vai-parar-o-brasil-4-4-por-luiz-alberto-melchert-de-carvalho-e-silva/.

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.

Redação

2 Comentários

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  1. Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva,
    Não sei o que exatamente você como economista quis dizer com a afirmação “resultado é o a anarco-capitalismo, uma contradição em essência”.
    Como não sou economista não consigo ver contradição entre anarquia e capitalismo, muito embora o anarco capitalismo seja uma impossibilidade, ou seja, algo de existência fugaz. O capitalismo precisa do Estado e sem ele morre.
    Então no meu entendimento de não economista o anarco capitalismo não é uma contradição, mas uma impossibilidade.
    Clever Mendes de Oliveira
    BH, 28/12/2021

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