
A vitória da Frente Ampla no Uruguai: como a esquerda chegou ao poder no país vizinho?
por José Victor Ferro
Após cinco anos longe do poder, a esquerda retornará ao governo no próximo ano. O ex-intendente do departamento de Canelones, Yamandú Orsi, venceu o candidato de centro-direita Álvaro Delgado, do Partido Nacional, que ocupava o cargo de secretário de governo do atual presidente uruguaio, Luis Alberto Lacalle Pou. Orsi traz novamente a Frente Ampla ao poder, uma coalizão de centro-esquerda que governou o Uruguai por 15 anos, durante os dois mandatos de Tabaré Vázquez (2005-2010 e 2015-2020) e o governo único de José “Pepe” Mujica (2010-2015).
À primeira vista, a vitória de Orsi sobre o candidato governista pode parecer previsível. Se observarmos os últimos resultados eleitorais na América do Sul, identificamos um padrão de derrotas dos governos que enfrentaram as crises sanitária e econômica geradas pela pandemia. No Chile, o candidato da coalizão de centro-direita Chile Vamos, do então-presidente Sebastián Piñera, sequer chegou ao segundo turno, que foi disputado pelo atual presidente Gabriel Boric (esquerda) e por José Antonio Kast (extrema-direita). Na Colômbia, o partido do então-presidente Iván Duque (centro-direita) também enfrentou dificuldades: sem perspectivas reais de sucesso, não lançou candidato nas eleições presidenciais de 2022, vencidas por Gustavo Petro (centro-esquerda). Esse padrão não se aplica apenas a governos conservadores: na Argentina, em 2023, o candidato governista Sergio Massa, ligado ao peronismo, foi derrotado pelo fenômeno libertário-populista Javier Milei.
No entanto, o caso do Uruguai apresenta peculiaridades que o diferenciam dos demais exemplos regionais. Além de possuir um dos sistemas partidários mais consolidados da América Latina e ser considerado uma “ilha de estabilidade” em uma região frequentemente marcada por turbulências, o atual presidente Lacalle Pou é extremamente bem avaliado. Sua gestão da pandemia foi uma das mais eficazes da região, contando inclusive com o apoio da oposição. Ademais, Lacalle Pou, um político habilidoso e pragmático, mantém até hoje altos índices de aprovação — 51,5% em novembro de 2024 —, sendo o mandatário mais bem avaliado da América do Sul.
Portanto, a derrota do candidato oficialista não pode ser vista como algo óbvio ou natural, apenas seguindo uma tendência regional ou global. Considerando a popularidade de Lacalle Pou, a pergunta que se impõe é: como a esquerda conseguiu retornar ao poder no país da banda oriental?
Por um lado, é necessário destacar os méritos da campanha e das estratégias da Frente Ampla. A escolha de Orsi foi, sem dúvida, um grande acerto da coalizão. Sendo o primeiro presidente em 100 anos nascido no interior uruguaio, Orsi conseguiu forte apoio nos departamentos do centro do país, garantindo uma margem de 100 mil votos a mais que o candidato governista. Além disso, sua gestão como intendente de Canelones — um departamento que se estende das bordas de Montevidéu para o interior — foi amplamente aprovada, consolidando sua imagem como um gestor eficiente e próximo das necessidades da população.
Politicamente, Orsi e seu partido, o MPP (Movimento de Participação Popular), criado pelo ex-presidente Pepe Mujica e outros ex-guerrilheiros, representam uma ala mais centrista da Frente Ampla. Embora essa posição não seja necessariamente uma vantagem em todos os contextos, no Uruguai ela tem sido determinante. O discurso de união nacional e moderação — uma estratégia repetida tanto pelos partidos Colorado e Nacional quanto pela própria Frente Ampla — tem sido a chave para vencer eleições no país nos últimos 40 anos.
Por outro lado, é importante apontar os erros do Partido Nacional e de seus aliados da coalizão republicana, formada pelo Partido Nacional, o Partido Colorado e o Cabildo Abierto. Em primeiro lugar, Delgado, apesar de ser homem de confiança do presidente, não tinha o mesmo carisma de Lacalle Pou — que, impedido constitucionalmente de buscar a reeleição, foi eleito senador para a próxima legislatura. Além disso, a escolha de Valeria Ripoll como sua companheira de chapa foi criticada dentro do próprio partido, que esperava a indicação da economista Laura Raffo, uma figura tradicional e segunda colocada nas primárias do Partido Nacional.
Outro fator que contribuiu foi a falta de coordenação entre os aliados da coalizão republicana. Por exemplo, antes de declarar apoio a Delgado no segundo turno, o colorado Andrés Ojeda, terceiro mais votado, criticou a campanha do candidato oficialista. Finalmente, Delgado conduziu uma reta final de campanha confusa, atacando a Frente Ampla como “a pior da história” enquanto simultaneamente oferecia ministérios em um possível governo de união nacional.
No final, o retorno da esquerda ao poder no Uruguai foi resultado da convergência de dois fatores: a competência e os acertos da campanha da Frente Ampla e os equívocos acumulados pelo candidato oficialista. No entanto, o futuro presidente Orsi e sua coalizão não terão um caminho fácil. Apesar de conquistar a maioria no Senado e quase alcançá-la na Câmara dos Deputados, ambos terão a obrigação de fazer um governo excelente, pois, em 2029, o “fantasma” de Lacalle Pou poderá ressurgir com força nas urnas.
José Victor Ferro – Mestre em Estudos Latino-americanos pelas universidades de Salamanca (USAL), Estocolmo e Paris 3-Sorbonne-Nouvelle e bolsista da União Europeia através do programa Erasmus Mundus Joint Master’s Degree. Pesquisador do Observatório do Regionalismo (ODR). Dedicou-se à análise de modelos de desenvolvimento e política externa de Brasil e Argentina vis-à-vis o acordo de associação Mercosul-UE. Com experiência profissional em instituições diplomáticas (Embajada de Uruguay para Suecia, Dinamarca, Noruega e Islandia) e multilaterais (Fundación EU-LAC). Graduado e licenciado em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo(USP).
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