Democracia e mal-estar na América Latina, por Rodrigo Medeiros e Luiz Henrique Faria

No Brasil, 40% apoiam a democracia em relação a outras formas de governo, sendo que a indiferença atinge 36% da população e o autoritarismo é apoiado por 11% explicitamente.

Democracia e mal-estar na América Latina

por Rodrigo Medeiros e Luiz Henrique Faria

O documento “Informe Latinobarómetro 2021”, da ONG chilena que investiga o desenvolvimento de democracias, economias e sociedades na América Latina, publicado, há pouco, merece destaque e é um subsídio para reflexão. Em síntese, o documento ressalta que há novas complexidades para a região, em termos de governabilidade, desde a eclosão da pandemia de Covid-19, para além das históricas questões estruturais. Temos algumas dúvidas se essas são realmente “novas complexidades”.

De acordo com o documento, “os latino-americanos não toleram mais governos que defendem interesses de poucos, a concentração de riqueza, a escassez de justiça, a fraqueza das garantias civis e políticas, bem como o atraso na construção de garantias sociais”. O descontentamento sobre como funciona a democracia é comum na região em um tempo no qual a pandemia desnudou o exercício de poder.

Segundo consta no documento, “o revés econômico causado pela pandemia não define a região, mas simplesmente acentua suas características”. O mal-estar anterior não se dissipou. Ele apenas reafirma a demanda social por uma vida melhor. Democracias frágeis são citadas no documento, em um trecho que destaca o Brasil.

Quando são expostos números, tomamos conhecimento de que 49% dos latino-americanos apoiam a democracia e 13% o autoritarismo, enquanto 27% se mostram indiferentes. No Brasil, 40% apoiam a democracia em relação a outras formas de governo, sendo que a indiferença atinge 36% da população e o autoritarismo é apoiado por 11% explicitamente.

Para o Latinobarómetro, a indiferença é explicada como uma parte substantiva da decepção pelo mau funcionamento da democracia nos países. A indiferença cresceu na América Latina entre 2010 e 2020 e é nela que os decepcionados com a democracia se refugiam, não necessariamente no autoritarismo.

Na América Latina, 45% das pessoas consideram que a democracia possui grandes problemas. O Brasil segue essa visão, com 44%, porém 69% se posicionam pela “democracia churchilliana”, que compreende que a democracia pode ter problemas, mas é o melhor sistema de governo. Para 59% dos brasileiros, não é admissível um governo militar. Entretanto, 53% dizem não se importar que um governo não democrático chegue ao poder se ele resolver os problemas.

Conforme consta no documento, “a fragilidade das democracias latino-americanas sempre esteve presente desde as transições”. A democracia na região é avaliada pela experiência de três décadas de desempenho das elites e a partir de um julgamento das deficiências sentidas pela população.

Não por acaso, 70% dos latino-americanos se dizem insatisfeitos com a democracia. Apenas 25% estão satisfeitos. No Brasil, 21% estão satisfeitos e 25% consideram que se governa para o bem de todos. Entre os latino-americanos, 73% consideram que se governa para grupos poderosos em benefício próprio. No Brasil, 71% pensam assim.

Em relação à distribuição justa de riquezas, 17% dos latino-americanos dizem que essa é a realidade regional. No Brasil, apenas 14% pensam dessa maneira. Quase 80% dos latino-americanos consideram injusta a distribuição de riquezas nos países da região. Em síntese, ponderou o Latinobarómetro, as alternâncias no poder que ocorreram na região se devem a essas duas reclamações: as ausências de dispersão de poder e riquezas em um quarto de século. Frustrações e traumas ocorreram.

No clássico livro “Dependência e desenvolvimento na América Latina” (1970), de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto, publicado pela Zahar Editores no Brasil, os autores apontam que “o perfil da estrutura nacional de dominação só se compreende quando se concebe os grupos exportadores – plantadores, mineradores e banqueiros – exercendo um papel vital de ligação entre a economia central e os setores agropecuários tradicionais”. As ambiguidades das instituições públicas nacionais na região derivam de estruturas historicamente formadas pela “expansão para fora”. Os grupos “modernizadores” tiveram origem no sistema econômico exportador, vinculados historicamente aos interesses oligárquicos regionais.

Segundo Cardoso e Faletto, “o desenvolvimento da produção para a exportação em grande escala foi resultado direto da formação de enclaves” depois da formação dos Estados nacionais na virada do século XIX para o XX. Os enclaves, por sua vez, coexistiram com setores econômicos controlados por oligarquias tradicionais. Os sociólogos destacaram dois tipos de enclaves históricos na América Latina: o mineiro e o agrícola. Do ponto de vista do mercado mundial, ressaltaram os autores, “as relações econômicas são estabelecidas no âmbito dos mercados centrais”. Eles destacaram ainda que, a partir da década de 1950, a América Latina viveu a penetração do capital estrangeiro nos processos produtivos de substituição de importações industriais e golpes civil-militares.      

Mais recentemente, grandes insatisfações sociais se manifestaram nas ruas de países da América Latina, antes da pandemia de Covid-19 estourar, e elas revelaram a permanência de espaços autoritários, o déficit de poder público democrático e a precariedade institucional na região, que possui um caráter estrutural regressivo nos sistemas tributários nacionais. O recente escândalo internacional dos Pandora Papers, sobre a presença de recursos financeiros de autoridades e empresários em paraísos fiscais, foi recebido com um silencioso constrangimento inicial pela imprensa tradicional e o campo liberal na região.

Desde 2016, reformas regressivas têm tramitado no Congresso brasileiro. A Emenda Constitucional 95/2016, sobre o teto dos gastos primários, busca estruturar um Estado subsidiário. Em relação ao que foi prometido, os resultados são ruins até o presente e as expectativas tampouco são boas. A imprensa informou que, de um total de 89 milhões de ocupados no Brasil, 36,3 milhões são informais. Outras notícias divulgadas pela imprensa, sobre os avanços da fome e da insegurança alimentar, por exemplo, revelam um quadro muito preocupante no Brasil.

Interessante artigo de Alexander Busch, publicado na DW Brasil, no dia 15 de outubro, questionou o que seria do Brasil caso o país exportasse apenas matérias-primas. De acordo com o autor, “a desindustrialização crescente causa profundas mudanças negativas na sociedade, como menos empregos e pesquisa”. Matérias-primas constituíram quase 70% das exportações brasileiras entre janeiro e setembro. Sobre o problema da dependência de matérias-primas, ele afirmou que elas criam “relativamente poucos empregos”.

Do ponto de vista histórico-estrutural, Busch foi enfático ao afirmar que “a Europa, os EUA e, por último, a Ásia foram sociedades que começaram como produtoras de matérias-primas, mas se tornaram sociedades de classe média graças à própria industrialização”. Ele finalizou dizendo que “no Brasil, no momento a impressão é que o processo transcorre exatamente na direção inversa”. A desindustrialização é precoce no Brasil e o subdesenvolvimento faz parte da sua formação nacional, assim como em outros países da América Latina. Economias de enclave persistem na América Latina, estruturando relações assimétricas de poder, dependência externa e desigualdades sociais extremas nos países que compõem a região.

Rodrigo Medeiros e Luiz Henrique Faria são professores do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes)

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Redação

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