Maira Vasconcelos
Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).
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Libertários: Argentina permaneceria no Mercosul, mas poderia propor reformas

“Onde entra o comércio, não entram as balas”. Libertários acreditam que podem ter boa relação com Brasil, apesar de Lula ser centro-esquerda

Foto: Infobae

Libertários: Argentina permaneceria no Mercosul, mas poderia propor reformas

por Maíra Vasconcelos, especial para o GGN

O discurso eleitoral de Javier Milei sobre política exterior se dirige contra os “comunistas”, e em sentido a se alinhar com os Estados Unidos e Israel. Em entrevistas e aparições públicas, o candidato tem rejeitado veementemente, uma e outra vez, tanto o Mercosul como a aliança dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul), mesmo tendo dito que o setor privado estaria livre para comercializar com os países que compõem ambos blocos. Mas também afirmando, “não faço pacto com comunistas”. Em entrevista ao Jornal GGN, o economista e tesoureiro dos Libertários Argentina, Andrés Santoro, disse que provavelmente o país permaneça como membro do Mercosul e também dos BRICS. No entanto, afirma que, caso seja eleito Javier Milei, a Argentina irá propor reformas, no caso do Mercosul. “Sim, pode ser que queira fomentar de outra maneira. Mas, deixá-lo não está dito. Acredito que poderia ser proposta a diminuição das taxas de alguns produtos, por fora do bloco. Não teria sentido gastar energia em romper com o Mercosul”, afirmou Santoro, que fala em “gastar energia”, porque demandaria articulação política no Congresso, já que essa decisão deve ser submetida a votação de deputados e senadores.

No caso dos BRICS, quando anunciado o convite para que a Argentina ingresse à aliança, que foi aceito pelo atual presidente Alberto Fernández, em agosto deste ano, a palavra da aliança de Milei, “La Libertada Avanza” (LLA), ficou com a economista Diana Mondino, cogitada como chanceler. “Embora exista a velha piada de que a associação tem seus privilégios, também devemos considerar os custos. Temos que destacar as desvantagens disso: a Argentina não tem fundos para fazer contribuições e isso se transformaria em mais dívidas”, disse Mondino. Oficialmente, o país será parte dos BRICS, a partir de janeiro de 2024. Assim, a aliança que hoje conta com cinco países-membros, passará a somar onze países, com a inclusão, além da Argentina, também do Egito, Etiópia, Irã, Emirados Árabes e Arábia Saudita.

Outro ponto abordado durante a entrevista com Santoro, é o fato de que mesmo sendo um candidato pró-mercado, talvez o mais flamante das últimas décadas na Argentina, Milei não convence o mercado e, tampouco, conta com apoio de empresários locais. Durante a entrevista, Santoro foi questionado sobre a prometida abertura comercial proposta pelos Libertários, e, por isso, teve que explicar qual é o plano de proteção à indústria nacional. Santoro também falou sobre como seriam as relações com o atual governo brasileiro, de centro-esquerda, e a imprensa local, hoje, em parte, críticos à aliança de extrema direita. “Lembre-se disso, onde entra o comércio, não entram as balas. Uma coisa vai ser todo o show que a política necessita e outra coisa vai ser a realidade. As relações serão ótimas”, afirmou o economista.

Por outro lado, quase como um parêntesis a esta matéria, acrescento que o cenário eleitoral argentino, considerando as últimas pesquisas de opinião, e também o desempenho dos candidatos no primeiro debate presidencial, do último domingo, 1 de outubro, a vitória de Javier Milei, no primeiro turno, parece depender apenas de sua própria atuação e ações estratégicas. Pois, na teoria, o candidato tem todas as chances de acabar com a eleição no dia 22 de outubro, conforme tem sido comentado também por alguns meios de comunicação e jornalistas locais. A candidata da direita macrista, Patricia Bullrich, tem apresentado um desempenho que a deixaria de fora, no caso de um segundo turno, que seria disputado entre Sergio Massa, da aliança peronista, União pela Pátria (UP), e Milei.

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Javier Milei disse que “o Mercosul é uma união aduaneira de má qualidade, que produz desvio de comércio e que prejudica a cada dos membros”. Mas, entre que seja prejudicial aos próprios sócios e o fato de que o bloco não funciona da maneira como se espera, desde sua fundação, há um abismo. Além do mais, o Brasil é um dos principais sócios comerciais da Argentina.

Não se esqueça que Milei está a favor da abertura comercial. Tudo o que é comércio enriquece os povos porque se utilizam melhor os recursos e porque melhora o nível de vida das pessoas. Milei não está de acordo com o funcionamento, porque o Mercosul não chegou a ser o que se esperava desde o nascimento. Necessita polir. Na relação com o Brasil, a Argentina tem uma balança comercial negativa. No saldo comercial sempre ganha o Brasil. Por isso, hoje em dia, a relação é benéfica para os dois países. Nós necessitamos de produtos do Brasil e sabemos disso. Mas, hoje em dia, o Brasil sempre leva mais dólares do que traz. Eu não acho que a relação com o Brasil caia. O Brasil é o principal sócio econômico comercial da Argentina. Portanto, jamais vamos cortar essa relação. Eu acho que Brasil e Argentina precisam ter uma união forte para poder fazer convênios com o exterior, com a Europa. A Argentina vai favorecer tudo o que seja intercâmbio comercial.

Então, o plano de deixar o Mercosul… caso ganhe Milei, pode ser que a Argentina permaneça no Mercosul?

Sim, pode ser que queira fomentar de outra maneira. Mas, deixá-lo não está dito. Acredito que poderia ser proposta a diminuição da taxa de alguns produtos, por fora do Mercosul. Não esqueça que também vai respeitar as liberdade individuais. Não teria sentido gastar energia em romper com o Mercosul, mas favorecendo o comércio, que com a ideia de Milei é o que a Argentina quer fomentar. O comércio internacional, se inserir no mundo.

Recentemente, a Argentina foi convidada a ingressar como país-membro dos BRICS, a partir de 2024. Caso seja eleito Javier Milei, o país permanecerá no bloco?

Há algo que disse Milei, textuais, disse que não vai promover  as relações com a China. Utilizou essas palavras e não foi sem querer. E repetiu mais de uma vez. O setor privado vai poder comercializar com a China, livremente. A Argentina vai deixar que façam tudo o que queiram. Mas não irá promover o comércio com a China, por uma questão de alinhamento geopolítico, estimo, porque Milei vai promover o comércio com o ocidente, Estados Unidos, Europa e Israel.  Mas não irá proibir. Se o setor privado que comercializar com a China, vai comercializar. Por isso, foi tão cuidadoso em usar a palavra “promover”. Vai abrir o comércio, mas não irá promover o comércio com a China.

Então, irá continuar nos BRICS?

Suponho que sim. Mas tem uma realidade, na prática, o Brasil se viu beneficiado com isso. Teve pouco benefício. É uma união bastante jovem, talvez no futuro se veja de outra maneira. Os resultados ainda não foram vistos. Tem que esperar e ver o que acontece. Não vejo como algo factível, sair dessa união, ao menos que haja uma instrução geopolítica, uma decisão necessária por alguma outra situação. E, hoje em dia, nossa relação com a China não é benéfica. Ou seja, falando de saldo da balança comercial. A Argentina importa da China quatro vezes mais do que exporta. Temos uma relação, no que diz respeito a saldo comercial, que é conveniente para a China. Muito mais do que nos convém.

Então, digamos, uma coisa é o discurso político de Milei, muito caricaturesco de uma Guerra Fria que já não existe mais, como dito por alguns analistas, o que seria um discurso eleitoral, e, por outro lado, o que efetivamente seria feito nos Brics, se chegam a ser governo. É isso? 

Sem dúvida que há um discurso, sem mentir, porque ele está dizendo, “não vou promover as relações com os comunistas”, não é o mesmo que, “vou romper as relações com os comunistas”, ele não diz isso. Disse, “não vou promover”. Estimo que, como você diz, há eleições e é necessário dar sinais há quem possa receber esses sinais. Acredito que, dessa maneira, está dando sinais aos Estados Unidos, que quer ser seu amigo, e está dizendo também, China, sigamos comercializando.

Milei é um candidato pró-mercado como, há décadas, não surgia na Argentina. Mas, por outro lado, Milei não convence o mercado. Não há, tampouco, um grupo de empresários que se posicione junto a Milei. Como o senhor lê essa situação?

Não se esqueça que Milei vai atacar esses interesses. Os empresários, na Argentina, “caçam no zoológico”. Se, de repente, eles precisam competir com o mundo, você estaria tocando nos seus interesses. Os empresários ganham dinheiro, agora, com esses modelos. Com o câmbio desdobrado, eles importam com o câmbio oficial e vendem segundo o “câmbio blue” (um dos tipos de dólar paralelo existentes na Argentina). Os empresários ganham dinheiro com esse modelo. E, ao contrário, com o modelo de Milei, o empresário que vende a taça a $15, vai ter que vender a $5. Os empresários… Então, o conceito de caçar no zoológico, é o mais fácil, você entra, estão todos enjaulados e você vai matando os animais. É muito fácil caçar no zoológico. O que acontece na Argentina é, eu sou empresário, digo ao governo, proíba  a importação de jeans. Mas os jeans vêm de Miami e valem $20 dólares cada um. Proíbe, porque assim, aqui eu vendo a $100. Ok, proíbo. Então, o Estado proíbe a importação de jeans a 20 dólares e aqui você vende a 100. Eu, empresário, ganho muito dinheiro. Ganho muitíssimo e não tenho que competir com ninguém. Como empresário não quero livre comércio, porque as pessoas não têm outra opção que não seja comprar comigo. E ganho quatro vezes mais do que ganharia se competisse com o exterior, ou talvez quebre, porque não tenho incentivo para melhorar minha produtividade. Dessa maneira, posso ter máquinas velhas, pois, de qualquer forma, terei lucro. Mas, ao contrário, se abro o mercado, tenho que melhorar minhas máquinas para poder competir com o exterior. Entende?

Mas com essa política você corre o risco de quebrar o mercado nacional. O que não seria, sequer, a primeira vez.

Bom, está bem. Esses recursos serão realocados a outros lugares onde, sim, somos eficientes na produção. É natural, não? É como proibir os computadores, porque depois ninguém vai comprar as máquinas de escrever. É a evolução.

Vocês têm um plano de proteção à indústria nacional diante dessa proposta de abertura econômica?

Claro que isso não será feito assim, abertamente. Você tem que dar condições para a empresa competir. Te dou um exemplo. Se eu coloco um imposto de 60% não posso pedir que a empresa compita com o exterior. Estou tirando tudo como Estado. E como Estado, primeiro, tenho que cortar os impostos, pelo menos a metade deles, para que a empresa possa competir. Depois, como Estado, tenho que ter uma moeda dura, que me permita ter uma taxa de juros estável e que a empresa, assim, tenha acesso ao mercado financeiro para poder comprar bens de capital e melhorar sua eficiência, sua produtividade na produção de bens. Tudo isso não é da noite para o dia, não pode ser feito de maneira grosseira, mas obviamente é algo que está sendo pensado. Não esqueça que a equipe do partido tem profissionais em áreas do comércio e não gente que vem da “casta”, mas gente que está “no baile”. Você já vai ficar sabendo.

Ah, mas se você quiser me adiantar, tudo bem (risos).

Não, não vou lhe dizer jamais (risos). 

Outro dia, vi um programa jornalístico no Brasil, e criticavam a proposta de dolarização, além de considerarem que não resolveria a atual crise argentina, caso possa realmente ser implementado, pois, para alguns, é um plano que não se sustenta. Diria que é comum ver críticas a Javier Milei na imprensa brasileira. Como o senhor vê esse descrédito?

Primeiro, vejo todo o contrário. E me parece engraçado, porque cada vez que viajo ao Brasil, lhes digo que o que acontece na Argentina, depois acontece no Brasil. Primeiro, ganhou Cristina Kirchner, ganhou Lula lá, ganhou Macri, lá ganhou Bolsonaro, ganhou aqui Alberto Fernández e lá ganhou Lula de novo, e aqui o Milei vai ganhar e veremos o que acontecerá no Brasil. Segundo minha teoria, deveria ser Bolsonaro de novo, não?

Não. Bolsonaro não pode se candidatar até 2030.

Não? Mas pode ser alguém da mesma linha. O Brasil aprendeu algo que a Argentina não aprendeu. O Brasil tem a inflação controlada. O que pode fazer com que haja uma mudança nessa tendência. Mas, tudo bem, veremos. Lembre-se disso quando tiver eleições no Brasil. Lembre-se dessa conversa. Acho que todas essas mudanças serão benéficas para o país, não apenas no que diz respeito ao benefício econômico. A  Argentina vai acabar com a decadência e a impossibilidade de poder projetar o futuro. Hoje em dia, há uma situação em que não se pode economizar, não se pode alugar, a insegurança não para de crescer. Há 20 anos, vejo que a Argentina apenas piora. O que vemos é que as pessoas precisam de esperança de que as coisas, talvez, possam melhorar. Estamos todos esperando que haja condições para poder crescer. Acho que a esperança de uma mudança é o que mais impulsiona a candidatura do Milei.

É um plano (dos Libertários) que terá que continuar por muitos anos. Não te asseguro que seja exitoso, porque na Argentina temos grupos políticos que farão o possível para que fracassemos e para voltar ao anterior. Vai ser muito importante a habilidade política que tenha Milei para gerar alianças e consensos com os setores que são golpistas na Argentina. Ganhar no primeiro turno, com uma porcentagem alta da população, vai dar mais legitimidade do que ganhar por dois pontinhos. Ainda não sabemos como vão se acomodar as peças (da articulação interna no Congresso), mas acho que vai acabar a decadência argentina e vamos poder ser um país sério e respeitável. Ou como digo, não peço para ser Suécia, peço apenas para ser um país normal, nada mais.

Bom, estão preparados para lidar com o Brasil, em uma situação que, digamos, não será a mais confortável? Por um lado, por ser um governo de centro-esquerda, e, por outro, por causa da imprensa. Javier Milei não é de direita, é de extrema-direita. Se fossem macristas, por exemplo, a grande imprensa os “abraçaria”. Então, estão preparados para lidar com um governo de centro-esquerda e com uma imprensa que se mostra crítica com os Libertários? 

Lembre-se disso, onde entra o comércio, não entram as balas. Sim. Uma coisa vai ser todo o show que a política necessita e outra coisa vai ser a realidade. As relações serão ótimas. Eu não vejo outra coisa.

Maíra Vasconcelos – jornalista e escritora, mora em Buenos Aires, publica artigos sobre política argentina no Jornal GGN e cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. 

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