
Lição de História: Dívida Boa
por Fernando Nogueira da Costa
Os acontecimentos nos Estados Unidos, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, é a história do consumidor americano, segundo a abordagem de Morgan Housel (A Psicologia Financeira: lições atemporais sobre fortuna, ganância e felicidade. Rio de Janeiro: Harper Collins Brasil, 2021). Essa história ajuda a explicar por qual razão os norte-americanos pensam sobre dinheiro da forma como pensam hoje.
Existe, crê o autor, uma narrativa capaz de conectar todos esses eventos. Não faz um relato detalhado, mas sim narra uma história de como as coisas se encaixam. Seu objetivo não é descrever todas as jogadas, mas olhar como cada partida influenciou a seguinte.
Três fatores se consolidaram durante a guerra. A construção de casas havia estagnado, pois praticamente toda a mão de obra fora transferida para a produção de suprimentos de guerra. Foram construídas menos de 12 mil casas por mês em 1943, o equivalente a menos de uma nova casa por americano.
Dezesseis milhões de americanos — 11% da população — haviam servido na guerra. A média de idade desse grupo era de 23 anos. Os soldados voltaram e se depararam com um grave déficit habitacional.
Os empregos criados especificamente durante a guerra — construção de navios, de tanques e de aviões — tornaram-se desnecessários, sendo suspensos logo. Não estava claro onde os soldados encontrariam emprego.
A taxa de casamento disparou durante e imediatamente após a guerra. Os soldados não queriam voltar a morar no porão da casa da mãe. Eles queriam começar uma família, em uma casa própria, com um bom emprego, assim que voltassem.
Em 1946, o Council of Economic Advisors entregou um relatório ao presidente Harry Truman alertando sobre o risco de “uma depressão em grande escala em algum momento nos próximos quatro anos”. Esse medo era exacerbado pelo fato de as exportações não serem um caminho confiável de imediato para o crescimento, visto as duas das maiores economias — a Europa e o Japão — estavam em ruínas e lidando com crises humanitárias. Os Estados Unidos estavam sufocados em dívidas.
A primeira coisa feita para manter a economia em funcionamento no Pós-Guerra foi preservar as taxas de juros baixas. Com o choque de demanda, a inflação temporariamente saltou para dois dígitos.
Mas Fed só se tornou politicamente independente em 1951. O governo e o Fed podiam coordenar políticas entre si. Em 1942, o Fed anunciou manter as taxas de curto prazo em 0,38% aa para ajudar a financiar a guerra. As taxas não mudaram um único ponto-base pelos sete anos seguintes. Os papéis de três meses do Tesouro permaneceram abaixo de 2% aa até meados da década de 1950.
A razão explícita para manter baixas essas taxas era reduzir o custo do financiamento das despesas com a guerra, equivalentes a 6 trilhões de dólares. Outra foi todos os ex-combatentes tomarem empréstimos baratos para comprar casas, carros e eletrodomésticos muito baratos.
Aumento do consumo se tornou uma estratégia econômica explícita nos anos logo após a Segunda Guerra. Uma era de frugalidade e de estímulos à poupança para financiar a guerra se transformou em uma era de promoção ativa de gastos.
Um plano governamental foi o G.I. Bill, um conjunto de medidas de apoio aos ex-combatentes, oferecendo condições de hipotecas jamais vistas. Dezesseis milhões de veteranos podiam comprar uma casa, muitas vezes sem entrada, sem juros ao longo do primeiro ano, e por taxas fixas tão baixas a ponto de o valor da hipoteca às vezes ser menor diante o preço de um aluguel.
A segunda medida foi uma explosão do crédito ao consumidor, possibilitada pelo afrouxamento das regulamentações da Era da Depressão. O primeiro cartão de crédito foi lançado em 1950. Crédito na loja, crédito parcelado, empréstimos pessoais, empréstimos consignados — tudo isso foi lançado. Na época, os juros sobre todas as dívidas, incluindo os dos cartões de crédito, eram dedutíveis do imposto de renda.
A década de 1930 foi a década econômica mais difícil da história americana. Mas provocou um aumento da produtividade, notada duas décadas após. Por questões de necessidade, a Grande Depressão havia impulsionado a eficiência, a produtividade e a inovação. Novas invenções foram muito bem-produzidas: eletrodomésticos, carros, telefones, ar-condicionado, eletricidade etc.
A produção de carros comerciais e de caminhões praticamente parou de 1942 a 1945. Em seguida, 21 milhões de carros foram vendidos de 1945 a 1949. E mais 37 milhões até 1955.
Pouco menos de 2 milhões de casas foram construídas de 1940 a 1945. Em seguida, 7 milhões foram construídas de 1945 a 1950. E mais 8 milhões até 1955.
A demanda reprimida por bens e a capacidade recém-descoberta de produzir esses bens criaram os empregos para colocar os soldados de volta ao trabalho. Eram bons empregos. Juntando isso ao crédito ao consumidor, a capacidade de gasto dos americanos disparou.
Eles iriam comprar bens usando o dinheiro recebido em seus empregos produzindo bens impulsionados pelo baixo custo dos empréstimos para comprar ainda mais bens. A característica definidora da economia norte-americana, na década de 1950, é: os Estados Unidos enriqueceram tornando os pobres menos pobres.
Os salários médios dobraram de 1940 a 1948. E dobraram novamente de 1948 a 1963! A distância entre ricos e pobres diminuiu muito.
Em relação ao 1% do topo, os verdadeiramente abastados e os ricos, classificados como o grupo dos 16 mil dólares ou mais, sua participação na renda nacional total, deduzidos os impostos, havia caído de 13% para 7% em 1945. Esta não foi uma tendência de curto prazo. De 1950 a 1980, a renda dos 20% mais pobres cresceu em um montante quase idêntico ao dos 5% mais ricos.
As mulheres trabalhavam fora de casa em número recorde. A taxa de participação delas na força de trabalho passou de 31% logo após a guerra para 37% em 1955 e 40% em 1965. As minorias também ganharam. O progresso em direção à igualdade no final dos anos 1940 e 1950 foi extraordinário.
O nivelamento das classes foi sinônimo de nivelamento dos estilos de vida. A TV e o rádio equipararam o entretenimento e a cultura desfrutados, independentemente da classe social.
As pessoas medem seu bem-estar em comparação com seus pares. Durante a maior parte do período de 1945-1980, havia muitos colegas com quem se comparar.
A dívida das famílias quintuplicou de 1947 a 1957, devido à combinação da nova cultura de consumo, novos produtos de crédito e taxas de juros subsidiadas por programas de governo e mantidas baixas pelo Fed. Mas o crescimento da renda das famílias foi tão alto durante este período a ponto de o impacto não ter sido severo.
O crescimento da dívida em relação à renda das famílias de 1947 a 1957 foi administrável. A dívida das famílias em relação à renda hoje é de pouco mais de 100%. Mesmo depois de aumentar, nas décadas de 1950, 1960 e 1970, estava abaixo de 60%.
O grande impulso desse boom de endividamento foi um aumento repentino na compra da casa própria. A taxa de casa própria em 1900 era de 47%. Permaneceu exatamente assim pelas quatro décadas seguintes. De repente, disparou, atingindo 53% em 1945 e 62% em 1970. Usavam o crédito ao qual as gerações anteriores não tiveram acesso.
Portanto, a lição de história econômica e social do Pós-Guerra, foi os Estados Unidos crescerem muito baseado em planejamento estatal indicativo junto com as iniciativas particulares. Cresceu de forma homogênea, como nunca visto antes.
Sem temor de inadimplência, cresceu a partir do endividamento, aliás, tal como ocorreu na China recentemente. Isso não é um grande problema quando ainda é baixo em relação à renda esperada e confirmada.
O keynesianismo permitiu superar a cultura fiscalista conservadora de a dívida ser uma coisa assustadora. No entanto, a partir dos anos 70s, o monetarismo e, depois, o neoliberalismo, ambos acabaram com “o sonho americano”.
Fernando Nogueira da Costa – Professor Titular do IE-UNICAMP. Baixe seus livros digitais em “Obras (Quase) Completas”: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: [email protected].
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