O assalto aos pobres, por Marden Campos

Uma análise sobre a Lei que permite que famílias contempladas pelo Auxílio Brasil possam contratar crédito consignado

Divulgação

por Marden Campos (UFMG)

Observadores incautos do modo como a economia capitalista tem se organizado apontam para a redução do tamanho do Estado e para competição de livre mercado como se essas fossem as características centrais do chamado “modelo neoliberal”. Um exame mais cuidadoso do mundo econômico, entretanto, mostra-nos uma realidade bem diferente onde a ideia de livre concorrência, nos moldes do liberalismo novecentista, não passa de uma cortina de fumaça.

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Estudos têm mostrado que a economia contemporânea é dominada por agentes cada ver mais poderosos, na forma de grades corporações globais[1]. Essas corporações são formadas por conglomerados de empresas em associação com escritórios especializados, redes de comunicação e, last but not least, enormes tentáculos que penetram estruturas de governo, órgãos de estado, partidos políticos a agencia reguladoras. Elas têm sido apontadas como as estruturas de poder que direcionam os sistemas econômicos e extraeconômicos atuais[2].

Um setor emblemático da economia onde esse fenômeno aparece é o sistema financeiro internacional. O surto de financeirização da economia global como forma predominante de realizar a riqueza no capitalismo contemporâneo tem origens entre o final dos anos 1970 e começo dos anos 1980. A partir de então,  as corporações financeiras adquiriram enorme poder de influência sobre governos e sociedade, afastando-se, contudo, de uma função de facilitador dos processo produtivos, quando passam a drenar recursos sociais consideráveis em direção a atividades especulativas.

Dois momentos da história recente do Brasil ilustram como esse processo ocorre entre nós. Coincidências a parte, em ambos se passam em um contexto de aproximação entre os militares e o sistema financeiro.

O primeiro deles marca os passos iniciais da dominância do sistema financeiro  no Brasil, tal qual se configura atualmente. É narrado pelo Deputado Constituinte Hermes Zanneti, ao descreve o complô organizado pelo sistema financeiro e seus representantes para derrubar o artigo 192 da Constituição Federal de 1988[3]. Em um de seus dispositivos, o referido artigo  limitava a taxa de juros real do País em um patamar fixo de 12% ao ano, nos moldes do que constava nas cartas de 1934, 1937 e 1946 e que delas havia sido usurpado pela constituição de 1967, imposta pela ditadura militar. O artigo foi prontamente derrubado, antes mesmo de entrar em vigor. Zanetti descreve em detalhes como agentes do sistema financeiros infiltrados nos três poderes tramaram e executaram a anulação do dispositivo, provocando o sequestro da economia brasileira para transformá-la no paraíso do rentismo que é hoje.

O segundo momento, de menor impacto na vida social mas merece destaque pela atualidade e conteúdo simbólico, refere-se à recente publicação da  Lei 14.431 no dia 4 de agosto de 2022. Essa Lei permite que famílias contempladas pelo Programa Auxílio Brasil possam usar o valor para contratar crédito consignado. Segundo a medida, isso abre a “possibilidade” de ingresso no mercado financeiro a uma nova parcela da população. Além de incentivar o endividamento de famílias vulneráveis, a medida ainda esconde a canalização de vultuosos recursos dessas famílias para bancos e instituições financeiras. Se não, vejamos.

Em um exercício simples estimamos que um beneficiário com um auxílio mensal de R$600,00 (novo valor do benefício) que tomasse um empréstimo no limite da margem consignável permitida pela nova lei (40% do benefício) receberia um auxílio de R$360,00 durante um ano, além de um empréstimo em torno de R$1.600,00. Esse cálculo foi feito tomando como referência das taxas de juros de 5% ao mês (79,5% ao ano!) divulgadas pelas instituições financeiras segundo reportagens na imprensa[4]. Com isso, ao final de um ano, o beneficiário teria recebido um total de R$ 5.900,00 (soma dos benefícios mensais mais o valor emprestado pelo banco) ao invés dos R$7.200,00 que receberia caso não contraísse o empréstimo. A diferença entre os dois montantes, de R$1.300,00 (18% do benefício) iria para as financeiras na forma de pagamento de juros. Essa conta é ainda mais impactante, contudo, quanto passamos a analisá-la de forma agregada, no nível macroeconômico. Se a medida “beneficiar” as 20 milhões de famílias que o governo estima[5], tende a movimentar R$57,6 bilhões no primeiro ano. Nesse caso, o ganho potencial do setor financeiro chegaria a mais de R$25,5 bilhões. E tudo isso com risco zero para as financeiras, dado que o desconto das parcelas do financiamento é feito diretamente pelo governo, sendo o recurso automaticamente transferido para a conta dos bancos.

Atrair para dentro do sistema financeiro um público que, grosso modo, tem pouquíssimo entendimento de seu funcionamento e pouca capacidade de defesa é a prova explícita de que o que se pretendia do setor financeiro na Constituição de 1988 de promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade é algo que se torna cada vez mais distante da realidade dos brasileiros. O sistema monetário, a moeda nacional e, consequentemente as taxas de juros são bens públicos, de interesse social, e assim precisam ser tratados. Mas infelizmente tais considerações são facilmente abafadas quando o que está em jogo é um negócio de bilhões de reais, com elevado apelo eleitoral para aqueles que promovem o “benefício”.


[1] Colin Crouch (2011), The Strange Non‑Death of Neoliberalism. Cambridge: Polity Press, 224 pp.

[2] Jonathan Nitzan and Shimshon Bichler (2009). Capital as Power. A Study of Order and Creorder RIPE Series in Global Political Economy. Routledge.

[3] Hermes Zaneti (2017) O Complô: como o sistema financeiro e seus agentes políticos sequestraram a economia brasileira. Brasília, Verbena.

[4] https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/05/auxilio-brasil-de-bolsonaro-e-melhor-para-bancos-que-para-familias-pobres.shtml

[5] Conforme divulgado em https://www.gov.br/cidadania/pt-br/noticias-e-conteudos/desenvolvimento-social/noticias-desenvolvimento-social/valor-recebido-no-auxilio-brasil-pode-ser-usado-para-credito-consignado

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Redação

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  1. Felipe, o belo, confiscou os bens, tesouros e castelos dos templários. Henrique VIII revogou os privilégios dos conventos ingleses e confiscou as riquezas que eles acumularam. Durante a Revolução Francesa, a Assembleia Nacional nacionalizou e vendeu os bens da igreja. O mesmo ocorreu na Rússia revolucionária após 1917. Cá, para combater a fome, será preciso confiscar todo o patrimônio que os pastores e bispos evangélicos tungaram da população e do Estado.

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