
O governo Lula tem um caminho a seguir? Equilibrar-se na ‘corda bamba’, driblar o ‘regime dos ventos’ e não deixar o ‘castelo de cartas’ desmoronar
por Márcio Rogério Silveira e Rafael Matos Felácio
O ano de 2022 foi de luta e debate público sobre temas nacionais de fundamental importância que, por conseguinte, redundaram na vitória do presidente Lula da Silva. Passado o processo eleitoral e quase um semestre de governo “Lula 3.0”, uma coisa ainda é gritante: a força do mercado especulativo sobre a política monetária nacional não retrocedeu como era ingenuamente esperado e sua resiliência é muito grande. Isso não é novidade, pois historicamente os presidentes do Banco Central do Brasil (BACEN) são, em sua maioria, ligados ao “dito mercado”, inclusive nos governos “Lula 1.0” e “Lula 2.0”, “Dilma 1.0” e “Dilma 2.0”. Basicamente, é o setor financeiro privado, com interesses nos títulos públicos do país, que dita as taxas de juros (SELIC) e, por consequência, “parte” da estrutura macroeconômica de desenvolvimento do Brasil. Mas por que “parte”? Porque em governos mais progressistas, como Getúlio, Juscelino, Geisel, Lula e Dilma, utilizaram-se estratégias econômicas, mais ou menos aprimoradas – dependendo da complexidade macroeconômica da época – que “driblaram” a capacidade das altas taxas de juros (SELIC) de manter a economia do país estagnada com crescimento do PIB baixo e distribuições de renda ineficazes. Devemos lembrar que em governos progressistas e/ou desenvolvimentistas, os liberais assumiram parte do controle da economia e do Banco Central, como Octavio Gouvêa de Bulhões (SUMOC), “Roberto Campos” e Eugênio Gudin, por exemplo. Isso nos leva a crer que os neoliberais de hoje são a putrefação dos liberais do passado. Veja o atual presidente do banco central, neto de Roberto Campos.
A atual estratégia do governo atual de Lula é combinar o chamado “arcabouço fiscal” com a retomada dos investimentos em obras de infraestrutura econômica e social, juntamente com maiores investimentos externos, superávit comercial (com destaque para o agronegócio) e aumento do consumo interno. Esse último é limitado pelo próprio arcabouço que, inicialmente, é um “gatilho” de garantia de metas fiscais ao interesse financeiro. Na verdade, o arcabouço fiscal do ministro Fernando Haddad é um “castelo de cartas” construído sobre uma “corda bamba”, ou seja, se uma das cartas da base for retirada, o castelo desmorona. Só que essa “cidadela” ainda depende da “corda que é bamba” (a política e a economia, ou seja, a política econômica e a economia política) e do “regime dos ventos” que sopram de todos os lados, inclusive da geoeconomia e da geopolítica internacional. Com isso, a estratégia atual é mais frágil que as estratégias anteriores, pois está cheia de amarras e de armadilhas e, assim, seu resultado tende a série de possibilidade, de limitações ou fracasso. Nossa tese aponta para uma situação bem complicada: o governo “Lula 3.0” faz e ainda fará, por um longo tempo, esse exercício de equilíbrio. Essa fragilidade política e econômica está segurada por um fino escudo de proteção política que pode romper-se caso algum dos agentes do pacto se mova na direção contrária, como o judiciário, a base governista (inclusive os que representam o vice-presidente Alckimin), as relações internacionais (a geopolítica e a geoeconomia, por exemplo, destacando o BRICS e o Mercosul), entre outros. Situação que nem mesmo o peso político de “Lula 3.0” tem capacidade de suportar.
Pois bem, mesmo com “Lula 3.0” vitorioso e presidindo o país, estamos vivenciando um momento de alta agressividade do mercado financeiro, com o BACEN sob a liderança de Roberto Campos Neto coordenando esforços para manter a taxa SELIC em alta, e forçando os investimentos na reprodução do “capital vadio” (especulativo), ao invés dos investimentos produtivos e geradores de emprego e renda e que, por conseguinte, na fórmula keynesiana, logo produz crescimento/desenvolvimento econômico. Ignácio Rangel em um dos seus escritos de 1990 aborda a incompatibilidade entre um programa desenvolvimentista e um que coloca a inflação no centro de toda problemática nacional, e que pretende combater esse “epifenômeno pela via do agravamento de sua causação profunda, isto é, da recessão e do desemprego”. Assim, o BACEN torna-se a principal barreira monetária capaz de limitar o setor com capacidade ociosa de investir em setores estrangulados, como as infraestruturas, com alta capacidade de gerar emprego e renda e permitir maiores fluxos econômicos (insumo-produto). Por isso, é preciso criar um sistema nacional de intermediação financeira com alta capacidade política e econômica de gerir desenvolvimento em grande escala e capaz de atender as demandas da nação.
Por outro lado, carrear recursos ociosos do setor financeirizado para atividades produtivas é o grande “nó górdio” da nossa conjuntura. Temos que lembrar que muitos setores considerados produtivos (extração de lucro via mais-valia – exploração direta e indireta do trabalho) possuem uma interação orgânica com o setor financeiro, ou seja, ele (o setor produtivo) também compõe esse setor (o financeiro). Temos que ter clareza que os lucros produtivos (via mais-valia – exploração do trabalho) são amplificados no setor financeiro (dívidas públicas e outros investimentos), na especulação imobiliária (urbana e rural – com alta liquidez), na fuga de capitais, entre outros. Diante disto, quando o governo “Dilma 2.0” forçou as taxas de juros para baixo o setor produtivo, que ao invés de carrear seus recursos para investimentos produtivos, aderiu mais vividamente ao golpe de Estado. A FIESP e seu “pato de banheira” é um bom exemplo que não há dualidade que não esteja em interação, mediação, causa-efeito, ou seja, na sociedade, expressa por relações econômicas, a dialética é uma constante expressiva de relações de alta complexidade.
Quando a taxa de retorno dos investimentos produtivos tendeu a superação das taxas de juros o governo “Dilma 3,0”, já fragilizado, desmoronou. Quer dizer que a fórmula keynesiana usada de maneira simplista e ingênua não funciona adequadamente em uma economia complexa como é a brasileira. Por outro lado, as explicações mais comuns sobre o golpe de Estado de 2016 tenderam somente ao jogo estritamente político (conflito com o Eduardo Cunha, etc.). E, nesse quesito, atualmente, temos uma vantagem: o “Lula 3.0” não é tão ingênuo, apesar do seu governo ser um campo minado de “agentes-bomba” como o ministro da educação, do meio ambiente e outros. Quase improvável, mas não é, essa visão econômica é de cunho político, algo que a Dilma, economista, não percebeu. Fato que demonstra que Lula da Silva tem uma visão de política econômica ampla e, em grande medida, essa amplitude tem sua vantagem na empiria, esta que é um elemento que se destaca na realidade objetiva. Só que hoje, no seu terceiro mandato, a corda bamba na qual Lula se equilibra é mais fina e os ventos são mais fortes.
Mas quais são as possíveis soluções? Essa é a grande questão! Se pensarmos bem a mais definitiva é estrutural, só que essa é muito arriscada, e não há ainda condições políticas e econômicas internas e externas para tal iniciativa. “Lula 3.0” tem clareza que essa direção pode colocar tudo a perder e, por isso, sua saída tem sido mais conjuntural, mais de superfície e mais ou menos reformista. Imaginamos que “Lula 3.0” espera um momento mais adequado para saltos mais ousados e que talvez não chegue logo. Entrementes, tal posição cria desgosto numa parcela das esquerdas. O caminho adotado até aqui também não agrada muito os setores mais moderados. Contudo, todos são sensíveis ao apelo popular e, em especial, os mais militantes (os de enfrentamento, de rua e que, ao contarem com apoio de uma ampla massa popular, tornam-se amplamente representativos – haja vista o poder que teve Bolsonaro por mais que trabalhasse com “falsas verdades”). Alguns problemas, especialmente no campo político de sustentação, entre as esquerdas ou frações mais dinâmicas da sociedade, estão relacionados:
1) a não revogação imediata do Novo Ensino Médio (há um forte flerte e até mesmo cooptação escancarada do ministro da educação Camilo Santana pelas corporações da educação e do setor financeiro que, na sua maioria, são representados por ONGs, Institutos e Fundações – diminuir os investimentos em educação é uma meta, para garantir mais recursos para pagamento da dívida e ganhos na venda de serviços educacionais);
2) a reestatização de estatais privatizadas/concedidas de forma irregular e injusta (como a Eletrobras e as refinarias da Petrobras, entre outras) – a financeirização, por exemplo, no setor ferroviário brasileiro é tanta que se mistura ganhos produtivos no controle ferroviário dos principais eixos de exportação (grãos, minérios e proteína animal) com jogadas financeiras em trechos menos rentáveis, como a negociação de ações, captação de subsídios governamentais, perdão de dívidas e mudança nos contratos e tributos pelo Estado, etc.;
3) ao aumento da produtividade do trabalho crescente e compatível com o aumento salarial (temos que lembrar que nos governos anteriores do PT a produtividade foi menor que a média salarial e isso criou descontentamentos no setor produtivo).
Portanto, há muitos outros pontos que fazem parte desse “rol” de contradições. As possibilidades são muitas e se a realidade, segundo o filosofo soviético Alexander Cheptulin, “representa o que existe realmente, não podemos distingui-la da possibilidade, porque a possibilidade também tem uma existência real”. Enquanto isso, ficamos de olho tanto na corda bamba (para ver se ela aguenta o tranco), no castelo de cartas e em seus construtores (para verificarmos sua firmeza) e ao regime dos ventos nacional (nas forças políticas) e internacionais (geopolítica e geoeconomia) e seus impactos objetivos. Uma coisa é certa: talvez nunca na nossa história, o crescimento econômico foi tão determinante para sustentar politicamente um governo quanto agora no governo atual. Destravar o gatilho do desenvolvimento é a nossa chave mestra!
Florianópolis e Jaguaruna/SC, 19 de junho de 2023
Rafael Matos Felácio, Professor, pesquisador CNPq e doutorando em geografia pela Universidade Federal de Santa Catarina. É integrante do Laboratório de Estudos sobre Circulação, Transporte e Logística (LabCit-UFSC) e do Grupo de Estudos em Desenvolvimento Regional e Infraestruturas (Gedri-UFSC) com foco em pesquisa sobre Redes, Organização Territorial e Políticas Públicas.
Marcio Rogério Silveira, Graduado em Geografia pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), doutor em Geografia pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Campus de Presidente Prudente/SP e pós-doutorado (PDS/CNPq) no Instituto de Geociências (IG) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Atualmente é Professor Associado do Departamento de Geociências da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e do Programas de Pós-Graduação em Geografia da UFSC. É líder do Grupo de Estudos em Desenvolvimento Regional e Infraestruturas (GEDRI), coordenador do Laboratório de Circulação, Transportes e Logística (LABCIT). É bolsista de Produtividade em Pesquisa (PQ) do CNPq – nível 2, desde 2001 e cofundador da Sociedade Brasileira de Pesquisa em Transportes (SBPT).
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