Letícia Sallorenzo
Letícia Sallorenzo é Mestra (2018) e doutoranda (2024) em Linguística pela Universidade de Brasília. Estuda e analisa processos cognitivos e discursivos de manipulação, o que inclui processos de disseminação de fake news.
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Os capetas de Damares e as eleições de 2022, por Letícia Sallorenzo

No discurso de Damares, o Mal é metonimizado em forma de capeta. Tudo que é contrário ao governo Bolsonaro é encarnado no capeta

Os capetas de Damares e as eleições de 2022

por Letícia Sallorenzo

Neste momento (meados de abril de 2022), atribuir a um capeta uma característica prototípica de um específico ministro do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral equivale a botar leite no kefir. A levedura vem ao longo dos próximos meses.

A fala da ex-ministra da mulher Damares Alves (pediu desligamento do cargo para concorrer a algum cargo legislativo pelo Partido Republicanos do Distrito Federal) na última quarta-feira (13/4) em café da manhã para pastores no Palácio do Planalto pode ser motivo de deboche e chacota à primeira vista, mas com um pouquinho mais de pensar é motivo para real e profunda preocupação.

Na ocasião, Damares disse: “o inferno tá com muita raiva de todos nós. E o inferno tá se levantando. E o inferno tá mandando um capeta que vocês não têm ideia. Tem um até careca. (…) Tudo se levanta contra o presidente. Brumadinho, óleo na praia, queimada no pantanal (…) congresso começa a brigar entre si, um judiciário se levanta contra nós, toda a imprensa se levanta contra nós, quando a gente achava que não ia ter mais nada contra nós teve uma pandemia, e no final da pandemia vem uma guerra. Tudo, irmãos, conspirou para que um governo cristão não desse certo.”

É errado pensar no “significado” da fala de Damares apenas com base na semântica desse enunciado. Isso nos levará a conclusões como “Damares tá chamando o ministro Alexandre de Moraes de capeta careca” ou “Damares tenta disfarçar a incompetência do governo Bolsonaro com declarações sobrenaturais”. O erro está no fato de que o significado dessa fala está muito além da semântica.

Pra começo de conversa, o evento foi para pastores evangélicos. Damares não falava com você, tampouco com Alexandre de Moraes. Ela falava entre os dela, e enunciava um discurso muito poderoso.

Damares mexia com palavras e frames muito caros e específicos de / para aquela comunidade de fala. Em seu discurso, percebemos as dicotomias Bem X Mal, Deus x Demônio, demônios x cristãos, céu x inferno e [prossiga à vontade].

Repare que todas essas dicotomias são tão simples que qualquer criança de sete anos compreende. Dentro desse discurso dicotômico, você sabe de que lado deve ficar: do lado do bem, do lado de Deus, do lado dos cristãos etcetcetc. O problema é quando você percebe que o contexto de fala de Damares insere apenas a comunidade dela entre o Bem, e todo o resto da sociedade na categoria Mal.

No discurso de Damares, o Mal é metonimizado em forma de capeta. A partir dessa metonímia, tudo o que é contrário ao governo Bolsonaro (“um governo Cristão”) é encarnado no capeta. Dizer que um desses capetas é careca (ou cabeludo, ou gordo, ou magro, ou baixo, ou alto) é, a princípio, um detalhe. Mas é um detalhe apinhoado de fermento, e que está levedando neste momento.

Lembro mais uma vez: Damares falava com pas to res. São homens (e mulheres) que vão repetir e reproduzir o conteúdo da fala da ex-ministra em seus cultos igrejas afora.  Neste momento (meados de abril de 2022), atribuir a um capeta uma característica prototípica de um específico ministro do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral equivale a botar leite no kefir. A levedura vem ao longo dos próximos meses.

Até outubro, os pastores irão disseminar essa mensagem de Damares a seus rebanhos. Irão falar do capeta careca que se colocará no caminho do Bem do Presidente Cristão. E esse discurso, ministrado em doses nem um pouco homeopáticas a pessoas humildes e manipuladas (manipuláveis), cuja realidade de vida as distancia do cotidiano das notícias de Brasília, vai fazê-las entenderem que tem um careca que é o demônio. Essas pessoas muito provavelmente nunca viram uma foto de Alexandre de Moraes. Se você apresentar uma foto do ministro aos evangélicos muito poucos irão identificá-lo.

Mas outubro tá chegando. Nessa época do ano, a imagem de Alexandre de Moraes ficará mais frequente nos jornais e TVs do país. E, nesse momento, essas pessoas humildes (com ou sem a ajuda do pastor) irão correlacionar a imagem de um careca criticando o governo e as atitudes de Bolsonaro (vocês ainda duvidam de que será esse o teor das falas de Moraes no segundo semestre?) à história do demônio careca. E, nesse momento, elas deixarão de ouvir qualquer coisa que vier da boca de Moraes: “é o demônio falando! Bem que o pastor avisou! Foi Jesus que falou com o pastor!”

Em outubro, portanto, teremos concluído um dos mais engenhosos planos de destruição de reputação ao qual estamos assistindo sentados, sem nada fazer.

E, na boa? O discurso de Damares é perfeito:

– Ela tem a narrativa DELA, e o resto que se exploda

– Essa narrativa tem uma linha compatível com a coerência do discurso evangélico

– Essa narrativa tem objetivo e função

– Essa narrativa será a causa de um efeito nefasto no segundo turno.

Se interpelada judicialmente, Damares irá argumentar que ela foi genérica, que não citou nomes em seu discurso – e, verdade seja dita, se olharmos direitinho pro discurso dela, veremos que ela não falou de Alexandre de Moraes. Além de má-fé, temos outra característica inerente ao fascismo brasileiro: a covardia dos atos.

Mas a literatura me permite afirmar que Damares falou, sim, em Alexandre de Moraes: Geis e Zwicky (1971): On Invited Inferences (Sobre Inferências Sugeridas). Os autores aplicam o conceito de inferência sugerida a conversações em que o contexto leva o ouvinte, já no ato de comunicação, a reinterpretar o valor do elemento envolvido:

“O que denominamos ‘inferências sugeridas’ constitui uma classe especial de ‘implicaturas’, na terminologia do filósofo H. Paul Grice (em trabalhos muito importantes, e ainda não publicados [note: o artigo é de 1971]), embora estas sejam claramente distintas das ‘implicaturas conversacionais’, que são sua preocupação principal. Grice leva em consideração qual a interpretação que será aplicada a um dado enunciado num contexto particular”. (Geis e Zwicky, 1971, p. 565).

Apoiada por Geis e Zwicky, eu espero que o ministro Alexandre de Moraes interpele judicialmente a ex-ministra, para que Damares seja posta em contradição – e essa contradição seja exposta e explicitada imprensa afora.

Já dei o spoiler aqui: Damares vai dizer que não citou o nome dele e vai se fazer de vítima, ditador de toga, crime de opinião e toda a lenga-lenga do Gabinete do Ódio contra Moraes. Mas confio na inteligência do ministro em saber redigir a petição de maneira adequada.

Leticia Sallorenzo – Mestra em Linguística pela Universidade de Brasília (2018). Jornalista graduada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1996). Graduação em Letras Português e respectivas Literaturas pela UnB (2019). Tem experiência na área de Comunicação, com ênfase em Jornalismo e Editoração. Autora do livro Gramática da Manipulação, publicado pela Quintal Edições.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

Letícia Sallorenzo

Letícia Sallorenzo é Mestra (2018) e doutoranda (2024) em Linguística pela Universidade de Brasília. Estuda e analisa processos cognitivos e discursivos de manipulação, o que inclui processos de disseminação de fake news.

4 Comentários

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  1. No creo que o Ministro vá interpelar ou, mais ainda, vá fazer como querelante realmente injuriado.

    E digo isso porque acredito que esse causo se enquadra no arquétipo do TELECATCH.

    Ora sua Excelência é o malvadão, ora sua Ex-celência é a bandida, a depender da audiência.

    Que ambos são vilões, pra mim não resta dúvida. Resta saber qual será o canastrão mais eficiente e se isso vai afetar nossas ~instituições~ que claramente funcionam – esta aliás outra escapadela marota de Ministro do STF.

    No mais, e conforme denúncia da própria Bruxa e do Rodrigo Vianna, esse fermento foi usado em 2010 e quase deu bolo. Enquanto ríamos do “guru de turbante”, a campanha subterrânea do Çerra nos levou ao desnecessário 2o. Turno e quase abortou nosso governo. (Ok, sem mais trocadilhos!)

    Vamos ver no que vai dar essa trucagem atual e se não vão conseguir justapor o agora nosso careca vice.

  2. Uma das estratégias da extrema direita em anos eleitorais é produzir um mártir. Aconteceu na Ucrânia, depois aconteceu aqui. Talvez por isso Bolsonaro esteja colocando lenha na fogueira e forçando um conflito com o STF. Ou talvez seja para mudar o foco de todos os esquemas de corrupção que estão aparecendo no governo dele. Do todo modo ele, e seu grupo, não parecem dispostos a aceitar as regras da democracia. Já ficou muito evidente que ele não tem apreço pela democracia. Se a grande mídia expusesse o que ele está pretendo, não poderia minar a estratégia dele?

  3. Eu acho que a senhora Damares de fato acredita ser o bem e lutar contra o mal.
    Tem uns vigaristas mas ela de fato julga fazer o certo.
    Eu tenho medo das certezas …

  4. mcom, não acredito que adiante a imprensa “denunciar” esse comportamento, pois ele funciona para os seguidores dele nas redes sociais, que estão completamente refratários a qualquer realidade que não seja a descrita nos textos das fake news.

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