Duas exposições: Warburg e Proust, por Walnice Nogueira Galvão

Para levantar os ânimos e insinuar que nem tudo está perdido, chegam ecos de duas exposições fora de série..

Reprodução Youtube/Modificada

Duas exposições: Warburg e Proust

por Walnice Nogueira Galvão

Para levantar os ânimos e insinuar que nem tudo está perdido, chegam ecos de duas exposições fora de série..

Uma delas,  na Haus der Kulturen der Welt, em Berlim, homenageia Aby Warburg, encampando seu Bilderatlas Mnemosyne: a súmula visual, em imagens, de toda uma estética. Work in progress, que o autor foi alterando durante toda a vida, acabando por desistir de pôr um fim, é, a bem dizer, uma enciclopédia com 63 paineis negros portando imagens coladas: fotos, desenhos, reproduções, recortes, riscos.

Uma de suas obsessões era a imagem da ninfa, outra a da serpente. Dedicou longas perquirições à mobilidade do panejamento, que segundo seus estudos tinha desertado das artes visuais por influência da iconografia cristã, hirta e hierática, só reaparecendo no Renascimento: Boticelli é um grande exemplo. Postulava que tais imagens percorriam a história da humanidade e as civilizações,  formando um estoque a que artistas de qualquer época podiam recorrer.

A exposição gerou muitos subprodutos, inclusive um tour virtual em 3D. Quem estiver interessado pode procurar os podcasts e vídeos variados, com depoimentos dos curadores e de outros críticos. Foi posto à venda um álbum com reprodução fotográfica de todos os painéis e mais estudos, ao preço de duzentos euros.

Como se sabe, o pesquisador em boa hora transferiu-se para Londres, comboiando todo o seu acervo, inclusive uma biblioteca de 60 mil volumes, em troca da fundação do Instituto Aby Warburg, que ainda lá está hoje em dia e recebe alunos.

A propósito, houve outra exposição no Reina Sofia, em Madri, ostentando o provocador título de Atlas – Como levar o mundo nas costas? , com curadoria de um perito e fã como Georges Didi-Huberman.

Já quanto a Proust, a iniciativa da nova exposição coube ao Museu Carnavalet de história da cidade de Paris, tradicional abrigo dos despojos de sua vida e obra. A exposição se intitula Marcel Proust – Um roman parisien, título muito justo para quem nasceu e morreu em Paris, com eventuais jornadas ao balneário de Trouville ou à casa de Tante Léonie em (hoje) Iliers-Combray, que preserva sua outra cama. Ele  raramente transpôs as fronteiras de seu país, assim mesmo nunca se afastando muito.

Proust, como se sabe, viveu intensamente seu tempo e sua cidade, produzindo uma verdadeira radiografia  dos percalços históricos que a atravessaram, como o Caso Dreyfus.

Em busca do tempo perdido, na edição canônica em 8 volumes, por muitos eleito o melhor romance já escrito, ocupou toda a vida do autor. Na fase final, escrevia deitado e acalentando sua asma com fumigações, num quarto forrado de cortiça para abafar os sons da rua, que vinham estorvar sua inspiração. É uma verdadeira crônica daqueles anos na então “capital do século XIX”, no dizer de Walter Benjamin. Concentra-se na análise da classe dominante, mostrando  fascínio pelos aristocratas e burgueses ricos, e especialmente por seu requintado trem de vida.

Tal era o perfeccionismo do autor, que se tornou o terror dos editores,  corrigindo sem cessar seus próprios manuscritos, mas também as provas gráficas e até os livros ejá impressos. Não contente em adicionar emendas com letra miúda, nas margens e mesmo no verso, ainda recortava e colava nas páginas as tiras a que chamava de “paperolles”.

Seu próprio quarto de dormir – o último – está sob a guarda do Museu Carnavalet há tempos e agora constitui o foco central da mostra. Mas o precioso quarto está cercado de outros objetos auráticos: pinturas e esculturas, livros e cadernos, apetrechos de escrita, utensílios de toalete e de conforto pessoal etc.

Na capa do catálogo entroniza-se seu mais reputado retrato, que o acompanhou até a morte, devido aos pinceis de Jacques-Emile Blanche. O modelo, altamente estilizado, aparece em trajes de gala e com uma orquídea na botoeira. Visto frontalmente, na face pálida sobressaem os magníficos “olhos de príncipe persa”, como diziam à época, as manchas brancas do rosto e do plastrom constrastando com o negror do fraque. O catálogo está esgotado mas uma reedição é aguardada.

Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP

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