A letra da Lei e a regra da psicologia freudiana, por Fábio de Oliveira Ribeiro

A previsibilidade jurídica é a maior conquista da modernidade. No mundo em que nós vivemos ninguém pode se libertar das obrigações legais dizendo que desconhecia a Lei.

A letra da Lei e a regra da psicologia freudiana

por Fábio de Oliveira Ribeiro

A única coisa que separa a civilização da barbárie é a Lei. Foi por isso, aliás, que Sócrates preferiu cumprir uma condenação que poderia ser considerada injusta a deixar a cidade de Atenas. Ao tomar cicuta ele não fez o que os seus inimigos queriam, mas apenas agiu de maneira coerente com tudo aquilo que ele mesmo havia conseguido aprender utilizando seu método.

O método socrático não é muito diferente do método científico. Sócrates se recusava a aceitar lugares comuns. Ele acreditava que tudo que dizia respeito ao homem, à cidade e à vida do homem na cidade merecia ser submetido ao crivo da indagação. Ao renunciar às verdades pré concebidas, examinando meticulosamente tudo aquilo que fazia parte da vida cotidiana, o filósofo grego fez inimigos. Mas ele também deixou um exemplo que seria seguido por outros.

A filosofia nunca mais seria a mesma. Os germes da investigação científica estavam lançados. Vinte e quatro séculos mais tarde, Freud desenvolveu um método analítico que pode muito bem ser considerado semelhante ao de Sócrates. O famoso médico vienense começou a estudar a psique humana partindo do pressuposto que nada sabia sobre esse assunto.

Algum tempo depois, sentido-se seguro dos resultados que havia obtido, Freud faria o mesmo que Sócrates. Ele submeteu as ações cotidianas impensadas ao crivo do método psicanalítico, pois o “…que constitui o caráter essencial do trabalho científico não é a natureza do material sobre o qual os estudos foram feitos, mas o rigor do método que preside à constatação de tais fatos, e a busca de uma síntese tão ampla quanto possível.” (Sobre a PISCOPATOLOGIA da vida cotidiana, Sigmund Freud, Latonfe, São Paulo, 2014, p. 167).

Antes de voltar a Sócrates e Freud farei um pequeno inventário da situação em que nos encontramos.

O mundo foi atingido por uma pandemia mortal. As únicas verdades científicas bem estabelecidas até o presente momento são: o COVID-19 consegue viver no ar, no solo e em superfícies metálicas, plástica, etc…; o vírus tem uma taxa de letalidade pequena, mas a quantidade de vítimas que ele faz é grande porque a velocidade de expansão da pandemia é muito grande; nenhum medicamento testado até agora pode ser considerado 100% eficaz em todos os casos; a substância fabricada por Trump e propagandeada pelos Bolsonaro é ineficaz e seu uso tem provocado mortes; a única maneira de evitar o pior (o colapso total do sistema de saúde) é manter o isolamento; os países que demoraram a exigir que seus cidadãos ficassem em casa têm apresentado uma taxa de mortalidade maior; não é possível flexibilizar o isolamento nesse momento sem o risco de produzir um verdadeiro genocídio, pois o COVID-19 já começou a ser espalhado pelo transporte público; médicos e enfermeiros também estão ficando doentes e morrendo.

Os cidadãos brasileiros têm direito a vida (art. 5º, caput, da CF/88). O Estado tem o dever de proteger esse direito e de garantir assistência médica a todos os cidadãos (art. 196, da CF/88). O presidente da república não pode flexibilizar esses direito sem cometer crime de responsabilidade (art. 85, III, da CF/88).

Como se não bastassem as restrições constitucionais impostas ao exercício do poder que impedem o presidente de matar os cidadãos ou abandoná-los para morrer como se as vidas deles fossem descartáveis, a legislação penal brasileira coíbe o genocídio (art. 1º, da Lei 2.889/1956 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l2889.htm). A legislação internacional também é absolutamente cristaliza acerca da impossibilidade de um governante mandar matar uma parcela de seus cidadãos ou escolher deixá-la morrer sem tomar todas as providências necessárias para preservar a vida humana http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/genocidio.htm.

Em texto publicado na imprensa, um Ministro do STF afirmou recentemente que a letra da lei não precisa ser observada com rigor em situações como a que estamos vivendo. Ele citou Santo Agostinho para defender a tese de que a necessidade liberta as autoridades do jugo da Lei. Duas coisas podem ser ditas sobre essa afirmação.

A primeira é acerca da própria citação. Quem deu à frase “Necessitas legem non habet” uma conotação jurídica foi Graciano e não Santo Agostinho.  A segunda diz respeito ao fato de que nenhuma situação de necessidade permite ao presidente da república ou a um ministro do STF esquecer, ignorar ou desprezar a Lei.

O mundo em que nós vivemos não é semelhante àquele em que Graciano produziu sua obra. Na Idade Média a incerteza jurídica era muito grande. Feudos muito próximos podiam adotar regras jurídicas muito diferentes. Os reis ainda estavam lutando para impor sua autoridade aos nobres e tinham que disputar espaço político com os Bispos. A guerra era um fenômeno endêmico agravando as incertezas jurídicas que ajudavam a produzi-las.

A previsibilidade jurídica é a maior conquista da modernidade. No mundo em que nós vivemos ninguém pode se libertar das obrigações legais dizendo que desconhecia a Lei. No caso de genocídio a situação é ainda mais grave, pois se um Estado não for capaz de julgar esse crime o governante criminoso poderá ser julgado por um Tribunal internacional. E todos que o ajudarem a concretizar seu intento será igualmente criminoso.

Estudando os atos falhos praticados cotidianamente, Freud disse que “…Nenhum homem se esquece de executar as ações que lhe parecem importante sem se expor a que o julguem uma pessoa com perturbações mentais.” (Sobre a PISCOPATOLOGIA da vida cotidiana, Sigmund Freud, Latonfe, São Paulo, 2014, p. 162). Bolsonaro é leigo, Fux é um especialista. Ambos não poderiam esquecer sua principal obrigação: conhecer e respeitar os princípios da Constituição Cidadã; não ignorar as verdades científicas acerca da pandemia. Um deles pode certamente ser considerado louco. O caso do outro é mais interessantes. Se não for louco, o ministro Luiz Fux é um genocida convicto e, portanto, deve ser considerado inapto para exercer qualquer cargo no poder Judiciário.

Fábio de Oliveira Ribeiro

1 Comentário

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  1. Talvez você conheça, Fabio. Lembro de um texto da virada 99/2000 que ficou famoso, Ingeborg Maus falava da mudança das regras formais, impessoais, gerais, pra essa tal jurisprudência de princípios… Ela aponta mesmo para uma situação disfuncional do judiciario…

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