A prensa dos gastos e o marco civilizatório de 1988
por André Roncaglia
No mundo já são 1 milhão de vítimas do coronavírus. O Brasil detém 3% da população mundial e 14% das mortes registradas pela doença (já ultrapassamos a faixa das 140 mil mortes). A reação coordenada de governos às crises econômica e social deflagradas pela pandemia pode ter evitado o pior, mas há perigos adiante.
O Relatório de Comércio e Desenvolvimento da UNCTAD (2020) defende um plano de recuperação global que restaure aos países mais vulneráveis uma posição mais forte do que estavam antes do COVID-19. A chave para o sucesso é enfrentar uma série de condições pré-existentes que ameaçavam a saúde da economia global antes mesmo da pandemia, a saber: hiper-desigualdade, níveis insustentáveis de endividamento, investimento combalido, estagnação de salários no mundo desenvolvido e sub-emprego e empregos formais insuficientes no mundo em desenvolvimento.
Como argumentou Joseph Stiglitz, responder à pandemia com mais neoliberalismo será trágico. Usando a agenda brasileira, Stiglitz prescreve o contrário: direitos sociais, controle dos bancos e corporações e emissão monetária para gerar trabalho.
Segundo pesquisa do JP Morgan Chase, o estímulo fiscal de todos os países acrescentou 3,7 pontos percentuais de crescimento ao PIB global em 2020. No entanto, o estudo alerta para os riscos do retorno prematuro à austeridade. Se as autoridades repetirem estes erros (cometidos após a crise financeira de 2008), o impulso fiscal deste ano se transformaria em uma contração fiscal de 2,4 pontos percentuais em 2021. Os economistas do banco defendem uma dilatação do prazo de correção dos desequilíbrios para que a retomada seja mais saudável e sólida. Que um banco de investimentos sinta a necessidade de publicar um estudo como este revela as maquinações do mercado em favor do rápido retorno à austeridade.
O Brasil da “prensa de gastos”, como destacou Júlia Braga, é um forte candidato a este erro. Mas, de onde vem esta compulsão por austeridade fiscal?
A Nova Razão do Mundo
Uma das inversões de valores trazidos pela “nova razão do mundo” é a delegação da “justiça social” à mão invisível do mercado. Ao longo dos 40 anos de um domínio inquestionado, o neoliberalismo logrou impor às democracias as restrições impessoais do mercado. A economia dos incentivos escanteou os valores cívicos na estrutura de preferências das organizações e, no embalo, igualou produtividade a rentabilidade.
Rentabilidade é um critério compatível com o escopo de preocupações de empresas privadas do século XX. A impaciência dos acionistas no geral obriga as corporações a descartar todo e qualquer custo que reduza a rentabilidade em um dado trimestre. Viciados pelo jogo de gratificação instantânea que a financeirização da economia oferece (similar ao encontrado na vida virtual dos videogames e das redes sociais), os “investidores” comprimem o horizonte de investimento ao de um pregão e viram “day traders”. Esta nova epidemia que assola a sociedade em quarentena ioiô reforça a retórica de “mais Mises e menos Keynes”.
A história das crises financeiras mostra que o foco na rentabilidade de curto prazo sempre leva a episódios de frenesi que acabam muito mal, em geral pela ignorância a efeitos que transcendem o espaço de preocupação dos indivíduos atomizados. Externalidades, informação assimétrica, problemas de recursos comuns são alguns dos fatores a direcionar recursos a investimentos pouco úteis à sociedade. Quando incluímos estes falhas de mercado, a ideia de “má alocação” de recursos ganha nova conotação, por incluir mais partes interessadas (além dos acionistas) no cálculo econômico racional. Esta é a nova economia do stakeholder para a qual a “produtividade” dos investimentos é o critério mais adequado de avaliação.
Produtividade como Utilidade Social
A produtividade é um critério menos trivial. Sua ambiguidade requer a definição de objetivos claros, para que se possa fazer as escolhas necessárias com os recursos que se têm em mãos. Guiar-se por ela envolve análise de custo-benefício, seja no plano individual, seja no da política pública. Produtividade em seu conceito mais amplo incorpora uma dimensão qualitativa, bem como intertemporal: a utilidade individual e social, tanto hoje quanto no futuro.
A compulsão por rentabilidade rápida torna os princípios de mercado (a cataláxia) pouco sensíveis a diretrizes democráticas mais “pacientes” e, por isso, voltadas para as gerações futuras que ainda não chegaram ao planeta. Este é um dos eixos do argumento que Keynes trouxe na Teoria Geral (1936) para justificar a ação do Estado. Mariana Mazzucato atualiza o conceito em seu livro mais recente “O valor de tudo” para analisar um modelo econômico que promova a prosperidade compartilhada, incluindo-se o meio ambiente e focada em progresso tecnológico. Por estes motivos, a definição do que a sociedade define por “gasto produtivo” não pode ser transferida ao mercado, por que este é altamente permeável a vícios extrativistas (baseados em compadrio) que são danosos ao bem comum e ao meio ambiente.
É neste contexto que precisamos avaliar as recentes investidas sobre as empresas estatais, como a Petrobras e os Correios. Fausto Oliveira trouxe, no site Revolução Industrial Brasileira, uma ilustração importante desta relação rentabilidade-produtividade, mostrando os riscos envolvidos na privatização dos Correios. Não apenas a estatal é rentável como ela é também produtiva e inovadora (veja aqui um fio sobre a tecnologia do CEP).
Crises empilhadas
A pandemia escancarou as nossas desigualdades históricas e vem desafiando o significado da palavra República. Enquanto cresce o número bilionários, a fome avança sobre a parte da população que não consegue concorrer por uma renda no mercado de trabalho. A necessidade de se pensar uma renda básica permanente de proteção social vem ganhando espaço, mas esbarra nas limitações impostas pelas regras fiscais.
O governo Bolsonaro se vê comprimido entre as benesses eleitorais do auxílio emergencial e as pressões do mercado financeiro por um ajuste fiscal sumário ancorado no teto de gastos. A forma como o governo conciliará os interesses da sua base de apoio com as diretrizes maiores da democracia brasileira determinará o nível de bem-estar da população por muitos anos, uma vez que os efeitos desta pandemia não sumirão rapidamente. Acuado pelas múltiplas e inconsistentes forças que o apoiam, o governo se vê acuado e, no calor do momento, começa a buscar soluções que ameaçam gastos produtivos de muito longo prazo; em particular, a educação.
Quem poderá nos defender?
A constituição cidadã de 1988 é um marco civilizatório da nossa sociedade e completa 32 anos no próximo dia 05 de outubro, segunda-feira. É contra “tentações” casuísticas como a que enfrenta o governo atualmente que a nossa Constituição aniversariante protege os “gastos produtivos” da miopia típica do mercado ou do populismo de ocasião.
Note que a reação mais aguda do mercado à terceira tentativa de Paulo Guedes em contornar o teto de gastos para financiar o Bolsa Família de Bolsonaro não foi por conta do uso de verbas do FUNDEB. Este foi defendido por parlamentares e prefeitos, isto é, pelo Estado. Os agentes de mercado ficaram irritados com a sugestão de moratória dos precatórios (dívidas do Estado com o setor privado decorrentes de derrotas em processos na justiça). Afinal, dos R$ 40 bilhões devidos, cerca de R$ 24 bilhões são destinados a empresas. Este é praticamente o valor necessário para viabilizar o Renda Cidadã.
Alegar que a Constituição Federal não cabe no orçamento público é um convite à barbárie. A selvageria se instala gradualmente, como a água que ferve o sapo sem incomodá-lo. O tecido social vai perdendo coesão e torna-se cada vez mais poroso. A civilidade e a urbanidade tornam-se formalidades cosméticas perante os imperativos bestiais da luta pela sobrevivência.
Ao remover as franquias que o Estado garante aos cidadãos, Bolsonaro vai produzindo uma sociedade em que ter uma arma pode ser uma necessidade. Ao destinar o dinheiro da educação para uma política assistencial de alívio da pobreza ou para obras, Bolsonaro tira dos pobres de hoje para dá-la aos filhos paupérrimos dos mesmos no futuro. Educação é riqueza; é uma espécie de capital produtivo e cívico. Alivia a pobreza do futuro em suas várias dimensões. Por isso, a redução imediata da pobreza presente precisa de outra fonte de financiamento que não concorra com a da educação e da saúde.
As falhas de governo são avaliadas sempre pela régua do mercado. É uma visão estreita e míope e que atende a interesses nem sempre republicanos dentro e fora do Estado. Mas há um sarrafo mais alto e mais exigente. Neste 05 de outubro de 2020, lembremo-nos de que a Constituição Federal é a régua efetiva para avaliar o estágio do processo civilizatório em que nos encontramos como sociedade. Fora da Constituição, não há democracia, apenas selvageria.
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