A preparação à censura, da política do cancelamento, o Macarthismo, ao silêncio imposto de fato, por Marcus Atalla

O projeto de Estado, já em construção, é um Estado mínimo (neoliberal) e autoritário, pois terá que reprimir as revoltas das massas.

Foto de Orlando Brito

A preparação à censura, da política do cancelamento, o Macarthismo, ao silêncio imposto de fato

por Marcus Atalla

Marcos Del Roio, autor e docente do curso de filosofia da Unesp, descreveu o projeto do Estado neoliberal que está sendo construído na tentativa de salvar o capitalismo. Para ele, essa é uma crise existencial do sistema. O capitalismo financeiro não apenas aumenta a concentração de renda, mas também não produz mais riqueza o suficiente nem mesmo para o desenvolvimento cultural e humano. Os PIBs dos últimos anos demonstram isso, a maioria dos países não consegue um PIB maior que 1,5% a 2,5% ao ano. A exceção é a China, que não é um sistema capitalista, mas sim, um sistema próprio. Hoje há apenas um fetichismo por novos aparelhos tecnológicos.

A população se tornou disfuncional sendo vista tão-somente como dispêndio de riquezas. Ela não serve mais para gerar riqueza comprando bens, mas sim, como mão de obra superexplorada. Tendo-se 30% da população para consumir, o resto só precisa ter o suficiente para pagar dívidas de crédito e se alimentar, mantendo-se viva para voltar ao trabalho no dia seguinte. Com a chegada da indústria 4.0, altamente robotizada, a população será um problema. Algumas projeções descrevem que cerca de 70% da população mundial não terá sequer vaga de emprego, e as vagas remanescentes serão altamente especializadas. Com a automação de veículos, nem mesmo o emprego de Uber ou entregador existirão. E isso está mais próximo do que as pessoas acreditam, questão de mais 10 a 20 anos.

O projeto de Estado, já em construção, é um Estado mínimo (neoliberal) e autoritário, pois terá que reprimir as revoltas das massas. A população não ficará passiva sem empregos impossibilitando a sua sobrevivência e a de seus filhos. Para tanto, os aparelhos de repressão serão aumentados, judiciário, segurança pública, capitalismo de vigilância, leis mais duras, censura e o militarismo, cuja finalidade será reprimir revoltas internas, ou seja, o inimigo a ser combatido é a própria população do país. Seja considerado como futurismo ou não, dos pontos citados por Roio, todos eles estão em pleno desenvolvimento no Brasil e outros países pelo mundo, e a olhos vistos. Inclusive a censura, contudo, não são só os autoritários que a estão defendendo, esses só plantaram a semente, são os que se acham democratas que a estão apadrinhando. A percepção da sociedade foi preparada, o punitivismo e a censura normalizada e legitimada.  

1ª Fase concluída – A política do cancelamento: Tiraram-se os capuzes e colocaram-se ternos, tiraram-se os machados e colocaram-se os teclados

Discordar, contra-argumentar e mostrar o descontentamento ou o repúdio sobre pontos de vistas, opiniões, teses, proposituras e comportamentos, não é apenas salutar, mas necessário. É a forma que a sociedade mostra sua desaprovação a certas condutas e até mesmo “educa”, mas sem a necessidade de punir os indivíduos. O Direito Penal é considerado a “ultima ratio”, só deve ser usado quando não há outros meios. Como se já não bastasse o Brasil ser o 3º país com o maior número de cidadãos encarcerados, sendo que quase metade deles nem sequer tenham sido julgados.

A política do cancelamento não se trata de uma repreensão social, aquele “tapinha na mão” do mal-educado, trata-se da tentativa de uma completa aniquilação social de pessoas. Como é “feio” matar, vamos matar socialmente. Enquanto o linchamento ocorria apenas no mundo virtual, banimento de contas e de meros avatares que talvez nem fossem um ser humano, era algo educativo, agora que está sendo aplicada no mundo real, em pessoas reais, passou a ser o retorno da pena de “Ostracismo” e a destruição da psique dos indivíduos. (Pesquisa realizada nos EUA comprovam um aumento assustador de suicídios de adolescentes, provocados por “bullying” através das redes sociais).

A malta de carrascos nas redes sociais não mede as consequências no mundo real. Os inquisidores postam fotos dos indivíduos, onde trabalham e moram, mostram os filhos, quando possível até mesmo CPF, RGs e telefones. Pedem a demissão, a quebra de empresas, mas quantos entendem que a aniquilação de um arrimo de família põe em risco a sobrevivência não apenas dele, mas filhos, esposa e dependentes. A quebra de empresas, pela condenação da opinião de um proprietário, põe em risco a subsistência de todos os empregados. Os filhos dos indivíduos também são condenados e sofrem todo o tipo de bullying pelos colegas nas escolas.

O pior é que se trata de um julgamento moral, não se considera o contexto, quem é, e o que é o indivíduo, baseia-se apenas naquele trecho de fala, naquele momento. Os que fazem parte dos linchadores vingadores, nem sequer procuram saber do que realmente se tratou ou o contexto da fala, no momento que veem um post sendo xingando, o próximo aproveita e atira a próxima pedra. Se não bastasse, muitos pedem a prisão, não importa se há ou não um tipo penal definindo crime, deve-se prender.

Os que têm a coragem de contestar os exageros são classificados como persona non grata e recebem o mesmo tratamento, passam a ser atacados. Os demais, se silenciam para não terem o mesmo fim. Há milhares de Rainhas de Copas – “Alice no País das Maravilhas”-, a qual estava sempre pronta a cortar cabeças daqueles que a frustrava.

Sugestão de leitura:

  • “Criminologia e luta de classes”, Juarez Cirino dos Santos.
  • “CRIMINOLOGIA – Contribuição Para a Crítica da Economia da Punição”, Juarez Cirino dos Santos.

2ª Fase em andamento –  O Macarthismo aos russos é a última desculpa para expandir a censura

O Senador estadunidense Mark Warner tuitou: “Estou preocupado com a desinformação russa se espalhando online, então hoje escrevi aos CEOs das principais empresas de tecnologia para pedir que restrinjam a disseminação da propaganda russa”.

Após a censura realizada pelas plataformas aos canais como Sputnik, Russia Today, a desmonetização e bloqueio de usuários, Warner tuitou: “Fico feliz em ver a ação das empresas de tecnologia reinar na propaganda e desinformação russas após minha carta aos seus CEOs ontem”. “Estes são os primeiros passos importantes, mas continuarei pressionando por mais.

<blockquote class="twitter-tweet"><p lang="en" dir="ltr">Glad to see action from tech companies to reign in Russian propaganda and disinformation after my letter to their CEOs yesterday. These are important first steps, but I’ll keep pushing for more.</p>&mdash; Mark Warner (@MarkWarner) <a href="https://twitter.com/MarkWarner/status/1497654669815996421?ref_src=twsrc%5Etfw">February 26, 2022</a></blockquote> <script async src="https://platform.twitter.com/widgets.js" charset="utf-8"></script>

O que em outros países seriam empresas estratégicas estatais, no capitalismo neoliberal dos EUA, as empresas privadas são integradas ao Estado, uma espécie de terceirização de sua indústria-militar e inteligência. [Leia: Facebook, Twitter, Google e Amazon são paraestatais da máquina de guerra e vigilância dos EUA]. Não apenas servem como empresas de guerra-cognitiva, como impõe o mesmo sistema de censura governamental dos EUA ao resto do mundo.

A Associated Press teria realizado uma pesquisa demonstrando um aumento de atividades nas redes de grupos ligados à Rússia. Contudo, as organizações citadas por realizarem incluem a Cyabra, uma empresa de tecnologia israelense que trabalha para “checar desinformação” e a empresa de gerenciamento de narrativas da OTAN, financiada pela Atlantic Council.

Essa limitação da informação somada à narrativa anti-Rússia propagada pela imprensa corporativa cria uma russofobia pelo mundo. À ponto de cancelarem cursos sobre Dostoiévski, proibirem Daniil Medvedev de participar do Torneio de Wimbledon ou um restaurante retirar do cardápio o Estrogonofe. Porém, a censura de fato acontece mesmo, com a participação dos Estados. E é isso que se está aproveitando para fazer. Governo australiano sanciona pessoas por compartilharem pensamentos não autorizados; na Alemanha, as autoridades planejam processar aqueles que exibem o símbolo “Z” como forma de mostrar apoio à invasão da Ucrânia pela Rússia. Outros países também aprovaram leis que sancionam seus cidadãos por conteúdos postados nas redes, inclusive a Rússia.

O primeiro pensamento que vem à cabeça é que tudo isso está muito distante. Quando aconteceu o golpe na Ucrânia em 2014 e países vizinhos, ou as Primaveras Árabes, que culminou com um regime militar no Egito, aos brasileiros também pareceu ser muito distante. Quando aconteceu os golpes em Honduras em 2019 e no Paraguai de Lugo em 2012, aqui, também se pensou que o Brasil era uma democracia sólida e consolidada. Nada disso se trata de acasos, há um processo e uma construção em andamento no mundo.

E foi por isso, que quando o Ministro do STF, Alexandre de Moraes, decidiu proibir o Telegram, muitos dos que ficaram contra não eram bolsonaristas. Não se trata de uma discussão banal o bloqueio de um meio de comunicação de massas ou como regulamentá-lo.

3ª fase – A censura sempre divide a informação pelo moralismo, uma informação é boa e a outra é perversa.

Há vigente na sociedade uma hipervaloração das palavras e enunciados. Nessa visão pós-estruturalismo, o mundo simbólico, portanto, o que é dito ou falado geraria as mesmas consequências que atos e ações realizados no mundo material. Sendo assim, causam as mesmas consequências que o fazer. No momento que um emissor fala algo, automaticamente as pessoas acreditariam ou obedeceriam. Por essa tese, todos os indivíduos são robôs, as palavras são uma programação e não se teria a capacidade de discernimento, nem pensar e nem se ter o poder de decisão, apenas segue-se o que é ouvido e lido. Desse modo, se o simples falar e os enunciados são tão perigosos, é claro que seria legítima a censura.

Há uma ideia de que Bolsonaro ao entrar numa ausência de limites do que fala; defesa da ditadura, Ustra, estimular o desrespeito à Constituição Federal etc.; permite que as pessoas comecem a dizer aquilo que nelas reverbera o mais louco, todos se sentem autorizados a dizer tudo sem nenhum tipo de limite. A sua discursividade faz com que todos acreditem que podem falar de forma alucinada, rompendo com os sentidos convencionados. Justamente por exercer um cargo de poder, a Presidência da República.

Respeitando as metáforas do dito, mesmo porque analisar o mundo simbólico de forma literal, ignorando-se as metáforas e a subjetividade dos indivíduos é um equívoco em si. Tem-se a visão de que o mundo material é um mundo lovecraftiano “À Beira da Loucura” – filme de horror de John Carpenter, onde as pessoas que leem um determinado livro de um romancista de terror tornam-nas insanas e espalha a loucura.

Não basta apenas ter um cargo de poder para ser “obedecido”, segundo Patrick Charaudeau, em seu “contrato comunicacional”, é o receptor da mensagem quem decide se reconhece aquele cargo de poder ocupado pelo emissor, e o próprio emissor, como merecedores de crédito e esse “direito concedido” pode ser revogado a qualquer momento, ou seja, visto como sem nenhuma credibilidade. É o que aconteceu com a imprensa corporativa brasileira.

Quem ara o imaginário do país, há décadas, é a imprensa brasileira, destruiu a ideia de democracia criminalizando a política, ressuscitou o moralismo e o autoritarismo intrínseco do brasileiro, através de programas policialesco como “Aqui Agora” e os “Datenas” da vida. O baixo entendimento da democracia do brasileiro é uma condição da nossa formação social-histórica e formação do Estado. Escravismo, coronelismo, regimes militares, polícia que até hoje espanca, tortura e chacina aqueles que não tem diplomas ou as “costas quentes”. No Brasil só tem direitos humanos a parte da população que tem uma certa condição social.

O problema nas redes sociais não é a mentira. Elas trabalham com vieses de confirmação, para as pessoas terem determinada crença pré-estabelecida, é necessário um processo, não basta uma mentira aqui e outra acolá. As redes sociais modulam o discurso e, assim, modulam o comportamento. Modulam o discurso ao criar bolhas, onde os indivíduos recebem a mesma informação, porém, de fontes diferentes, eliminando o recebimento de opiniões contrárias. Formam grupos de pessoas com o mesmo pensamento e, desta maneira, todos acham que aquela forma de pensar é a correta e verdadeira, se todos pensam assim, logo, isso é a verdade.

O problema não será resolvido por leis nacionais que permitam as próprias plataformas controlarem o que é verdade ou mentira. A regulamentação efetiva das plataformas não é possível sem que se tenha acesso aos seus algoritmos, para assim, permitir a sua fiscalização ou se criando plataformas brasileiras, assim como fez a Rússia e a China. Mais importante que as informações visíveis dos usuários, são os metadados, invisíveis. A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD –, muito comemorada, é completamente omissa quanto aos metadados.

Combater à desinformação exige o esclarecimento, educação e a transmissão do conhecimento pelo debate e argumentação, não a proibição de determinada informação julgada por sabe lá quem e a partir de sabe se lá quais parâmetros. No conflito entre a Rússia e Ucrânia, em que se teve a desinformação propagada pelos meios de imprensa corporativos e a censura das informações pelas redes sociais, explicitou o quanto é aterrador o método proposto de proibição.  Se na idade média a igreja católica escondeu o conhecimento em seus mosteiros, visto por ela como “mau”, na era digital temos as Big Techs escondendo as informações em suas nuvens virtuais.

O combate a desinformação é apenas um pretexto, o que está em disputa é o controle da informação e o monopólio das fake news. Antes das redes sociais, pertenciam à mídia corporativa, televisões, rádios e grandes veículos de imprensa. Veículos de massa caríssimos detidos por poucos com condições econômicas e políticas de tê-los. Há uma luta entre os aparatos ideológicos antigos e o novo, e quem controlará esse novo aparato ideológico, os usuários ou o status quo.

As Big Techs beneficiam-se com essa histeria, uma regulamentação que lhes dá o poder de definir o que é verdade ou mentira. Elas causam o problema e colocam-se como solução, aumentam ainda mais seu poder. Contraditoriamente, com o surgimento das redes sociais, a informação tornou-se muito mais plural do que quando havia apenas as mídias tradicionais.

O Projeto de lei (PL 2630/20) do combate às fake news de Orlando Silva – PCdoB – ainda está em revisão, mas as versões apresentadas anteriormente, legalizam o poder das plataformas de decidir o bloqueio de informações a partir do seu julgamento. A lei está sendo apresentada em regime de urgência e sob pressão da Rede Globo.

Recorde-se do papel das instituições, ou  seja, do Estado Brasileiro para chegar-se a situação atual, muito antes do Bolsonaro tornar-se Presidente. Quem agiu de modo autoritário foi o Estado Brasileiro e a ponta de lança foi o sistema judiciário. Proibiram a candidatura do Lula ilegalmente, fraudaram processo, aceleraram decisões e retardaram outras, as instâncias superiores fingiram olhar para o lado, proibiram entrevistas com o Lula e limitaram sua aparição na propaganda eleitoral, apreenderam bandeiras e propaganda eleitoral de partidos de esquerda em manifestações e eventos – Muito similar ao que fez, semana passada, o Ministro do TSE Raul Araújo proibindo manifestações no Festival Lollapalooza.

A então Procuradora-Geral Raquel Dodge, ameaçou pedir a devolução do fundo partidário do PT caso Lula mantivesse a candidatura sub judice, enfim, foram incontáveis, foram eleições dignas da República Velha. Não se deve tirar de foco que só é possível o autoritarismo com a adesão dos aparatos estatais, quanto mais a sociedade se em caminha para um autoritarismo, mais alimenta o poder do judiciário e outros burocratas estatais engordando o Leviatã (Thomas Hobbes).

Marcus Atalla – Graduação em Imagem e Som – UFSCAR, graduação em Direito – USF. Especialização em Jornalismo – FDA, especialização em Jornalismo Investigativo – FMU

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

Leia também:

As manipulações automáticas e imperceptíveis da ciência de dados, por Marcus Atalla

A Big Arrow War russa: Entenda a estratégia russa e porque eles retiraram tropas de Kiev, por Marcus Atalla

Militares, urnas e disrupção, por Marcus Atalla

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador